A diminuição e fim do tráfico negreiro e a abolição da escravidão favoreceram novos fluxos de mão-de-obra para a região do Caribe do meado do século XIX ao meado do século XX. Uma boa parte destes novos imigrantes eram provenientes da Índia ou da Ilha de Java, na Indonésia, deixando pontos orientais dos Impérios Britânico e Holandês para se instalar em suas remanescentes franjas ocidentais. Tais fluxos também foram favorecidos pelo gradativo enfraquecimento do Império Otomano, e, conforme as diferentes nações étnico-religiosas agrupadas mais ou menos à força pela Sublime Porta, apoiadas pelas pretensões imperialistas europeias, reivindicavam uma crescente autonomia – e precisavam lidar com o ressentimento dos turcos por causa disso -, grupos consistentes de armênios, maronitas, melquitas, siro-ortodoxos, drusos, judeus, árabes, siro-libaneses, gregos da Anatólia e das Ilhas Mediterrânicas, albaneses, georgianos, coptas e egípcios muçulmanos acabaram se deslocando para a América Latina. Neste processo, além de corpos e objetos, evidentemente também foi transladado um grande número de crenças e práticas mágico-religiosas. Daí, por exemplo, a extensão que adquiriu, ainda bem antes de seu reconhecimento oficial pelo Vaticano, o culto aos santos religiosos libaneses Rafa Ar-Rayès (1832-1914) e Charbel Makhlouf (1828-1898), venerados não só por seus correligionários maronitas, mas também no catolicismo popular mexicano e centro-americano e na Santería.
Imagem: Velas aos santos Charbel Makhlouf e Rafqa Ar-Rayès acendidas por devotos aos pés de imagem instalada na Catedral de Nossa Senhora de Balvanera, no Centro Histórico da Cidade do México. A Igreja, edificada no século XVII, mas significativamente modificada nos dois séculos seguintes, é a sede da Diocese Maronita de Nossa Senhora dos Mártires do Líbano, que tem jurisdição sobre os católicos maronitas do México e América Central, mas também atende a fiéis de rito latino.
Neste período, Cuba servia principalmente como um ponto de trânsito para imigrantes interessados em chegar aos EUA, ao México e a outros países do continente. O caso desta Ilha, contudo, é um pouco diferente, principalmente em função de sua tardia independência em relação à Espanha, obtida apenas no fim de 1898. Durante o século XIX, verificou-se para esta região uma constante migração de espanhóis vindos tanto do continente europeu quanto das antigas seções americanas, africanas e asiáticas do antigo Império Católico, que se esfarelava a olhos vistos. Em vez de receber indianos, levantinos, caucasianos ou javaneses, os proprietários de terras cubanos recrutaram prioritariamente trabalhadores rurais haitianos, dominicanos e jamaicanos, bem como uma grande quantidade de coolies chineses, que forneceram a seus negócios a mão-de-obra necessária para substituir os escravos negros cada vez menos numerosos, mas formalmente emancipados apenas em 1886.
