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San Nicolás del Sol, San Transtorno e outros santos sincréticos

“(…) Atrás daquela porta agonizava um homem que cometera a estupidez de trazer a morte escondida sob os bordados dourados de sua farda. Convencida do fracasso dos médicos, Paulina passou a escutar os conselhos de Solimán, que recomendava uma defumação preparada com incenso, anil e casca de limão, e orações que tinham poderes tão extraordinários, como aquelas do Grande Juiz, de São Jorge e de São Transtorno. Deixou que lavassem a casa com plantas aromáticas e restos de tabaco. Ajoelhou-se aos pés do crucifixo com aparatosa devoção camponesa, gritando junto com o negro, ao final de cada oração: Malo, Presto, Pasto, Effacio, Amém. De mais a mais, aqueles crânios, aqueles pregos cravados em cruz no tronco de limoeiro, revolviam em seu sangue a origem corsa, muito mais próxima da viva cosmogonia do negro do que as mentiras do Diretório, nas quais sabia agora não acreditar. E arrependia-se também de ter mofado tão amiúde das coisas santas, só para acompanhar a moda. A agonia de Leclerc, aumentando seu medo, fez com que ela avançasse mais ainda ao encontro do mundo de poderes que invocava em seus conjuros Solimán, agora o verdadeiro senhor da ilha, única proteção possível contra o flagelo da outra margem, único médico provável em face da inutilidade das receitas prescritas…” (Alejo Carpentier, O reino deste mundo. Tradução de José Olavo Saldanha, com alguma correção minha feita a partir do original em espanhol. Rio de Janeiro, 1985, p. 62).


Retomo e cito este interessante trecho de Carpentier para como ponto de partida para aparafusar um pouco mais a discussão feita em uma de minhas outras postagens aqui no Espelho de Circe, agora disponível em https://espelhodecirce.com.br/o-culto-aos-santos-e-a-necessidade-de-se-repensar-o-sincretismo. Ora, considerando uma vez mais a questão da complexidade e riqueza do sincretismo religioso, talvez seja particularmente interessante reiterar que, no contexto do traumático e assimétrico encontro entre europeus, africanos e ameríndios nos últimos quinhentos e poucos anos, houve não só identificação maior ou menor de santos católicos com deuses negros e autóctones, baseados em similaridades de imagem e/ou função, circunstância que, no médio prazo, gerou certo fenômeno de compartilhamento de características e de criação de novos personagens, próprios da experiência criolla; e nem só a apropriação e releitura de entidades do imaginário africano e ameríndio pelo imaginário católico, e vice-versa, criando deslocamentos e associações às vezes bastante surpreendentes. Em diversos casos, certos fenômenos naturais foram considerados na complexa religiosidade engendrada neste encontro eles mesmos como santos, da mesma forma como outrora haviam sido concebidos na América, na América e na Europa pré-cristã como deuses.


Como bem lembra Reginaldo Prandi no prefácio a um fundamental livro de Sergio Ferretti – Repensando o sincretismo, originalmente publicado em 1995 – o sincretismo não é somente um dado observável, mas um processo sociocultural. Por um lado, ele amplia o alcance de uma religião historicamente hegemônica, mas, por diversos motivos, incapaz de se mostrar suficiente, como fonte de transcendência, de organização comunitária e de explicação de mundo para todos os segmentos, grupos e indivíduos de uma dada sociedade. Por outro ele possibilita que, através de empréstimos, correspondências e achegamentos imagéticos e funcionais, aspectos institucionais, rituais e míticos de religiosidades subalternizadas sejam remontados a olhos vistos, manifestando assim resistência e criatividade mesmo em situações de perdas humanas e materiais as mais extremas. Se é o caso, por exemplo, de que “os negros no Brasil perderam muito de suas referências religiosas, como o culto sistemático dos antepassados e, mais especificamente, na Casa das Minas, o culto explícito e obrigatório a Legbá, ambos fundamentais na África para a existência de uma cosmovisão e de mecanismos de orientação e controle da conduta, eles repuseram essas perdas buscando outra fonte, talvez mais adequada no enfrentamento da adversidade contida no mundo novo para o qual foram levados a viver.” Essa reposição não apagou a identidade primária das religiões hegemônica ou tributária, sendo que esta segunda pode, aliás, em situação de mudança, chegar a tantas outras combinações ou reimaginar seus caracteres originais, reinventando suas tradições em sentido próprio. Mas ela conduz a todo momento a fenômenos novos, produtos mesmo do encontro, através das quais as coisas eventualmente mudam muito e se apropriam de elementos estrangeiros para permanecerem mais e mais parecidas consigo mesmas.


