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O Sangue de Moisés fez transbordar o Mar Vermelho

Moisés abrindo o Mar Vermelho em toda a glória do Technicolor.


Hoje acordei exegeta. Literalmente. Claro que o hoje no qual escrevo não é o hoje no qual você lê, mas para fins práticos vamos fingir que seja. Não faz diferença. Acordei com um pensamento na cabeça: a divisão do mar vermelho e a passagem dos Hebreus é um ensinamento sobre o poder do sangue e isso nos ensina sobre o poder da ancestralidade. Sim, vamos falar (mesmo que nem tanto assim) de Bíblia. Aliás, não estranhemos: poucos grimórios são tão populares quanto a Bíblia. Enfim, vamos discutir mais especificamente como Moisés pode funcionar como um reflexo nosso acerca da ancestralidade.


Enfim, todo mundo conhece a história. Moisés, Hebreu, é criado como Egípcio. Chega a hora em que o sangue fala mais alto e ele pega seu povo oprimido pelo Faraó e se manda para a terra prometida. Entretanto, antes faz milagres, corta o mar vermelho ao meio e se torna uma das figuras mais impactantes da Bíblia.


Claro que há toda uma questão de simbolismo acerca do Antigo Egito na Bíblia. Jan Assmann vai falar que o Egito, nesse caso, é tudo o que a religião dos Hebreus não é: cheia de idolatria, politeísta etc. Algumas linhas gnósticas dirão que o Egito nesse contexto é o mundo material e que a terra prometida é o mundo espiritual. Tirando a discussão baseada em Jan Assmann que já fiz em um artigo aqui no Espelho (aqui), normalmente o Egito fica mesmo com o papel de antagonista vil e bobão. Deixem-me usar o Egito como polo oposto novamente, mas prometo tentar não ser tão maniqueísta.


Vamos voltar ao meu despertar nesse dia de hoje simbólico. Literalmente acordei com essa ideia aí sobre o mar vermelho na cabeça. No que diabos meu cérebro estava pensando enquanto eu dormia? Será que foram os espíritos que sussurraram isso no meu ouvido? Realmente não importa tanto, importa é que isso surgiu.


Nessa minha ideia, o mar vermelho é uma alegoria pouco sutil para o sangue. Por sangue, claro, quero dizer aquele líquido vermelho que corre nas veias, mas também quero dizer ancestralidade. Moisés é o herói ideal para um conto sobre ancestralidade, pois foi criado em um ambiente distinto do seu de nascimento. Melhor ainda, foi criado em um ambiente distinto e cheio de farturas. Enquanto isso, seu sangue corria num povo visto como “menor” e sofrendo diversas privações. Evidentemente, Moisés tirou a sorte grande. Afinal, melhor viver bem do que viver na penúria.


É justamente o desafio de expectativas que estabelece Moisés como um personagem interessante (novamente, estou me baseando em muita coisa do Jan Assmann aqui, mas também não estou tão preocupado em ser fiel às ideias dele). Qualquer pessoa normal teria ficado na dela curtindo a sombra dentro dos palácios do Egito, mas Moisés resolveu que sua ancestralidade valia mais do que isso.


O que Moisés queria? Será que queria apenas libertar o povo Hebreu e se sentir o gostosão? Talvez. Porém, pouco provável. Assumo que sua jornada era mesmo uma jornada de autodescoberta. Claro que o êxodo não se ocuparia das motivações mais íntimas de Moisés, não era essa a ideia. Entretanto, nós, agora, podemos. Por qual razão Moisés mata o Egípcio que castiga os Hebreus? Por razão clara da sua identificação. Moisés é Hebreu, mal resolvido com isso e desejoso de se resolver, imagino. Portanto, se projeta naqueles Hebreus sofridos. Assim, sendo, age destemperadamente e acaba tendo que se pôr em fuga.


Entender a ancestralidade é parte fundamental do autoconhecimento. Quando digo isso, não digo necessariamente saber quem foram seu avô, sua bisavó ou aquele tataravô distante. Claro que saber essas coisas pode ser uma maneira. Entretanto, conhecer seu povo e seus costumes já é um bom (e bem farto) começo. De onde vieram minhas raízes? Onde estou fincado agora?


Eis uma questão interessante: Moisés tinha sangue Hebreu e foi criado como Egípcio. Será que não havia nada em sua ancestralidade que fosse Egípcia? Seus costumes certamente eram. Seus maneirismos eram. Moisés era o “filho” de uma família Egípcia e desta maneira foi passado a ele o espírito Egípcio. Precisamos questionar aqui se a ancestralidade é coisa própria apenas do sangue. Eu diria que não e sigo com essa escolha até o fim desse artigo, mas não nego que o sangue seja poderoso e que ele cobre seu preço e assim voltamos à história de Moisés.


Quando Moisés está a pastorar e vê a sarça ardente, o Deus que se apresenta ele não é o Deus das sarças, do fogo ou dos Pastores – é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Em suma, é o Deus do sangue de Moisés. Antigamente essas coisas eram comuns (não sarças ardentes falantes, só se você ingerir psicotrópicos ou for ungido): cidades e povos tinham seus próprios deuses. Hoje, os deuses são globalizados. Aqui no Brasil, bem longe da área por onde Moisés pastoreava, esse mesmo Deus é louvado por um número infindável de pessoas. Antigamente, não era bem assim. Vejamos Roma. Roma tomava tudo que vinha pela frente, mas mantinha os deuses locais. Vejamos a Mesopotâmia: as cidades tinham seus deuses, mas havia equivalência – ou seja – o Deus dos trovões daqui tem o nome X e o de lá tem o nome Y, logo X equivale a Y.