O termo coolie tornou-se popular a partir do uso que dele foi feito nos séculos XVI e XVII por comerciantes europeus atuantes em toda a costa do Leste Asiático. Alguns autores sustentam que ela deriva do hindustâni quli, talvez diretamente derivada do vocábulo turco qul, que designava em certos contextos escravos de diferentes tipos e, em outros, quaisquer súditos não muçulmanos de um potentado islâmico (principalmente do sultão turco-otomano), independente de qualquer status social que efetivamente detivessem. Outra linha de raciocínio compreende que o termo quli deriva de Kulî, nome de uma tribo ou casta autóctone da região de Guzerate, atualmente no centro-oeste do território da Índia, junto à fronteira com o Paquistão, que teve territórios conquistados pelo Império Português já no início do século XVI. Neste momento, os Kuli já eram há séculos empregados pelos aristocratas hindus e muçulmanos para realizar trabalhos pesados, e foi nesta mesma condição que foram escravizados pelos portugueses para realizar serviços em outras regiões de seus domínios coloniais. Adotado como sinônimo de servo ou criado, o nome desta tribo ou casta passou, por exemplo, ao tâmil como equivalente a escravo. Outros autores lembram que termo quase homônimo kûli, significando o pagamento de um dia de trabalho e, por extensão, um trabalhador diarista, está presente em quase toda a família das línguas dravídicas desde a mais remota antiguidade. Seja como for, o viajante e naturalista germânico Engelbert Kämpfer (m.1716) referiu-se em seus livros de anotações aos trabalhadores portuários empregados pelos portugueses no Malabar e em Macau e pelos holandeses em Taiwan e em Nagasaki, independentemente de sua origem étnica ou geográfica, como cules. Quando os ingleses tomaram o Guzerate e outras regiões do Hindustão em 1760, já era de uso corrente entre eles os termos collie e coolie para designar o mesmo tipo de realidade à qual Kämpfer havia se referido algumas décadas antes. No sul da China, a partir do mesmo meado do século XVIII, o termo kulì passou a ser empregado com frequência, significando tanto esforço amargo quanto, em sentido estendido, trabalho duro.
A transferência, normalmente forçada ou ao menos baseada em engano, de trabalhadores asiáticos para as colônias europeias ocorreu desde o século XVI. Há o registro, por exemplo, de um casamento celebrado em 1573 na Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Lisboa de dois escravos japoneses, pertencentes um mercador com negócios no Extremo Oriente e batizados como Guilherme Brandão e Jacinta de Sá. Estes teriam sido, aliás, os primeiros japoneses a residir de forma permanente no Ocidente Moderno. E em 1589, Dom Luís de Cerqueira, primeiro bispo católico do Japão, repudiou formalmente o comércio de escravos japoneses, que parecia ter então certa participação de religiosos, ameaçando aqueles que nele se engajassem com a pena de excomunhão. Isso se deu porque a cobiça dos traficantes portugueses e de seus aliados japoneses em capturar e transportar para os serviços forçados em outras áreas camponeses pobres do litoral do Japão acabava prejudicando a imagem da Igreja e, por consequência, a expansão do catolicismo na mesma região.
Imagem: Pintura japonesa, c. 1600 e 1625, representando um grupo de portugueses acompanhados por seus criados africanos e japoneses.
No século XIX, contudo, este fluxo se estabeleceu dentro de um sistema bem mais robusto, como resposta direta ao fim do tráfico negreiro e da abolição da escravidão, primeiro nas colônias inglesas, depois em todo o mundo euro-americano. Em 1807, a Grã-Bretanha aprovou lei que encerrava e proibia formalmente o comércio de escravos africanos e começou a pressionar os outros países da Europa com colônias na América a fazer o mesmo. Já no ano anterior, por outro lado, transportou duas centenas de chineses para Trinidad, realizando um experiência social que aparentemente resultou em tragédia, posto que no início da década de 1820 menos de um quarto dos trabalhadores asiáticos aí permanecia. Este tipo de contratempo, entretanto, pareceu não importar muito aos proprietários de negócios que demandavam uma fonte gratuita de mão-de-obra para operar plantações de algodão, de tabaco, de café e de cana-de-açúcar, assim como o cuidado com o gado, a extração de metal nas minas, a coleta de guano e de pérolas e empreendimentos de construção civil no lado ocidental do Atlântico. Efetivamente, depois da abolição da escravidão no Império Britânico, afinal promulgada em 1833 e implementada, com diferentes graus de intensidade, durante a década seguinte, quantidades crescentes de indianos e chineses foram transportados para a Guiana Inglesa, a Jamaica e outras regiões anglófonas do Caribe, assim como para a Austrália e a Nova Zelândia. Não muito mais tarde, os coolies chegaram também ao sul e leste dos EUA, e tiveram um papel importantíssimo na construção das ferrovias e em toda a grande obra de expansão logística empenhada na Marcha para o Oeste. Em Cuba, começaram a chegar desde duas ou três décadas antes da abolição da escravidão negra, principalmente por causa do medo das elites brancas de que uma crescente população de africanos e afro-americanos produzisse aí algo similar à muito próxima Revolução Haitiana (1791-1804). Negociantes euro-americanos e japoneses aproveitaram-se sem misericórdia dos termos desfavoráveis impostos à China com o fim das duas Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860), bem como da crise econômica, da desorientação cultural e do caos sociopolítico resultante destes conflitos, para apresar muitos chineses com o sonho de prosperidade nas Américas. Os portugueses e sino-portugueses de Macau parecem ter sido os principais atravessadores deste tipo de negócio, atuando um pouco por toda a Ásia Oriental, e o recrutamento e venda dos coolies foi descrito pela historiadora Christina Miu Bing Cheng como sendo “o único negócio real” a movimentar a economia de Macau de 1848 a 1878 – quando foi, por fim, aí proibida devido à pressão combinada dos governos britânico e chinês.
