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Resgatando “A” Bruxa

Foto do escritor: Katy FrisvoldKaty Frisvold

Atualizado: 8 de fev. de 2022

“Deixai-me dizer apenas que eu estou à vossa volta e talvez já esteja dentro de vós. Se assim não fosse, como poderia eu reconhecer vossos pensamentos, até mesmo aqueles que vós tentais esconder de vós mesma? Quem sou eu? Sou uma pequena alma, que fala abertamente, sem cerimônia. Somos inseparáveis. Sabeis há quanto tempo estou convosco?… Há mil anos. Eu pertenci à vossa mãe, à mãe de vossa mãe, a vossos antepassados… Eu sou o gênio do lar.” – A Feiticeira, J. Michelet.


Desde a revogação da Lei de Feitiçaria de 1735 ocorrida na década de 50, houve uma crescente ideia de que a bruxaria estivesse intrinsecamente conectada a um culto próprio, algo suportado por uma teoria, hoje ultrapassada, de Margaret Murray e por extensão, Marija Gimbutas. A ideia se manteve na Arte conhecida como Wicca, e para muitas pessoas esta foi a ideia que se manteve: como um tipo de revivalismo pagão-bruxo.


Esta é uma ideia bem difícil de ser revisada. Por anos houve uma propagação de uma espécie de “bruxaria branca” com um dispositivo de segurança contra malefícios (a tal da lei tríplice) e todo um conjunto de deidades que pareciam nos remeter a um mundo de fadas aladas à moda de Tinkerbell, de uma Deusa com suas vestes diáfanas caminhando pelas florestas com um Deus-fauno consorte. É difícil competir com este imaginário fantástico com aquela dura realidade de curandeiras que carregam feixes de ervas em mãos calejadas, com aquelas mulheres que lidam com ossos, sangue e dores.


Embrutecidas, encarquilhadas e cafonas. Como competir com os altares luxuosos e incensos perfumados quando tudo o que se possui é réstia de alhos e plantas, e vidros reaproveitados com alguma beberagem que virge-maria-deus-me-livre?


Mas a realidade é que não podemos falar em “bruxaria”, mas “bruxarias”, pois estamos falando de uma coleção de ações que não estão particularmente relacionadas a qualquer culto ou religião. A “bruxaria” é simplesmente um legado da humanidade. Ela sempre esteve lá, muito mais frequente fora da ideia de sacerdócio do que dentro. E quanto mais se faz a tentativa de criar um divisor de águas entre “bruxaria” e “feitiçaria”, mais estes campos se tocam e se misturam na ponta da corda das forcas e nas cinzas das muitas fogueiras.


As práticas que definem a “bruxaria” dos nossos dias (de pequenos encantamentos, orações e imagens, magia de cordas, o uso de bonecos para curar ou amaldiçoar) são as mesmas que também foram encontradas ainda nos tempos da Babilônia, pela Grécia e Europa e pelo mundo inteiro na mão de pessoas comuns. Talvez o texto conhecido como Enmerkar e Ensuhkesdann seja a descrição mais antiga desta prática, com uma batalha mágica entre um “mas-mas” e a “um-ma” .


“O cenário inteiro começa com o rei de Aratta tentando conquistar a cidade de Uruk, e, ao ver que seria derrotado, contratou os serviços de um mas-mas, que mata o gado do povo utilizando-se de meios mágicos. O rei Emerkar, de Uruk, envia, então, uma sábia para medir forças com o feiticeiro ao demonstrar suas habilidades nas artes de transfigurar-se em animais utilizando-se de fórmulas mágicas. A mulher vence, mata o feiticeiro e lança-o nas águas. Aqui vem o elemento estranho: o termo mas-mas é posteriormente encontrado como um ofício da corte real, atribuído aos domínios curativos e de purificação, um exorcista. Outro ponto interessante é que o mas-mas é derrotado por uma sábia, que, apesar de usar truques semelhantes aos do feiticeiro, não é chamada de mas-mas, mas um ma, que é normalmente traduzido como “mulher sábia”. Este termo, um ma, é, às vezes, atribuído a Inanna, e isto pode sugerir que a fonte do poder é importante no julgamento da magia benéfica ou maléfica, desde que Inanna é a regente do grande planeta benéfico, Vênus.” (N.M.F. – Artes da Noite)


É importante lembrar também da bíblica Bruxa de Endor, a mulher que Saul consultou para convocar o espírito do profeta Samuel. Em hebraico, seu nome é אֵשֶׁת בַּעֲלַת־אֹוב בְּעֵין דֹּור (’êšeṯ ba‘ălaṯ-’ōḇ bə-‘ên dōr), o que significa algo como “uma mulher que possui um “ob” em Endor”, e este “ob” poderia se referir a um fosso no qual se invocam os mortos, ou ainda, espíritos familiares ou talismãs.


