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A Bruxa e a Política

“m pa nan monn sa, se lonbray an m sèlman k ap pase la.”: E não sou deste mundo, é só o meu fantasma que está passando por ele. Provérbio haitiano (Nan Domi)


Recentemente em uma conversa fui confrontado com a afirmação de que “eu tinha a obrigação de obedecer à lei”, e essa obrigação estava implícita por ser um participante de uma construção social com ethos e moral políticos. Dentro da premissa apresentada, se vivo nesta sociedade eu devo obedecer à autoridade independentemente do meu desrespeito por “autoridades” em geral, minhas discordâncias com suas escolhas, ou em como eu não me sinto representado por estas mesmas autoridades.


Para mim, o jogo entre o corpo político governante e o indivíduo é aquele que repousa na relação entre autonomia e autoridade, no atrito causado neste domínio quando o corpo governante prejudica, danifica ou arruína a liberdade do indivíduo ao exercer sua autoridade.


Há muitas perguntas que podem ser feitas em relação ao ator social em uma sociedade política; algumas dessas questões seriam relegadas ao consentimento e acordo entre o indivíduo e a função legislativa do governo, onde em nossa era moderna a solução para a falta de consentimento e acordo de parte do indivíduo é frequentemente encontrada na democracia.


A ideia de democracia é simplesmente relacionada à contagem de cabeças e permite que a maioria delas dê o seu consentimento, sobrepondo efetivamente a voz das minorias. Isso significa que uma democracia sempre trará a certo nível de insatisfação na população.


Embora possamos concordar que a democracia seja melhor do que governos totalitários, fascistas e absolutos, que são representados pelo domínio de uma elite arcôntica que vê a violência e a censura como um meio digno para a ordem política em uma sociedade, está implícito na política moderna que frequentemente falaremos de nossos desacordos e insatisfações, afinal essa é a natureza da política moderna.


A tensão na política moderna é sustentada pelas filosofias libertárias e pelas filosofias marxistas, que basicamente questionam o egoísmo do indivíduo em relação à sua responsabilidade social e, por sua vez, se o Estado deve ser o único proprietário da boa fortuna de uma sociedade ou se deveria simplesmente proteger a terra e a liberdade dos indivíduos.


Desde os anos 70 há uma tendência nos movimentos neopagãos, especialmente variantes da Wicca em politizar a espiritualidade e a fé, e me pergunto se esse é realmente o domínio das pessoas espirituais e, se é, onde encontramos as fronteiras entre envolvimento político e desinteresse político.


Vamos usar o ícone da bruxa como um exemplo de como entender o indivíduo espiritual como ator político. Bruxaria é algo que podemos igualar com a “arte do camponês”, porque foi sempre relacionada à terra: à floresta, fazenda e família onde esses mistérios foram desenvolvidos e usados. A fazenda era a fonte de renda, de continuidade da família e o legado de quaisquer mistérios e tradições que foram mantidos. O foco estava na fazenda e na proteção de seus perímetros porque a fazenda era uma entidade viva; era aqui que os espíritos guardiões da terra e os ancestrais da família descansavam comungando sob os montes e cristas. A proteção da fazenda era, portanto, crucial, porque a memória e a utilidade da família estavam profundamente enraizadas na terra. Um fazendeiro tinha pouco a dizer na política; a voz do fazendeiro estava viva no interesse político do aristocrata, que era o elo entre o fazendeiro e o cobrador de impostos do rei em um sistema feudal.


É claro que há muito mais nisso, mas para resumir um pouco: os fazendeiros eram sua própria unidade bem deslocada da política, e suas preocupações estariam mais relacionadas à tributação e ao caráter dos aristocratas que precisavam dos serviços dos fazendeiros e artesãos. Para aqueles considerados “bruxos” em um mundo como esse, a alienação da política seria ainda maior, pois em grandes períodos históricos o ofício da bruxa seria considerado criminoso e a própria bruxa se apresentaria como alguém “do outro lado da cerca”, não daqui, mas “de fora”, como Gustav Henningsen descreveu os ‘sábios’ na Escandinávia e como eles se definiam.


Acredito que esse seja um detalhe tão importante que deixamos escapar em toda a nossa compreensão do que é uma bruxa. E por falar em bruxas, aquele importante “grimório” conhecido como “O Bom Livro” ou “A Bíblia Sagrada” afirma no mais esotérico dos Evangelhos, o Livro de João 17:16, que ele (Jesus) “não é deste mundo”, e que seria da forma com os seus seguidores. Vimos ao longo de 2000 anos de história eclesiástica que essa compreensão não foi seguida, vendo como a Igreja de São Pedro arranjou meios de se tornar um poder político ao manifestar a Cidade de Deus na terra, o que meio que tornou esse mundo material e político um possível campo para uma “pecuária celestial” por parte da igreja. Foi assim que ficou difícil aos seguidores de Cristo compreender a mensagem profunda de não ser deste mundo, quando sua igreja insistia no poder e influência mundanos. Ironicamente, seitas como a dos cátaros e os essênios, que se consideravam “não pertencentes a este mundo” e escolherem o isolamento foram sujeitos às perseguições e acusações de heresia em grande parte por não desejarem conformação à igreja mundana, ao seu protocolo de segredo e ao enfoque na experiência mística individual.


Um erro não justifica outro


A bruxa não é deste mundo e, por isso, fica complicado defender uma postura de ‘protetor da terra’ aplicada à natureza essencial daquele que é ‘de fora’. Eu diria que a terra é e deveria ser importante, a terra deve ser protegida e aqueles que tentam usurpar a terra devem encontrar resistência, porque a terra das bruxas é a Terra Prometida e a Era Dourada manifesta em um fluxo temporal de permanência nesse mesmo momento. Vejo a bruxa como parte da família Soleanum, que lado de fora dá consolo ao mundo, e que a bruxa está apenas de passagem, que ele ou ela não é deste mundo.


Mas os tempos estão mudando e não estamos vivendo em um mundo agrícola ou feudal, nem no discrepante e heterodoxo Império Romano. Estamos vivendo em um mundo secular globalizado, com foco na igualdade e nos direitos, sem deveres nem propósito. Poucos de nós têm o luxo de possuir terras e, em vez disso, possuímos metros cúbicos de ar nas cidades. Até a economia se desconectou com o ouro em 1971 e se tornou uma riqueza ilusória regulada por valores assumidos e mediados por banqueiros e pelo mercado de ações. A política se entrelaçou com esse modelo econômico de tal forma que teria afastado Igreja do Estado.


Acho que em um mundo como o nosso, a resposta não está em nos envolver os sistemas políticos corruptos e perdidos, de forçar algum tipo de valor espiritual ou de agir referindo-nos à nossa espiritualidade para nos engajar ativamente em um mundo que está prestes a se dissolver em uma catástrofe espetacular de novos começos. Naturalmente, nos preocupamos com a situação e é difícil ter esperança em um mundo como o nosso. Penso, portanto, que mais do que nunca a bruxa não deve se esquecer de sua função e deve se ver como consoladora dos quebrados e sofridos. Nossa terra não precisa de ativistas, ela precisa de pessoas que cuidem dela, que falem com ela, que a venerem e a alimentem para que ela possa defender sua própria Lei e garantir sua renovação enquanto o mundo secular caminha rumo ao colapso global.


A resposta não é tentar endireitar todos esses paus tortos, mas encontrar bosques e jardins onde possamos reunir nossos parentes e amigos, longe da escuridão das ruínas políticas do mundo, pequenas sociedades autônomas, com o objetivo de trazer de volta a Era Dourada sob a influência da compaixão, do amor e da liberdade…


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