Muitos contemporâneos deste processo perceberam a estreita associação do início do trabalho dos coolies com a interrupção da escravidão africana; de fato, não era raro que fossem utilizados em seu transporte os mesmos navios que não mais do que pouco antes eram empregados no tráfico negreiro. Pessoas antes engajadas no movimento abolicionista procuraram criar mecanismos para manter, ao menos do ponto de vista jurídico, o estatuto de trabalho livre, assalariado, dos asiáticos recrutados para o trabalho na América. Todos os coolies levados a Cuba, recrutados via de regra por empreendedores chineses e embarcados desde Cantão, Xiamen, Hong Kong, Macau, Ningbo, Fuzhou ou, mais raramente, Manilha, Singapura e Saigon, receberam e assinaram um contrato antes de partir para o outro lado do mundo. Este tipo de documento, impresso em chinês e espanhol e avalizado por funcionários do Império Chinês e do Império Espanhol, incluía detalhes como o nome do trabalhador, sua idade e aldeia natal, e lhe dava garantia, em troca de cinco ou oito anos de servidão, de que ele receberia o equivalente a um peso por semana, bem como roupas, abrigo e quantidades especificadas de arroz, peixes, vegetais, bebida alcóolica, papel, tinta e velas. Também previa alguns dias de folga mensal e anual, liberdade religiosa e atendimento médico. Com base neste instrumento jurídico foi que a Embaixada Qing enviada ao Ocidente em 1873-1874 pode investigar e intervir a respeito da situação dos trabalhadores chineses que haviam sido instalados nos anos anteriores no Peru, na Guiana Inglesa, nos EUA e em Cuba. O relato do que foi testemunhado por essa comissão era bastante assustador:
“(…) Oito décimos de todo o grupo <de chineses entrevistados> declarou que tinham sido ludibriados ou sequestrados; (…) ao chegar em Havana, tinham sido vendidos como simples escravos (…) a grande maioria se tornou propriedade de donos de canaviais; (…) a crueldade visível (…) é grande e (…) insuportável. Percebe-se também que o trabalho nas plantações é excessivamente duro, e a alimentação, insuficiente; a jornada de trabalho é longa demais, e os castigos, com bastões, açoites, correntes, pelourinhos (…) produzem sofrimento e lesões. Nos últimos anos, um grande número deles morreu devido aos efeitos dos ferimentos, ou se enforcaram, cortaram a garganta, envenenaram-se com ópio e se atiraram em poços e caldeirões de açúcar.”
Imagem: Página da “Descrição ilustrada do Inferno dos vivos”, panfleto anônimo publicado em Cantão em 1857, denunciando a má situação dos trabalhadores chineses nas Américas e o trabalho de seus recrutadores na China. A ilustração em questão apresenta dois hispano-americanos lançando em uma caldeira de açúcar fervente os ossos de chineses mortos durante os trabalhos na plantação. Esta imagem era particularmente escandalosa a seu público-alvo não só por se basear na iconografia chinesa tradicional para as cenas de punição no além, mas também porque era crença comum entre os cantoneses do século XIX que corpo deveria ser preservado – de preferência com a transladação de seus ossos para seu solo natal – para que sua alma pudesse ser apropriadamente apaziguada e venerada por seus descendentes.
