Para entender a cultura que me rodeia, costumo prestar atenção em como as pessoas se comunicam no cotidiano. Ontem eu estava no supermercado, na fila do caixa, e ouvi dois amigos de pouco mais de trinta anos de idade conversando. Um deles comentava sobre a abordagem radical que havia feito em uma mulher, e queixava-se com o outro como “a cadela bem que queria, mas no fim, ficou com medo da minha macheza”. Foi uma celebração do poder do pau e das habilidades de conquista do macho-alfa, de como uma mulher sujeita a este tipo de interesse deveria demonstrar gratidão. Fiquei pensando em como ela poderia ser julgada como uma “vagabunda” se demonstrasse gratidão, ou uma “lésbica-comunista” se não o fizesse. De todo jeito, a inconsistência desta troca verbal me fez lembrar outra conversa com um cara que considero muito bem educado, que dizia que “não existe isso de cultura do estupro”, e que insistir que “estupro” tenha algo a ver com “cultura” seja um absurdo.
Isso me fez perceber que a palavra “cultura” é complexa, então vamos falar um pouco mais do que realmente “cultura” possa significar.
Quando falamos de cultura, nos referimos ao produto ativo e homogêneo de um grupo, pessoa ou nação, que tipifica os avanços humanos e intelectuais de um agrupamento social único, ou seja, características nas quais podemos identificar um grupo, pessoa ou nação. A cultura existe em múltiplas camadas, existe em interespaços e subgrupos na cultura predominante e pode ser considerado o conjunto múltiplo de ideias e atitudes ativamente acionadas e que produzem significado.
Comida, arte, costumes, tradições e roupas são meras expressões da cultura, nascidas da cultura de forma referencial do que sendo a cultura propriamente. A cultura é gerada pelas atitudes, moral, linguagem, geografia, filosofia e ética dos indivíduos que encontram ressonância ou dissonância com outros indivíduos na sociedade que está tomando forma. À medida que interagimos com as ideias, a moral e as atitudes em nosso tecido social, nos envolvemos com a cultura e isso, por sua vez, afeta nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos tanto quanto nós, pelo menos em teoria, temos o mesmo poder de influenciar a cultura, o que na psicologia cultural se refere como “agentes culturais ativos” ou “receptores passivos de influências culturais”. O que quero dizer aqui é que a cultura nunca é uma causa válida de nada, mas sim uma matriz rica que reproduzimos passivamente ou com a qual a consciência age.
Para realizar a mudança de receptores passivos a agentes ativos, precisamos nos conscientizar do que é a cultura e como ela é moldada bem como da presença vital de indivíduos que se reúnem em grupos devido ao compartilhamento de crenças, atitudes, objetivos, antecedentes e uma hoste de outros fatores. A cultura só é possível em uma rede interpessoal de comunalidade, do acordo silencioso de valores compartilhados.
Se observarmos como as coisas estão aqui no Brasil, em particular, vemos que a violência sexual contra as mulheres está aumentando ano a ano e se nos voltarmos à música e ao entretenimento televisivo, as mulheres são cronicamente objetificadas. É só começar a prestar atenção, como agentes ativos, no que está acontecendo ao nosso redor.
Vejo homens que acreditam ser “feministas”, isto é, entende que as mulheres devam ter os mesmos direitos e deveres que os homens, mas comportamentos e atitudes chauvinistas surgem no desconhecimento desses homens de que essas atitudes são tudo, menos “feministas”. É uma questão de cultura, com certeza, mas não da cultura como causa, é mais sobre desconhecimento e passividade na interação de alguém com a cultura. Trata-se de herdar essas normas, atitudes e axiomas latinos e cristãos que remontam décadas e décadas sem pausa para que se pense se você concorda ou discorda. Se você é uma vítima passiva de ideias e costumes em que não acredita ou se você é como uma massa maleável e tem sido moldado a qualquer cultura que tenha apresentada à sua apatia passiva.
A cultura é reforçada pelo exercício de ideias e atitudes em comum e começa quando imitamos nosso ambiente quando crianças. Macacos fazem o que macacos veem, e obedecem à autoridade e aos mais velhos, que sabem o que é o melhor. Questionar o que nos é transmitido como a verdade traz a mudança do macaco para outra coisa, e trazer a mente para a questão da equação cultural é a única maneira em que um agente ativo pode interagir com a cultura. É quando você conversa ociosamente com alguém e questiona opiniões, ideias e conceitos que você dá o primeiro passo em direção à mudança cultural, em vez de ser um receptor passivo.
