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A Bíblia e o Aborto.

Todos nós vimos e ouvimos os ativistas pró-vida com a Bíblia na mão, condenando a interrupção da gravidez sob a bandeira do assassinato. Eles são tão barulhentos e tão virulentos que isso por si só já deveria ser o suficiente para duvidar da mensagem, pois todo este barulho e virulência é, de uma perspectiva psicológica, algo que acontece quando o argumento está desmoronando. Então, vou declarar isto logo no começo deste artigo: a Bíblia não diz absolutamente nada sobre o aborto intencional. Há menções sobre a interrupção violenta e acidental, mas antes de chegarmos aí, vamos falar sobre o argumento usado para tornar o aborto um pecado – de que isso seja um assassinato e de que o ser começa na concepção. Isso é, simplesmente, falso. Se olharmos para a Torá, um feto não é considerado um ser até que dê seu primeiro suspiro e receba alma (nefesh) através do sopro divino. Até então, o feto faz parte da mãe e é propriedade da mãe. E, na verdade, quando olhamos para a Torá – e o Antigo Testamento em geral – todos os casos que falam sobre aborto em questões legais fazem-no em virtude de as mulheres serem ali representadas como propriedade do homem.


A mulher como propriedade do homem está embutida em Gênesis 3:16, onde Deus diz a Eva que: “… e teu desejo será para teu marido, e ele te dominará”. Esse papel desequilibrado entre Adão e Eva é uma substituição do plano original, onde Deus criou o homem à sua imagem, como Gênesis 1: 27 declara: “à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Juntos, eles governariam os animais da natureza. Desde que somente mais tarde encontramos a história de como Eva foi criada do lado de Adão (em Gênesis 2:23), estamos aqui falando do primeiro casal, Adão e Lilith, que foram formados à imagem de Deus. Lilith certamente não estava interessada em se submeter ao seu igual e foi a primeira mulher a se divorciar de seu marido, algo que mais tarde foi proibido na fé abraâmica como Deuteronômio 24:1 comunica:


“Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa.”


As mulheres não tinham esse direito. Era o pai que arranjava seu casamento, o dote e o contrato, que era basicamente como se desfazer de qualquer outra forma de propriedade, e como Êxodo 20 e 21 detalham, é evidente que as mulheres eram, a princípio, a propriedade do pai e depois, quando se casavam, o pai transferia a propriedade para o marido. Até os Dez Mandamentos são bem claros em como as mulheres são propriedades. Onde Êxodo 20:17 fala da inveja, evidencia-se o pecado ao cobiçar a mulher do próximo, da mesma forma que os animais da fazenda dele:


“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”


Números:30 discute várias questões relativas a juramento, palavra, contrato e coisas do gênero e afirma claramente que a palavra de uma mulher não tem valor real, pois seu pai poderia anular qualquer promessa que ela fizesse antes de estar casada e depois disso, seu marido. Isso significa que, de uma perspectiva bíblica, uma mulher, solteira ou casada, como propriedade, jamais poderia sequer assinar um contrato. Mulheres livres, viúvas e donzelas solteiras que viviam sozinhas eram tratadas de maneira diferente, mas aqui estamos falando de uma categoria de ‘alteridade’ na fé abraâmica, as exceções.


Portanto, deixemos claro: o Antigo Testamento considerava a mulher como propriedade, e alguns dos homens bíblicos famosos tratavam as mulheres melhor do que outros, como o amor de Abraão por Sara (e o dela por ele) muito mais pelo caráter do que pelo código divino. E sobre Abraão, ele estava disposto a assassinar seu único filho, porque Deus teria dito que assim o fizesse – o que era um teste bastante macabro de fé, se você parar para pensar. Essa mesma história, muitas vezes usada como exemplo da beleza da fé, também revela que o Javé do Antigo Testamento tinha um lado cruel, se não psicótico, em sua fúria assassina. Com certeza esta parte da Bíblia não está falando de um Deus que mantém a vida humana em particular consideração. O argumento usado pelos ativistas pró-vida é o de como a Bíblia fala sobre a santidade da vida; e isso então é interpretado para proibir o aborto. Os versículos mais amados para citação se encontram em Salmos 139:13-16, que diz o seguinte:


“Pois possuíste os meus rins; cobriste-me no ventre de minha mãe. Eu te louvarei, porque de um modo assombroso, e tão maravilhoso fui feito; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem. Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui feito, e entretecido nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu corpo ainda informe; e no teu livro todas estas coisas foram escritas; as quais em continuação foram formadas, quando nem ainda uma delas havia.”