No meado de 1875, enquanto Beijing negociava com os governos espanhol, britânico, peruano e estadunidense para proteger seus súditos nominais desta terrível situação, a Imperatriz Xian Qin Xian (mais conhecida pelos ocidentais como Cixi, m.1908) novamente ascendeu ao poder no Império do Meio. Ela entrou em contato com a Embaixada e, garantindo a lealdade de seus membros, frisou em comunicação ao seu chefe, o Conde Li Hongzao (m.1897), que fazia parte de suas atribuições “encontrar meios de ter absoluta certeza de que esses maus-tratos em relação aos chineses sejam rigorosamente proibidos e interrompidos.” Seguiram-se acordos internacionais neste sentido e muitos coolies tiveram a oportunidade de retornar à China nos anos finais do século XIX depois de uma malfadada experiência na América – apesar de alguns deles terem decidido continuar estabelecidos para tentar a vida de outra forma aí para onde haviam sido transportados ou, mais comumente, partido para as então florescentes cidades do Oeste dos EUA. Em 1877, o Império Chinês e o Império Espanhol celebraram um acordo colocando fim ao transporte de coolies para as colônias remanescentes deste e determinando melhorias significativas para os chineses já instalados no Caribe Hispânico. Li Hongzao assumiu o posto de Ministro das Relações Exteriores dos Qing, e Chen Lanbin (m.1895), que também participou da Embaixada, tornou-se o primeiro Embaixador da Dinastia nos EUA, Inglaterra, Espanha e Peru, exercendo esta função de 1878 a 1881.
O recrutamento e transporte para as Américas dos coolies, contudo, continuou intenso desde Hong Kong (possessão inglesa até 1997), Macau (possessão portuguesa até 1999), Saigon (possessão francesa até 1955), Manilha (possessão espanhola até 1898 e norte-americana até 1946) e Nagasaki. Estima-se que cerca de cento e cinquenta mil asiáticos tenham sido levados para trabalhar em Cuba entre 1845 e 1875, e cerca de duas a três vezes este número entre 1875 e 1915. Não é verossímil considerar que um tão volumoso fluxo de pessoas não incidisse fortemente sobre a formação e dinâmica cultural local, inclusive em seus aspectos religiosos. A julgar por relatos chineses e euro-americanos das décadas finais do século XIX, entretanto, sua condição não melhorou muito conforme os tratados internacionais assinados em seguimento à Embaixada Qing de 1873-1874 e à nova ascensão ao poder de Cixi tornavam-se letra morta. Muitos coolies eram escravos por dívidas ou pessoas pobres que haviam sido sequestradas por salteadores em aldeias do interior da China e vendidas em mercados de escravos localizados nas periferias de Cantão, Shenzen, Xangai, Nanquim, Xiamen, Changsha, Beihai, Harbin, Aihun, Tainan e Tianjin. Muitas eram meninas púberes sequestradas sob a demanda de senhores de plantações para serem suas escravas sexuais. As pessoas assim recrutadas não possuíam qualquer tipo de amparo governamental, eram obrigadas a pagar suas passagens de navio com os parcos ganhos que obtinham com seu duro trabalho, e frequentemente, em função desta dívida, permaneciam atados à servidão pelo resto de suas vidas. Muitos dos coolies eram transportados junto com grãos ou porcos e, partindo dos documentos de época, estima-se que em determinado período de intenso tráfico, de 1860 a 1863, mais de 40% deles acabava morrendo no mar ou imediatamente depois do desembarque em função das más condições da viagem da Ásia às Américas.
Imagem: Trabalhadores chineses em um plantação de cana-de-açúcar na Louisiana no meado do século XIX. Ilustração constante em revista norte-americana publicada no início de 1871.
