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Consertando o Pecado Original

Por quase 20 décadas a civilização ocidental tem tentado trabalhar na mulher; a mulher e sua histeria, a mulher e sua voluptuosidade, a mulher e tudo o que ela é. Mulher, autora do pecado original, mulher, a filha imperfeita de Eva, terrível sedutora que deu ao nobre Adão a maçã envenenada, bode expiatório do mundo, da culpa coletiva pelas muitas falhas do homem… E o homem culpando a mulher pelo que havia de errado no mundo foi o começo desta história de bode expiatório. A prática de se encontrar um bode expiatório gera indivíduos inconscientes, enganadores e covardes. É só olhar para os líderes mundiais de hoje: em como Bolsonaro culpa o marxismo por tudo, da mesma forma que seu antecessor culpava as forças ocultas da elite brasileira, ou ainda, como Trump distribui culpa à vontade. Em um mundo polarizado, as falhas são sempre explicadas na referência ao ‘outro’ de uma forma xenófoba e arrogante.


Vendo pessoas assim, penso primeiro em como os homens são primitivos e, em segundo, em como encontrar o bode expiatório é uma atividade terrivelmente “não masculina”. Em como encontrar o bode expiatório é o fertilizante para a covardia. Com a ajuda da Igreja, foi assim que o homem ocidental se prendeu em um ciclo repetitivo de negação de responsabilidade por parte de Adão após a mordida que lhe abriu os olhos no fruto proibido.


“Mas ela me deu para comer e eu comi!” Adão disse à estranha força sobrenatural no Jardim do Éden, tentando escapar de toda culpa e responsabilidade.


“… essa vaca é tão histérica, é impossível ficar em casa hoje em dia”, ouvi enquanto o sinal abrir em um cruzamento.

“Ela é impossível, eu não consigo fazer nada certo de acordo com aquela chata lá em casa” – me disse um lojista durante uma conversa fiada…

Os bodes expiatórios de Adão de hoje estão em toda parte, e se você começar a prestar atenção, eles estão realmente em toda parte. O marido queixando-se da esposa com seus colegas de trabalho, o mansplaining, os comentários condescendentes e gaslighting que acontecem com tanta frequência em tantos campos e reinos sociais que ficamos entorpecidos e burros por isso. Hoje em dia é menos público em países desenvolvidos, talvez pelas consequências punitivas, desde que cada vez mais mulheres ficam sabendo que não há problema algum em estabelecer limites, mas a partir destes limites traçados outro tipo de loucura está surgindo, e agora elas são odiadas porque são “feministas peludas”, “feminazis”, “frescas” ou “frígidas”.


É novamente o maldito… dedo apontado! Sempre que você se levanta para apontar para alguém ou algo você pode estar se afastando ainda mais da autoconsciência. Você sai da própria vida e se torna apenas uma pipa lançada ao vento, movido por todo e qualquer tipo de caprichos e movimentos, o vento me moveu e aqui estou eu, sem uma boa razão, mas eu culpo o vento…


Hoje, essa atividade é tão difundida que mal percebemos: presidentes, pessoas bem-sucedidas fazem isso, somos inocentes até que se prove o contrário, mas e se tivermos coragem suficiente para assumir a culpa quando vemos que estamos fodendo o rolê? Se assumimos a culpa quando somos autores dos desastres, erros e misérias, nos colocamos naquele lado da quadra, onde realmente podemos ganhar horizonte e ter à nossa disposição os meios para corrigir os erros cometidos.


Se você arranja um bode expiatório, você dá o controle do seu futuro a tudo, menos a si mesmo. A pessoa que o levou a se comportar de tal maneira quando você foge da responsabilidade agora é sua senhora e tirana! E quando você é chamado à atenção, à sua covardia e à sua perpétua auto-involução em algum momento, você precisa apontar o dedo para o seu próprio rosto e deixá-lo lá até que você fique vesgo.


Você pode imaginar uma fatia de utopia em que quando você é chamado à atenção, em vez de culpar o imigrante ao lado ou seu parceiro, você assume a responsabilidade e diz: “ok, como vamos consertar isso?”


Esse seria o primeiro passo para a cura dessa ficção chamada de pecado original e a realidade do bode expiatório. Que tal os homens pararem de trabalhar nas mulheres e, em vez disso, se concentrarem no coletivo “nós” que constitui os muitos segmentos de relacionamentos, comunidade e sociedade e aceitam nossa imperfeição e na humanidade dos nossos erros?


Consertamos o pecado original ao expandir nossa consciência e nos vemos cada vez mais como centro, como autores e heróis em nossas próprias vidas. Se sempre culparmos alguma “força demoníaca” ou aleatória pela forma como nossa vida acontece, nunca seremos os autores de nossas histórias, apenas respingos de tinta em páginas que não interessam a ninguém.


Uma nota para entender melhor:


Mansplaining: é um termo que significa ” comentar ou explicar algo a uma mulher de uma maneira condescendente, confiante, e, muitas vezes, imprecisa ou de forma simplista”. A autora Rebecca Solnit atribui o fenômeno a uma combinação de “excesso de confiança e falta de noção”. (fonte: Wikipédia)


Gaslighting: ou gas-lighting é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. (fonte: Wikipédia)

Crédito da Imagem:

New York Public Library / Science Source

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