De pequenos feitiços a grandes feitos, fato é que todas estas figuras nem sempre tiveram o respaldo dos governantes e dos sacerdotes das religiões e cultos oficiais. Muito pelo contrário, eram ora temidas, ora odiadas. Elas eram as inescapáveis “cabras expiatórias” para todos os males inexplicáveis, e isso não foi diferente nem antes e nem depois que o Cristianismo chegou à Europa, já que este nasce de um mundo subjugando feminino, isento de uma deusa-mãe (Aserá) para abraçar um ventre de aluguel em Maria.


É lógico que as fogueiras tenham ardido com mais culpados: ciganos, judeus e quaisquer outros povos que não convergiam à religião oficial foram também responsabilizados por quaisquer provações que os povoados passavam. Mas indiscutível é o fato de que tenham sido as mulheres quem mais sofreram com estas acusações.


Daí existe uma ideia romântica de que antes que o “cristianismo malvado” pusesse os pés na Europa, as bruxas fossem sacerdotisas aceitas e amadas pelo povo. Um rápido giro pelas lendas trará um arquétipo há muito formado, que diferencia a ideia de sacerdócio e bruxaria, da prática de uma Volva e do Trolldom.


E nem cristãos foram poupados. Muitos queimaram por heresias e bruxarias. Se tomarmos a coisa de dentro da própria igreja, temos o exemplo do padre jesuíta João Batista Girard (1600), que teria exorcizado uns demônios, mas também teria convidado alguns em nome da luxúria.


Mas vamos lembrar também de Joana D’Arc que morreu queimada como herege em 1431. De Joan Peterson (a bruxa de Wapping) em 1652. De Angele de la Barthe, uma nobre que foi queimada como bruxa em 1275. Merga Bien, que morreu em 1603, a primeira de 250 bruxas queimadas na inquisição de Fulda. De Anna Koldings, queimada em 1590 em Copenhagen. De Margaret Jones, que em 1648 foi enforcada na Colônia de Massachusetts Bay. De Maret e Malin Jonsdotter, mortas em 1672 na Suécia, durante a histeria chamada “O Grande Ruído” junto com outras 280 que foram decapitadas e queimadas. Lembremos de Tituba, que em 1692 morreu em Salem, bem longe de sua terra natal. Vamos nos lembrar de Moll Dier, que em 1697 foi acusada de bruxaria e obrigada a escapar na noite fria porque seguia perseguida por uma multidão ensandecida. Seu corpo foi encontrado congelado sobre uma pedra.


Devemos nos lembrar da crueldade pela qual passou De Walpurga Hausmännin, morta em 1587, uma parteira austríaca acusada de bruxaria, vampirismo e infanticídio. Ela caminhou através das ruas em direção à pira, teve que parar quatro vezes antes de chegar lá, e quando chegou, seus seios e braços haviam sido arrancados, cada parte a cada parada.


Este foi o sublime “amor cristão” às mulheres.


Ah Damares! Não vê que continua nos ferindo com este seu amor cristão?


Vamos nos lembrar destas e também de tantas outras centenas sobre centenas que foram mortas, condenadas e degredadas às colônias – e dentre estas colônias, o Brasil. Todas elas eram alegadamente “cristãs”. Não tinha como não sê-lo.


E foram tantas outras…


Para um bruxo, dez mil bruxas.


Devemos nos lembrar… que estas mulheres foram queimadas muitas vezes porque, oras… elas eram “só” mulheres. Humanas de segunda classe, com a mesma dignidade que um animal de fazenda. Mas hoje é diferente, não é mesmo? E mesmo assim, quem são os responsáveis pelos novos evangelhos das novas bruxas? Homens. E novamente somos roubadas da nossa história. Mas se nos deram tal predicado um milhão de vezes, como poderiam?


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