Houve uma tendência de uma história mais tradicionalista em se alinhar com a memória algo purista das comunidades chinesas assim estabelecidas nas Américas e enfatizar o isolamento destas em um mundo de mestiçagem e hibridismo de todos os tipos. Uma análise mais detida da documentação histórica agora disponível, entretanto, mostra o quanto a imagem dos grupos de chineses como insolúveis no interior do processo de crioulização não se pode mais sustentar. Os chineses, sino-cubanos, africanos e afro-cubanos, igualmente desprezados por europeus e hispano-cubanos, acabaram sendo aproximados por sua comum situação de exploração e segregação em relação às classes dominantes. Talvez isso ajude a explicar porque mais de seis mil chineses participaram do exército insurgente na última fase da Guerra de Independência Cubana (1895-1898), e porque, embora a maior parte deles tenha sido relegada a posições auxiliares (como cavar trincheiras, cuidar do fornecimento de água e de comida, tratar dos cavalos, entregar mensagens e, mais raramente, realizar missões de sabotagem contra os espanhóis), alguns deles participaram diretamente do combate. Houve mesmo chineses que se tornaram oficiais, liderando batalhões mistos ou formados apenas por outros asiáticos. Muitos destes, de fato, tinham já experiência militar antes serem embarcados para a América, por serem sobreviventes das forças engajadas na Rebelião Taiping (1851-1864), uma das mais amplas e sangrentas guerras civis da longa história da China, causada pelos conflitos entre as forças imperiais e os membros do movimento político-religioso reunido sob a liderança de Hong Xiuquan (1814-1864), místico que se dizia irmão mais novo de Jesus Cristo e legítimo governante do Império do Meio, e que combinou elementos das religiões de possessão chinesas, do taoísmo, do budismo popular e do protestantismo em uma síntese interessante – e socialmente de grande apelo entre camponeses pobres e oprimidos. Conta-se que não houve nenhum traidor ou desertor entre os chineses e sino-cubanos que pegaram em armas contra a Espanha.
Entre a Independência e o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mais de cem mil chineses e sino-americanos deslocaram-se do Sul dos EUA para Cuba, fugindo da discriminação racial que não raro chegou à violência direta contra seus negócios e famílias. Muitos destes migaram com suas famílias e possuíam certo capital acumulado; estabeleceram-se nos centros das cidades cubanas, às vezes adquirindo plantações, fábricas e comércios decadentes eantigos casarões espanhóis. Muitas vezes utilizaram como força de trabalho compatriotas e semi-compatriotas mais pobres que conseguiam atrair dos EUA ou da China através de recrutadores mentirosos ou contratar diretamente nas zonas rurais da Ilha. Este período foi o do apogeu das companhias de teatro de marionetes chinesas em Cuba, assim como o da fundação e crescimento de diversos tipos de associações sino-cubanas – territoriais, corporativas, políticas, patronímicas, fúnebres, recreativas, de ajuda mútua -, chamadas de hui, huinguan ou huingmoon. Elas eram um meio pelo qual os imigrantes chineses e os sino-cubanos de modo geral interagiam entre si e mantinham alguma consistência de grupo diante da sociedade circundante, fornecendo aos seus membros coisas tais como orientação e encaminhamento profissional, assistência jurídica e burocrática, serviços de tradução, ajuda na redação de cartas e petições, alojamento ou refúgio temporário, seguro funerário, crédito e fundos de emergência a juros baixo. Também recriavam rituais cívico-religiosos chineses na América e forneciam àqueles que beneficiavam incubadoras de negócios, locais de recreação e oportunidade de educação formal.
