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Re-contando um novo feminino

Atualizado: 8 de fev. de 2022

Sempre tive grande interesse nos “contos de fadas”, ainda que sejam muito subestimados ou ignorados pela maioria nestes tempos de pouco interesse em leitura e grande influxo de informações. Esta forma de narrativa existe desde que a humanidade se sentava à beira da fogueira, e por muito tempo se manteve como uma tradição oral. Tecnicamente, um “conto de fadas” não necessariamente vai falar de casos reais, enquanto as lendas são tidas como reais. Mas contos podem se transformar em lendas. E lendas, em épicos. As fadas, especificamente, só passaram a encontrar a forma escrita no século IX, com o Mabinogion.


Contos de fadas não foram necessariamente concebidos para educar crianças ou jovens, como as fábulas de Esopo. Alguns contos traziam temas como adultério, canibalismo, a mortalidade por complicações de parto, o incesto e o estupro.


Dos contos de fadas mais conhecidos, talvez o de Cinderela seja o que mais encontra versões que tomam colorações diferentes por onde viajou. Classificada como um “tipo 510A[i]“, ou seja, um tipo que possui o tema de “heroína perseguida”, ela incorpora um elemento de opressão injusta e recompensa triunfante. Este conto viajou pelo globo, e é difícil estimar de onde ele tenha surgido originalmente, se do Oriente ou do Ocidente. O que se sabe é que cada cultura, talvez reconhecendo o motivo central como próprio, tenha colorido à sua forma e ao seu tempo.


Estes elementos dos folclores locais ou ainda finais alternativos podem ser encontrados na Ċiklemfusa de Malta, Le Fresne da França, a Ye Xian da China, Sumiyoshi Monogatari do Japão, a Shahrbanou persa, além das muitas variações presentes nas Mil e Uma Noites como “A estória da segunda esposa do xeque”. Revisitada um sem número de vezes depois dos irmãos Grimm, o conto chegou à Disney e neste formato, ao mundo todo.


Mortalidade materna é só o começo da estória


A sempre demonizada madrasta da Cinderela (como a de outros contos) é contada a partir de um tempo onde a proporção de morte por partos era de cerca de 23 a cada mil partos. Parir era tão perigoso que a expectativa de vida de uma mulher europeia era de 25 anos. No Reino Unido dos séculos XVI e XVII, a taxa de mortalidade das esposas nos primeiros cinco anos do casamento era de 70%. Os homens se casavam pela segunda vez, e num lar onde havia pouco acesso à alimentação, era natural que as novas esposas favorecessem suas próprias crias. Então esta “má fama” da madrasta vem daí. O que mantém este tipo de preconceito hoje em dia, pelo menos no Brasil, está relacionado a alguns fatores que se apresentam em camadas:


– Alienação parental, que pode partir de ambos os genitores em casos de pais separados, em especial em casos onde houve disputa de guarda e existam rancores generalizados.


– Vulnerabilidade econômica: especialmente disputas de pensão alimentícia quando um dos genitores se casa novamente.


– Machismo, especialmente nos casos quando a mãe da criança é vilificada pelo pai e a madrasta adota o julgamento sem questionar, ou ainda, buscando evidências para confirmar este julgamento.


Cabe aqui a reflexão do quanto muitas madrastas têm comprado a vilificação das ex-companheiras de seus maridos, e de como, ao projetarem estes sentimentos nos filhos dos companheiros, acabam adentrando neste estereótipo absurdo em nossos tempos. Também cabe a reflexão às mães que vilificam as novas companheiras dos ex-companheiros, ao lançar toda uma carga de projeções e ansiedades. Não é fácil ser mulher e não é fácil ser mãe. As crianças precisam de estabelecer contatos emocionais com ambos os pais independente da vida que levam ou das escolhas que fazem (lógico que reservadas as circunstâncias onde há real risco de vida para a criança).


Mas voltemos à Cinderela e vamos encontrar ali a famosa rivalidade entre as mulheres – na estória, todas com a mesma motivação de conquistar o príncipe – e a dependência econômica de um homem como provedor de “vida feliz para sempre”. É importante lembrar que a estória fala de um tempo em que “bucho cheio” era a única felicidade alcançável.


Esta definitivamente não é uma estória de heroína, a menos que estipulemos que a conquista do “homem certo” seja o único ideal da mulher, e que ela, por ela, não possa ser a grande protagonista de sua própria história. Esta é uma estória de uma mulher em estado de vulnerabilidade. A vulnerabilidade econômica de quem teve seus bens cooptados, a vulnerabilidade emocional causado por um lar onde não existia sororidade – a cumplicidade e apoio mútuo entre mulheres.


Eu sei. Este é só um desimportante conto de fadas. É só um “faz de conta” inocente. Mas quantas meninas foram levadas a pensar que vestidos bufantes e tiaras eram símbolos do sucesso? Por que será que as mulheres ainda teimam em se vestir de princesas europeias para se casar? Porque será que ainda hoje acreditam que se se submeterem sob a opressão da sociedade a recompensa triunfante virá a galope, nas mãos de algum bravo e gentil cavaleiro? São estas estórias que se infiltraram na mente das nossas avós e mães. São estes os modelos reafirmados socialmente até hoje, por homens e mulheres igualmente.


Mas e se…


Cinderela pudesse finalmente ter percebido que se ela batalhasse o mesmo tanto por ela ao invés de outros ela teria mais chances no mundo? O que ela estaria fazendo? O que estaria dizendo?


Talvez ela estivesse empregando as irmãs que pararam com esta besteira de brigar para disputar macho.


E se ao invés de procurar um príncipe (afinal estes são raros em terras onde reinam sapos) ela comprasse a porcaria de um palácio e quisesse viver ali “feliz para sempre”?


– “Meu palácio, minha vida”, diria ela, secando as unhas com um longo sopro.


Será que ela iria achar que a grande meta da vida é realmente um “príncipe”?


– “Ah vá, senta lá queridinho”.


E se fosse, que tipo de poder teria o príncipe contra uma mulher que pode tudo?


– “Wow, você faz umas coisas com esta boca!”


Imagem: sciencesource

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