Sobre a tendência de considerar os fenômenos da natureza como seres divinos, impossibilitada sob a hegemonia judaico-cristã, mas enxertada no interior da religiosidade afro-ameríndia-católica através do sincretismo religioso, Melville J. Herskovits registrou que no Haiti ao tempo em que ele aí realizou seu denso trabalho etnográfico encontravam-se difundidos os cultos de Saint Soleil (Santo Sol), Saint la Lune (Santa Lua), Saints Étoiles (Santas Estrelas) e Saint la Terre (Santa Terra). É importante pensar que não se trata aqui apenas de recriação do culto da natureza sob um modelo católico, mas de encontro efetivamente significativo; ora, penso que pelo menos desde o momento em que Francisco de Assis cantou o sol como Irmão Sol, a lua como Irmã Lua, as estrelas como Irmãs Estrelas e a terra como Irmã Terra, e que este canto foi considerado suficientemente ortodoxo pelas autoridades eclesiásticas de seus dias, estava de algum modo já posta no interior do edifício religioso católico a possibilidade de uma canonização destes irmãos e irmãs não humanos, tão palpável como a que se oferecia a qualquer um dos irmãos freis e irmãs freiras que acompanharam o Poverello em seu sagrado entusiasmo. Tal potencialidade não deve ter passada despercebida aos voduisants no momento em que cantavam eles mesmos a terra de São Domingos não só como a terra que regavam com seu suor, lágrimas e sangue no árduo padecimento da escravidão, mas que elevavam ao estatuto de Irmã e Santa Terra.


Na fronteira entre o Haiti e a República Dominicana, neste segundo país e em outras ilhas caribenhas de idioma espanhol no qual se difundiu o Vodu, Saint Soleil foi identificado ora com as imagens de São Nicolau de Mirra – muitas vezes dito San Nicolás del Sol –, cujas festividades marcam o início do ciclo de festas natalinas, as celebrações de renascimento do sol do hemisfério norte; e do Ecce Homo, El Senõr de las Tribulaciones e El Gran Poder de Papa Buen Dios, figura que repousa no centro dos altares católicos da mesma forma que o sol repousa no centro de nosso sistema solar, e cujos espinhos da coroa remeteriam aos Doze Apóstolos, às Doze Tribos de Israel, aos Doze Signos do Zodíaco e ao esplendor material do sol.

Busto de Jesus Cristo como Senhor das Tribulações, confeccionada de meado para o fim do século XVIII no modelo iconográfico do Ecce Homo e venerado na Igreja de São Francisco de Assis em Santa Cruz de Tenerife, nas Ilhas Canárias. A esta escultura se atribuiu uma série de livramentos milagrosos da cidade onde se encontra, especialmente o realizado por ocasião da cessação de uma grande epidemia de cólera morbo-asiática que a ameaçou despovoar em 1893. Parece ter origem equatoriana, por ter sido confeccionada com técnicas utilizadas durante o período colonial em ateliês limenhos nos quais trabalhavam ameríndios a serviço da Igreja, ainda que lhe sejam evidentes marcas da arte sevilhana e napolitana do mesmo período. Este Senhor das Tribulações se encontra coroado com um tipo de coroa bastante característico da arte sacra insular do barroco espanhol, dita solideo, e que imita os raios solares de forma bastante naturalista. Talvez tenha sido esta peça particularmente bem trabalhada que, conduzida com pompa e solenidade principalmente nas celebrações da Semana Santa, tenha enfatizado na imaginação religiosa afro-ameríndia-católica do Caribe as associações solares do Ecce Homo. Fotografia extraída de https://tinyurl.com/y7f78kjc.


Sendo assim, Saint Soleil, San Nicolás del Sol, El Señor de las Tribulaciones e El Gran Poder de Papa Buen Dios são aí considerados um e o mesmo, espírito central da fanmi Rada e das divisiones Blanca e Soley, intermediário entre os homens e a fonte primeira do poder criador. Neste mesmo contexto, também é comum lembrar-se de San Nicolás del Sol como Papa Marassa, protetor das crianças e das divisiones Niño e Marassa. Decerto, nisso há o peso da imaginária de São Nicolau de Bari mais difundida no Caribe colonial, proveniente do mundo mediterrânico, que o apresenta sempre acompanhado de um par ou trio de crianças associadas à narrativa do mais assombroso (e talvez macabro) milagre que realizou em vida. Tais crianças foram associadas com os espíritos sagrados de gêmeos e trigêmeos, os Marassa, ora representados pelas imagens dos Santos Cosme e Damião (Marassa Deüx), ora pelas imagens das Santas Fé, Esperança e Caridade (Marassa Twä). Estas, por sua vez, são comumente vinculadas às Três Marias, nome popular dado a um asterismo de três estrelas, facilmente identificável no céu equatorial, que formam o cinturão da constelação de Órion, o caçador. Como consta em certa canción espiritista bastante popular:


Si en el cielo tres estrellas iluminan la verdad:

Es la Fe, es la Esperanza y la hermana Caridad.