E é claro que essa leitura seletiva ignora os versículos à frente, onde Davi canta nos versos seguintes, de 19 a 22:


“Ó Deus, tu matarás decerto o ímpio; apartai-vos portanto de mim, homens de sangue. Pois falam malvadamente contra ti; e os teus inimigos tomam o teu nome em vão. Não odeio eu, ó Senhor, aqueles que te odeiam, e não me aflijo por causa dos que se levantam contra ti? Odeio-os com ódio perfeito; tenho-os por inimigos. Certamente matarás os ímpios, ó Deus … Eu os odeio com ódio perfeito: conto-lhes meus inimigos.”

Davi certamente canta sobre a maravilha da criação e da gestação, mas isso não passa de uma consideração muito seletiva pela vida não-nascida, enquanto se pede a Deus que mate todos os seus inimigos. Isso significa que a vida de uns não importava tanto quanto a de outros.


O rei Davi, que escreveu este Salmo, era de uma linhagem particularmente eleita e, em seus aspectos poéticos, o verso frequentemente citado em defesa da vida não-nascida é mais sobre a predestinação do rei Davi, um homem ao qual Deus teria planos. O mesmo acontece com o profeta Jeremias em seu livro, capítulo 1, versículo 5:


“Antes que te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei; às nações te dei por profeta.”


Temos a frase referente a João Batista em Lucas 1:41-44:


“E aconteceu que, ao ouvir Isabel a saudação de Maria, a criancinha saltou no seu ventre; e Isabel foi cheia do Espírito Santo. E exclamou com grande voz, e disse: Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre. E de onde me provém isto a mim, que venha visitar-me a mãe do meu Senhor? Pois eis que, ao chegar aos meus ouvidos a voz da tua saudação, a criancinha saltou de alegria no meu ventre.”


E finalmente, o próprio Jesus nas palavras de Paulo, em Efésios, 1:3-5:


“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade…”


Precisamos entender que esses versículos falam sobre seres únicos, profetas. A gestação desses indivíduos notáveis foi sujeita a um processo mágico descrito vagamente na Cabala Prática, no livro Moonchild de Crowley, e no Babalon Workings de Parson. Em resumo, trata-se de uma maneira de convidar a interferência divina e angelical no ato da concepção por todas as formas de considerações mágicas, ritualísticas e astrológicas. Portanto, não estamos falando de filhos em sentido geral, mas de indivíduos muito únicos. Não estamos falando dos auto-proclamados profetas que se alastram nestes tempos de obscurantismo.


Além disso, temos que entender que os Salmos eram músicas e poesias e devemos permitir alguma medida de licença artística e criativa à composição do salmista, como deveríamos fazer no caso de qualquer trovador, poeta ou compositor. Eles não eram necessariamente historiadores ou teólogos, mas artistas.


A Torá é clara sobre a questão de quando a alma entra na matéria orgânica e biológica, que é quando o recém-nascido respira pela primeira vez. Até esse ponto, é uma fusão de células como qualquer outra forma de vida. A característica humana é gravada nessa massa biológica quando a alma entra nela, quando o sopro é inalado, como Gênesis 2:7 declara: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.”


Foi só quando o homem recebeu o sopro que ele se tornou uma alma viva – e aqui estamos falando de um ser humano totalmente formado – e até que o sopro fosse dado, essa matéria orgânica não possuía ‘uma alma’. Mas mesmo assim, o Javé do deserto não se importava nem com matéria biológica, nem com alma, vez que existem inúmeras histórias em Reis e Crônicas que demostram como o povo de Javé tinha o direito divino ilimitado de assassinar e massacrar aqueles que eles considerassem maus ou que vivessem do outro lado da cerquinha, mas deixemos isso de lado para nos concentrarmos no aborto e na santidade da vida do nascituro e do recém-nascido.