Isso pode nos passar certa noção de que as etnias e grupos sociais eram mais bem definidos, bem como os grupos religiosos menos sincréticos. Poderíamos discutir longamente isso, mas em resumo: duvido. Sincretismo é processo padrão em qualquer religião e a mistura de povos tá aí desde que o mundo é mundo. De toda a sorte, Moisés, Hebreu, foi chamado pelo Deus dos Hebreus. Ora, ora, se isso não é um belo momento de consciência do tipo… “Rapaz, por que diabos eu tô aqui adorando Hórus se meu Deus é esse aí da planta queimada?”.


Agora é hora de deixar Moisés um pouco de lado. Rapidamente. Vejam se várias pessoas não estão até hoje se fazendo a mesma pergunta de maneira ligeiramente diferente:


“Rapaz, por que diabos eu tô fazendo Ritual Menor do Pentagrama se o Deus do meu povo é Olodumaré?”


“Rapaz, por que diabos eu tô na igreja se minha família é do tambor?”


“Rapaz, por que diabos eu tô no tambor se minha família toda é de Jesus?”


(Vocês me perdoem todas as simplificações)


É fundamental se confrontar com o sangue eventualmente. O que vou argumentar mais para frente é que não é necessário se submeter a ele. Aqui entra uma lição que Moisés não ensina, mas falarei dela depois.


Enfim, depois de muitas confusões, Moisés resolve pegar os Hebreus e sair com eles do Egito. Claro que a ruptura é a passagem pelo mar vermelho, no qual Moisés divide este mar com seu cajado (mais fálico, impossível) e os Hebreus vão pra terra deles e os Egípcios ficam para trás. Parece claro que temos aqui a própria questão da identidade de Moisés manifesta. Ao dividir seu sangue, Moisés opta por seguir pelo caminho dos Hebreus, mas vejamos que para isso, ele precisou dividir seu sangue, dividir o mar e decidir por um caminho.


Agora vou tornar tudo mais complicado (sempre fica mais divertido). Moisés tinha duas identidades: Egípcia e Hebraica. Agora vejamos um Brasileiro médio do século XXI. Vamos fingir que compramos aqueles testes de ancestralidade genética. Pegamos esse Brasileiro que chamaremos de Paulo e damos a ele o kit. Paulo esfrega o swab (aquele cotonetão) na bochecha, bota o swab no tubinho e manda pelos correios até um laboratório em Michigan. Lá nos “States”, um cidadão corre o teste, gera os resultados e a empresa manda de volta. Paulo abre e é surpreendido com a seguinte composição: 25% do sopé dos Alpes Suíços; 38% de Lagos; 12% da Escócia; 5% da China; 5% da Indonésia; 15% de Feira de Santana. Paulo não sabe o que fazer. Paulo não sabe mais quem ele é.


Calma, Paulo. Você ainda é o mesmo. Eis a lição que a história de Moisés não ensinou (pois foi escrita por Hebreus né). Você não precisa dividir o mar vermelho para se encontrar. Moisés fez isso, pois ele escolheu escutar o arbusto flamejante (pensando bem, isso parece meio “sexual” – entre isso e o cajado abrindo o mar vermelho, acho que podemos entender tudo isso como a história dos casamentos de Moisés), mas não é preciso escolher lados.


Ah, Eduardo, ele fez isso, pois os Hebreus estavam sendo chicoteados. Lembremos que estamos operando no nível simbólico. O que eram os Hebreus sendo chicoteados pelos Egípcios? A herança Egípcia de Moisés se sobressaindo, claro. Já sabemos que muito provavelmente não houve êxodo histórico algum, então não vamos insistir na interpretação literal.


Há poder no sangue e o sangue guarda muitos mistérios. Moisés então teria desvendado esses poderes e eu acho que é importante que todos nós exploremos isso eventualmente. Existe uma série de fatores que me parecem cada dia mais relevantes: a terra e o sangue são dois deles. Não há um mais importante. Ambos são poderosos e o segredo talvez seja que ambos podem ser harmonizados.


Como o nosso Paulo fará isso? Aí esse é o mistério do Paulo. Ele pode simplesmente se lembrar de que é Brasileiro e ficar com a terra. Ele pode explorar um pouco daquele sangue Suíço dele e um pouco também do Indonésio. Não estou sugerindo que Paulo monte um altar diversificado (embora ele possa). Acho que Paulo pode perceber que ele é complexo e que suas raízes se espalham por várias partes do mundo e por várias culturas e explorar isso. No fim, claro, Paulo decidirá como fazer. O que importará mesmo é que ele terá explorado uma potencialidade importante.


No meu ataque de exegeta herético fiz um salto simbólico que certamente não é inédito e coloquei a identidade étnica de Moisés como raiz do mar vermelho. Usei isso para tentar questionar nossa própria noção de identidade e tentar convencer o leitor de que não precisamos abrir mão de nada que seja nosso para nos conhecermos melhor. Finalmente, vamos deixar claro: conhecer o sangue não é limitar-se pelo sangue. Não vamos confundir autoconhecimento com barreira. Assim, muito honestamente, assumo que as perguntas que coloquei como exemplo acima falando de Jesus e Olodumaré eram apenas recursos para botar o texto para frente. No mundo real, não acredito que elas façam sentido. Entretanto, como recurso elas funcionam, pois, de fato, estão sendo perguntadas.


Saber o poder que há no sangue nos abre mais portas, mas não necessariamente fecha outras.


Imagem: Moisés abrindo o Mar Vermelho em toda a glória do Technicolor

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