As primeiras huinguans sino-cubanas remontam aos anos finais da década de 1860, e foram elas a Kit Yi Tong – também chamada de La Unión – e a Heng Yi Tong – também chamada de Los Hermanos –, fundadas respectivamente em 1867 e 1868. Algumas foram acusadas em reportagens de jornalistas cubanos mais ou menos informados de estarem ligadas à negócios do mercado negro, a vultuosos lucros em apostas, ao comércio e consumo do ópio, a extorsões mediante venda de proteção e à cafetinagem. Outras foram associadas às tong e tríades, às máfias sino-americanas, e à propaganda comunista. Muitas destas associações possuíam cerrado cunho familiar e religioso, como a Lung-Con Cun-Sol, fundada em 1900, e a Min Chih Tang, fundada em 1887 por cinco primos que supostamente eram ou haviam sido Monges Shaolim antes do embarque para Cuba. Outras eram guardiães de conhecimentos esotéricos, relacionando-se de alguma forma com suas análogas na China continental que se envolveram ativamente na agitação que desencadeou o Levante dos Boxers (1899-1901), mas que possuíam raízes ainda mais antigas, que remetem à Zhingongtang e outros grupos secretos que pretendiam restaurar o domínio dos han sobre a China depois da ascensão da Dinastia Qing (1644), de origem manchu. Algumas estavam ligadas a estruturas mais amplas, transnacionais e dotadas de amplos recursos e capacidade de operação, que possuíam sede na China e ramos articulados em Macau, em Hong Kong, no Japão, na Coreia, no Vietnã, na Tailândia, nas Filipinas, na Indonésia, na Malásia, na Califórnia, na Flórida, no Canadá, nas Guianas, em Madagascar e na África do Sul. Nas décadas de 1910 a 1950, entretanto, algumas das associações sino-cubanas já aceitavam como membros de honra ou sócios plenos também afro-sino-cubanos e afro-cubanos reconhecidos como amigos pela comunidade chinesa local. A maior parte delas acabou por, neste mesmo intervalo, assimilar em seus rituais certa quantidade de símbolos e práticas maçônicas e para-maçônicas.
Depois de significativa atividade em sindicatos urbanos e rurais, número significativo de sino-cubanos integrou-se à frente contra o ditador Fulgêncio Batista (m.1973) durante a Revolução Cubana (1953-1959). Mais tarde alguns deles se tornaram estratégicos representantes diplomático-culturais do país junto ao governo da República Popular da China, estabelecido durante a Revolução Comunista Chinesa (1946-1950). Com a dissolução da União Soviética (1991), essa importância cresceu e agora há uma presença sino-americana desproporcionalmente alta e influente no governo socialista de Cuba. O Bairro Chinês de Havana, contudo, agora é apenas uma sombra de sua atividade e glória anterior. Quando das nacionalizações das fábricas e dos jornais e da proibição de lojas particulares determinada pelo regime liderado por Fidel Castro (m.2016), a maior parte dos sino-cubanos enfrentou a crise econômica e acabou se retirando para o México, a República Dominicana, a Flórida, a Califórnia, Porto Rico ou o Canadá. Nas década de 1920 e 1930 alguns grupos de japoneses chegaram também a Cuba, mas acabaram sendo assimilados à comunidade chinesa já bem estabelecida.
Imagem: Fotografia da chamada Porta dos Dragões do Bairro Chinês de Havana, tomada em algum momento da década de 1950.
As relações sexuais e o concubinato entre imigrantes asiáticos do sexo masculino, a imensa maioria daqueles que empreenderam a viagem às Américas, e mulheres indígenas, negras ou mulatas não eram incomuns. Os casamentos formais eram mais raros, mas não de todo inexistentes, como atestam os registros das igrejas católicas de Cuba, de São Domingos, da Flórida e da Guatemala e das igrejas episcopais da Guiana Inglesa, de Trindad e Tobago, de Belize e da Jamaica. Há notícia de que alguns chineses compraram mulheres escravas e deram-lhes alforria para poderem tomá-las como esposas, uma prática que espelha no Novo Mundo um antigo costume do Sul da China e do Sudeste Asiático. A figura hipersexualizada, verdadeiramente fetichizada, da mulata de ascendência chinesa, a china mulata, tornou-se recorrente na literatura e música cubana de todos os tipos, associada no imaginário caribenho à ninfomania, prostituição, adultério, perversidade sexual e, em alguns casos, à feitiçaria e aos amarres de amor, ao aborto, ao canibalismo e ao vampirismo. Parece que muitos dos coolies tinham o desejo de trazer suas esposas e filhos para as Américas depois de se estabelecerem econômica e socialmente, mas isso acabou nunca sendo possível por causa dos baixos ganhos que obtinham e da dificuldade de se manter contato com suas terras natais.