Podemos trazer duas situações que são características de toda a atitude em relação ao aborto no Antigo Testamento. O primeiro está em Êxodo 21:22-23:


“Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida”


Essa citação é bem clara: perder o filho NÃO é um infortúnio grave, e o pagamento é dado ao marido como o dono da mulher. Esta era a posição do Antigo Testamento sobre aborto. Como declarado anteriormente, a Bíblia não fala diretamente sobre o aborto como um ato deliberado, uma escolha, e o mais próximo que chegamos disso é o que descobrimos sobre a suposta infidelidade de uma mulher. Em outras palavras, era uma questão de ciúmes e de quem era o pai da criança, como vemos em Números 5:19-24:


“Então o sacerdote fará a mulher jurar e lhe dirá: Se nenhum outro homem se deitou com você e se você não foi infiel nem se tornou impura enquanto casada, que esta água amarga que traz maldição não lhe faça mal. Mas, se você foi infiel enquanto casada e se contaminou por ter se deitado com um homem que não é seu marido —então o sacerdote fará a mulher pronunciar este juramento com maldição — que o Senhor faça de você objeto de maldição e de desprezo no meio do povo fazendo que a sua barriga inche e que você jamais tenha filhos. Que esta água que traz maldição entre em seu corpo, inche a sua barriga e a impeça de ter filhos. “Então a mulher dirá: ‘Amém. Assim seja’. “O sacerdote escreverá essas maldições num documento e depois as lavará na água amarga. Ele a fará beber a água amarga que traz maldição, e essa água entrará nela, causando-lhe amargo sofrimento.”


O que esta seção nos diz é que havia claramente um conhecimento sobre remédios abortivos – e também que eles poderiam ser usados em medidas punitivas de uma maneira que só pudesse apontar para a importância da propriedade e não para a santidade da vida. E só para esfregar na cara um pouco o desdém que o Jeová do Antigo Testamento mantinha pela vida não-nascida, encontramos em Oséias 9:14: “Dá-lhes, ó Senhor; mas que lhes darás? Dá-lhes uma madre que aborte e seios secos.” Também em Oséias 13:16, podemos ler o que Deus traria aos infiéis “seus filhos serão despedaçados, e as suas grávidas serão fendidas pelo meio.


Em 2 Reis 8:12, a profecia de Eliseu afirma que o rei Hazael “…porás fogo às suas fortalezas, e os seus jovens matarás à espada, e os seus meninos despedaçarás, e as suas mulheres grávidas fenderás. No capítulo 15 de 2 Reis, versículo 16, o rei Menaém é especificamente instruído por Jeová para abrir a barriga das mulheres grávidas. Em Isaías 13:16, podemos ler sobre a queda de Babilônia, que os justos que garantirão a queda “E suas crianças serão despedaçadas perante os seus olhos; as suas casas serão saqueadas, e as suas mulheres violadas”. Vamos parar por aí. Usar a Bíblia para advogar a favor da vida ou da morte não faz sentido. É uma leitura altamente pessoal e extremamente seletiva das escrituras. A Bíblia, quando fala da vida não-nascida, o faz em termos de descendência, legado e propriedade, não sobre a santidade da vida, simplesmente porque a teologia e a lei religiosa do Antigo Testamento não consideravam um feto por nascer como um ser humano.


Talvez devamos questionar mais. Será mesmo que aquele deus do deserto, o deus de Abraão, realmente lhe dá o direito de dominar alguém, especialmente se você não é capaz de dominar a si mesmo? Não teria sido este o espírito arcôntico de fogo que Jesus veio para derrubar, trazendo a nova lei, que é a do amor? Faz sentido que uma força criativa, o autor de todas as maravilhas cósmicas, se intrometa com o que fazemos com nossa vida pessoal e sexual? Tudo é apontado como metafórico ou literal, de acordo com a conveniência, com os interesses dos “pastores dos rebanhos”, os auto-proclamados líderes e profetas que ferrenhamente defendem a lei do cabresto. A religião é uma coisa assustadora, porque os homens da religião não precisam mais pensar: a lei moral e divina são suas muletas, pensar é difícil e é melhor que os outros o façam por você. Será? Tome um tempo para pensar sobre isso e você verá o quanto isso soa absurdo.


A Bíblia não diz nada sobre o aborto, absolutamente nada. Mas ao negar o aborto, a mulher ainda pode ser mantida acorrentada e sua liberdade e independência, restritas. Desta forma ela ainda pode ser propriedade de alguém. Que um Estado secular ainda esteja se incomodando com o direito de abortar é mais do que ridículo, é irresponsável. Se você realmente entendeu alguma coisa sobre a Bíblia, deveria se lembrar mais do seu personagem principal. Aquele mesmo, que disse que a lei está escrita em nossos corações. E a lei é o Amor.

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[1] No Brasil somente. Eu poderia listar ainda as várias razões. Trouxe apenas uma para não fugir do escopo deste artigo.

[2] Nota da tradução: O autor usou originalmente a versão King James, mas para fins de comparação, a tradução usou a versão Almeida Revista e Corrigida.


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