Ave, Ave, Ave María…


Pelo recurso a uma apropriação criativa da imaginária católica, fecha-se assim o ciclo, apresentando-se Saint Soleil como pai das Saints Étoiles, uma correspondência bastante compreensível mesmo ao senso comum, postas as posições e representações respectivas do sol e das estrelas em nosso cotidiano.

Imagem: Bandeira Vodu confeccionada por Georges Valris, artista sediado em Porto Príncipe, representando as Marassa Twä–As Três Marias-As Santas Fé, Esperança e Caridade. Fotografia extraída de https://tinyurl.com/y7nfhmbp.


Dentro desta remontagem sincrética, mesmo a noção de uma força que pode trazer revesses diversos aos seres humanos pode ser antropomorfizada e, assim inserida em uma imagem compreensível e legitimada pela cultura religiosa hegemônica, devidamente venerada, ainda que em contradição com os valores hegemônicos. Em tal contexto, o polímata haitiano Jean Price-Mars registrou uma interessante oração dirigida simultaneamente ao Barão Samedi, a Santa Radegunda – considerada uma das irmãs ou consortes da entidade vodu que preside os cemitérios – e a Saint Bouleversé ou San Transtorno, às vezes dito um ghedé, um inquieto espírito de morto mais ou menos recente, e representado com a imagem de Santo Antônio de Pádua ou de Santo Expedito. Em certo momento, esta prece de maldição e proteção (que aqui traduzo de maneira bastante livre, mantendo nelas as rubricas originais por motivo de precisão etnográfica) diz o seguinte:


“(…) Ó, São Transtorno, tu que tens o poder de virar a terra de cabeça para baixo, sois um santo, enquanto sou apenas um pecador; eu te invoco e te tomo por patrono a partir deste dia. Eu te recomendo e te envio para que encontre <cita-se o nome do amaldiçoado> e transtorne sua cabeça, transtorne sua memória, transtorne seu pensamento, transtorne seus sentimentos, transtorne sua casa. Peço-te que transtorne por mim meus inimigos visíveis e invisíveis, e que faça raios e trovões, todos os poderes da tempestade, explodir sobre suas cabeças. <Em homenagem a São Transtorno, reza-se aqui três Pai nosso e três Ave Maria, acompanhadas pelas rogações devidas>. Satanás, a ti eu renuncio; todo aquele que vier contra mim em nome do Diabo e para realizar as suas obras em minha vida, que o Diabo o carregue e lance nas profundezas do Abismo, no mais profundo do Inferno. Ouvidos de besta, língua de víbora, boca perniciosa, se tu vens com autorização de Deus para enganar-me, que caia de rosto ao chão e rasteje daqui por diante no pó e na sujeira, indo de canto em canto, de vila em vila, de casa em casa, de emprego em emprego, sem repouso, como o Judeu Errante, o maldito judeu que insultou Jesus Cristo. Ó Senhor, meu Deus, vinde em meu auxílio e faça com que se perca <cita-se novamente o nome do amaldiçoado>, fazendo com que se perca para mim por inteiro, com que desapareça em relâmpagos e trovões, na fúria da tempestade.”


Além do caráter punitivo das tempestades, consideradas de modo bastante lógico no contexto ecológico-religioso do ecúmeno caribenho como punições divinas, encontram-se neste trecho referências retiradas dos livros bíblicos de Jó e do Gênesis, menções à uma história extracanônica referente à Paixão de Cristo e partículas bem identificáveis de preces católicas. Orações similares, que contradizem bem explicitamente alguns dos valores hegemônicos apregoados pelo cristianismo, dedicadas a Santo Aleixo (San Alejo) e a São Desatador (San Deshacedor) tornaram-se muito comuns em todo o Caribe e América Hispânica e ainda são bastante conhecidas nestes contextos. Teremos oportunidade de tratar disso em ocasião posterior, mas, de momento, assinale-se que o sincretismo, colocado nestes termos, pensado como processo, permitiu não só o refazimento e continuidade das religiões minoritárias através de empréstimos, correspondências, achegamentos e amálgamas significativos das imagens, ritos e instituições extraídos da religião hegemônica, mas que os membros destas, não obstante a sua subalternidade – ou justamente por causa dela – encontrassem brechas que os permitissem usar os elementos assim recrutados mesmo contra a moral e as práticas sustentadas como ortodoxas por esta mesma religião hegemônica.

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