Em Cuba, a mistura entre os coolies chineses e os negros em processo de emancipação fez-se ainda forte no campo religioso, na medida em que a religião popular chinesa por eles praticada misturou-se em diversos níveis no interior dos credos afro-cubanos que adquiriam consistência e se emancipavam do catolicismo institucional nas décadas finais do século XIX e iniciais do século XX. Isso não parece muito extraordinário caso se considere que africanos e chineses na diáspora americana, afro-americanos e sino-americanos mantinham crenças e práticas religiosas relativamente similares, principalmente no referente ao cuidado com os mortos e o culto dos ancestrais. De acordo com a Biografía de un cimarrón (1996), as memórias de Esteban Montejo, um negro de mais de cem anos de idade, registradas e publicadas pelo antropólogo cubano Miguel Barnet (n.1940), não era nada incomum que os afro-cubanos participassem das festividades religiosas promovidas pelos chineses em Cuba. Também havia entre alguns asiáticos a crença, inicialmente ausente entre eles, mas depois tomada aos negros, de que, ao morrer, eles voltariam à vida, como reencarnados ou espíritos venerandos, em suas terras de origem. Muitas histórias falam de como os negros se empenharam em aprender a feitiçaria chinesa e em como os chineses se empenharam em aprender a feitiçaria dos negros, e de como os oráculos lançados por sacerdotes de um e outro povo, o I-Ching e o Ifá, sempre se confirmavam mutuamente. Por diversas vezes entre o fim de 1880 e o início de 1881, um coolie observou em um local do litoral do norte da Ilha no qual as águas de um rio encontravam-se com as do Atlântico uma bela figura feminina, que logo se passou a venerar por certo tempo tanto como Guanyin quanto como Oxum e a Virgem de Caridade. Neste momento, na cidade de Jovellanos, na Província de Matanzas, já lhe era prestado culto público, em que, apesar dos protestos das autoridades católicas, grande número também de negros, de mulatos e brancos se reunia para homenagear a Bodhisattva Avalokiteśvara. Tornou-se crença popular na velha Cuba de que o cabelo de um cadáver chinês, ou ao menos a terra de seu túmulo, poderia proteger seu possuidor contra qualquer tipo de bruxaria, constituindo um escudo mágico inviolável ao redor de seu possuidor. Ainda hoje os santeros dizem que ninguém pode desfazer uma maldição chinesa, nem mesmo aquele que a lançou, e só a intervenção de forças divinas muito poderosas poderia mitigar um pouco seu efeito.
O resultado mais visível dessa fusão é certamente a existência da entidade conhecida como Sanfancón, também San Kuan Kong, um vuelta ou camino de Xangô que muitas vezes é aceita pelos próprios afro-cubanos como um dos orixás mais poderosos dos quais têm conhecimento. Seus oratórios não são incomuns na região mais ocidental de Cuba, mesmo naquelas partes onde já não existe mais nenhuma outra memória da presença chinesa. A figura de Sanfancón evidencia alguns fatos interessantes: 1. que os negros e chineses reconheciam em tempo real as similaridades de crença e prática existentes entre suas religiões tradicionais, chegando a considerar que elas eram partes diversas, mas conexas, de um mesmo macrossistema religioso; 2. que os trabalhadores chineses estavam abertos à influência do catolicismo popular e das religiões afro-cubanas em processo de formação, como a Santería, o Palo Monte, o Abakuá, o Espiritismo Cruzado e o Vodou Cubano (presente na parte oriental da Ilha); 3. que os sistemas religiosos sincréticos que estavam em vias de coagulação em contextos afro-diaspóricos nas décadas finais do século XIX e iniciais do século XX estavam abertos a receber em seu interior influências tão aparentemente distantes como as vindas da religiosidade tradicional chinesa. São Fancón é decerto uma recriação afro-sino-cubana do culto a Guan Yu, também dito Gwang Gung, que em certas canções cantonesas é designado exatamente com San-Fan-Con. Mas ele é algo mais do que a extensão no tempo e no espaço da veneração tradicional de Guan Gong, o Senhor Guan, general chinês falecido em janeiro ou fevereiro de 220 d.C. depois de ter um papel fundamental no estabelecimento e proteção do Reino de Shu Han, que recebeu elogios e honras crescentes depois de sua morte, até o ponto de ser deificado durante a Dinastia Sui (581-618). Trata-se de entidade nascida do encontro e da interação entre os coolies e os negros nas plantações e nas fábricas, a partir da frequentação das festas de ambas comunidades e do progressivo compartilhamento de seus segredos, fundados nas analogias práticas que se insinuavam a partir da observação da espiritualidade de ambos os povos.