Quero destacar algumas observações entre o que vejo no Brasil e o que contrasta com a Noruega, meu país natal.
No momento em que componho este artigo, temos aqui no Brasil um presidente da república que apresenta abertamente comentários homofóbicos, misóginos e racistas sob o pretexto de esses comentários sejam “só piadas”. Essa nova raça de políticos, que ironicamente não se consideram políticos, são frequentemente vistos como pessoas que “têm coragem de dizer o que as pessoas pensam”. Encontramos comentários a partir disso e seguindo ao “preconceito velado”, que é uma forma de se nomear o que não pode ser mencionado por várias razões. E nisso encontramos um problema, a saber, que essas questões nunca são objeto de um debate público ao longo do tempo, porque se o que as pessoas pensam é misoginia, mas ninguém fala sobre isso, estamos estimulando uma cultura de negação e hipocrisia.
Se uma cultura tem preconceitos profundos contra participantes de sua própria estrutura social, essas questões devem ser seriamente colocadas na mesa do debate público e não devem ser apresentadas como piadas passivo-agressivas. Podemos acrescentar que, até o século XVIII, piadas como essa não eram vistas como engraçadas, mas sim comentários maliciosos nascidos de pessoas que se consideravam superiores (e aqui falo de pensadores como Platão, Hobbes, Schopenhauer e Descartes em relação à filosofia do humor). No século XVIII, o humor era filosoficamente considerado uma atividade de alívio ao estresse diário, mas se pensarmos nisso, as piadas geralmente se baseiam na desgraça de alguém, e, portanto, um elemento de malícia costuma ser encontrado no centro das piadas. Contudo, se um primeiro ministro norueguês apresentasse piadas do calibre que vemos com frequência partindo do presidente da república brasileiro, isso seria um escândalo absurdo e esses assuntos entrariam em um discurso público acalorado sobre o caráter desprezível do primeiro ministro, que por sua vez, questionaria as atitudes de a população e a nação como uma consequência natural de tal comportamento verbal.
O outro fator que eu gostaria de destacar está relacionado à linguagem, e eu vi isso surgir em forma de atitudes, comportamentos verbais e não verbais, mesmo de homens bem educados, que se consideram defensores dos direitos e da dignidade das mulheres. É como ser mulher “explica” o comportamento delas, como uma forma de paternalismo e ridicularização. Vejo frequentemente algum tipo de expectativa dos homens de que as mulheres sejam tolas em algum nível, como se estivessem procurando atentamente formas para desmascará-las. A articulação verbal mais comum é o “ah… mas não é bem assim” e, em seguida, corrige-se a expressão (sim, mansplaininge gaslighting) frequentemente seguida com um sorriso sardônico, se não algo sarcástico, paternalista e arrogante.
Se olharmos para a Noruega, é claro que também encontraremos algum chauvinismo e violência contra mulheres, mas sempre foi algo muito velado e não era incomum que homens que agrediam mulheres levassem uma surra de seus próprios amigos. Se isso não corrigisse o comportamento, o infrator corria o risco de perder seus amigos. No meu tempo de infância e juventude, a violência contra as mulheres já era explicada com um tabu. Aqui no Brasil, se alguém bate em uma mulher, seus amigos perguntam a ele “o que ela fez desta vez?”. E ao culpar a vítima, diz-se “Ela estava pedindo por isso…”
Só pare… nenhuma mulher “pede” por isso. Foi só você expressando uma masculinidade frágil através de uma covarde violência.
Se passarmos apenas para o reino dos homens e do que se fala nestes ambientes de competição de testosterona, que normalmente giram em torno do álcool e das piadas baratas, há claramente uma ideia profunda e traumática sobre as mulheres entre os homens latinos, gerada pela Igreja e seus impossíveis ícones, deste binário entre santa e prostituta. O problema é que essas ideias sofreram mutações de tantas formas e contradições ao longo dos anos que parecem fazer parte da constituição do indivíduo como participante social, e não uma falácia embutida na cultura, como uma ideia adotada passivamente. O que quero dizer é: questione tudo, não aceite e explique tudo com referência à cultura.
Estes são apenas alguns exemplos de como nos infectamos com ideias culturais, participantes passivos em um mundo cada vez mais saturado de informações e opções. Ficamos preguiçosos e vivemos em um estado de sobrecarga crônica – mas precisamos ser mais claros ao nos perguntar se concordamos com o que está acontecendo e o que podemos fazer como agentes ativos na cultura. A mudança pode começar com um homem escolhendo uma nova direção.
Imagem: pixabay
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