Imagem: Oratório a Guan Yu-Guan Gong-Sanfancón instalado na Casa Abuelo Lung Kong, atual sede da huinguan Lung-Con Cun-Sol, no Bairro Chinês de Havana.
As histórias referentes a Sanfancón remetem a um coolie de nome Chung Li (ou Zhung Li, ou Chuang Zi) que caiu em transe sob o peso do espírito de Guan Yu durante uma festa de Santa Bárbara, que na Santería é talvez a mais conhecida das imagens de Xangô. Neste estado, teria começado a instar seus compatriotas a se colocar sempre do lado da justiça, da liberdade e da misericórdia e a guardar as tradições de seu povo, garantindo que lhes acompanharia onde quer que fossem. Posta a circunstância da possessão, o conteúdo das palavras proferidas pelo trabalhador chinês possuído e o fato de também Guan Yu ser um guerreiro e um general, de normalmente ser apresentado vestido de sedas vermelhas e/ou marrons, de ser associado ao fogo e à terra, de trazer sempre consigo uma espada, alabarda ou machado, e se lançar contra seus inimigos entre altos brados de guerra, logo se costurou a identificação entre este espírito e o correspondente orixá, bem conhecido e muito venerado entre os afro-cubanos herdeiros da cultura iorubá. Xangô Sanfancón normalmente rejeita a imaginária católica e prefere ser assentado em uma das muitas imagens de Guan Dì, o Imperador Guan, utilizadas pelos devotos deste espírito na religião folclórica do Leste Asiático, no confucionismo e taoísmo popular e no budismo chinês, e passíveis de serem encontradas em todas as muitas partes pelas quais se estendeu a enorme diáspora chinesa. Também está associada às imagens de Budai ou Hotei, risonha e gorducha representação de um monge chinês semi-lendário do século X d.C., que é venerado no budismo chan como o Bodhisattva Maitreya, aquele que ainda há de vir, e recebe grandes homenagens como um santo folclórico entre os budistas japoneses, filipinos e do Sudeste Asiático. Conhecido como Buda gordo e como Buda risonho, é invocado para conceder sorte, prosperidade, saúde e alegria; desta forma, acabou associado na religiosidade afro-cubana ao sexto odú do oráculo de Ifá, Òbàrà, ligado à riqueza, à fartura, à resilência, ao progresso e aos festejos – e regido por Xangô.
Imagem: Miniaturas em porcelana de Budai ou Hotei dispostas para a venda em uma loja chinesa de variedades. É uma crença popular que esfregar sua barriga traz boa sorte e prosperidade.
PS. Muito agradeço a Fábio Costa, Eduardo Regis e a Thalita Hagen pelos comentários que, feitos em uma minha postagem no Facebook, deram origem à pesquisa que levou à redação do presente ensaio. Também a Rodolfo Souza, pelo generoso compartilhamento de indicações de leitura, que me levaram, pouco a pouco, a dar com as referências apropriadas para bem direcionar minha curiosidade sobre este assunto.
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