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Leia só se for capaz de sonhar

Atualizado: 8 de fev. de 2022

Os sonhos são tão antigos quanto a própria humanidade, assim como as memórias das vivências, das aventuras dos desbravadores da vida, as estórias fantásticas e os “causos” na beira do fogo. Histórias reais, de terror, de encanto, magia, de fadas e bruxas. Cercados pelos chiados misteriosos de insetos, os piados das aves noturnas e por sons nem tão conhecidos que soam da mata escura, contávamos coisas uns aos outros.


Os contos que mais tarde se tornaram “contos de fadas” pré-datam a escrita, os relatos oficiais e os livros. Esta era a forma primordial de legado humano, do compartilhar de sabedoria através das gerações. Ela foi essencial à nossa evolução como espécie. A narrativa partia de um indivíduo que fornecia contornos pessoais a uma dada essência a outros que a repassavam com suas próprias vozes e encantos. Era uma tradição fluida e viva, e que captava um espírito que atravessava os tempos ao mesmo tempo em que se vestia nas cores das estações da humanidade.


Esta também era a forma em que se falava das forças sobrenaturais, dos encontros com os espíritos, dos locais de poder. Era no convívio com as plantas que se aprendia sobre elas. Era olhando para a Lua que ficávamos banhados nela, intoxicados, tomados pelo êxtase em festejos e bailados ao redor da fogueira.

Era sob o céu da mãe terra que surgiam as bruxas, feiticeiras, as xamãs e as loucas que ousavam dançar até as sandálias gastarem no chão de terra ao redor de um mastro. Era no fogo que estas mulheres ganhavam o brilho de seus olhos, e era na fumaça que surgiam os espíritos. Eram nas fontes, lagos e córregos que elas curavam. Era sob a lua que elas amavam e se amavam.


E ainda é.


E quem diz que não pode? E quem diz que não é?


Há poder no conto. Há poder nas narrativas que nos fazem refletir, viajar e sonhar. A partir desta forma básica do compartilhar criamos os mitos e as mitologias, até mesmo aquelas que hoje servem para nos ferir e limitar nossas experiências enquanto humanos.


Temos nos orientado há tempos por narrativas escritas sob luzes artificiais e mãos ávidas, por muito conhecimento e menos sabedoria. Temos vivido distantes do chão de terra, do céu noturno, do fogo, das águas e das pessoas. Empilhados. Confinados. Quem nos conta tudo é uma caixinha luminosa. Os que estão presos nesta estória mal contada estão aí pra ter razão, mas não anda dando pra ter razão e ser feliz ao mesmo tempo. Às vezes a gente tem que escolher, e escolher bem.


Estamos presos aos dogmas sem entender que a doutrina tem um potencial de nos libertar. Presos às formas, cubos e edifícios. Às fórmulas e equações. Ao que os outros acham que somos e que devemos ser. Não pensamos na função. Não refletimos sobre o que é possível. Não ousamos. Reclamar dá menos trabalho. Ser guiado dá menos trabalho.


No fundo todo mundo quer ser é feliz, mas isso nem sempre significa ser aceito ou amado (caso ainda não tenham te contado). No final esta coisa de aceitação tem um bocado de medo envolvido. O medo da inadequação, e o medo que a solidão seja uma noite escura.


Mas a noite escura é ruidosa e cheia de vida, se você se der uma chance para vivê-la verdadeiramente. E as pessoas não são tão perfeitas quanto elas gostam de achar que são. Talvez, se você dormir sob um manto de estrelas, você descubra que somos todos tão solitários quanto elas, mas que todos nós temos lugar para brilhar porque o céu é muito vasto.


Poucos são aqueles que questionam quando surgem mais religiões do que cirandas, como despontam pastores ao invés de bruxas. Sobre quem controla a narrativa sobre tudo e sobre todos. Muitos são aqueles que esperam alguém dar poder e legitimidade para se fazer o que é preciso fazer. É só feijão e nada de sonho. Muito certificado para pouco poder. Muito deus para pouco fauno.


E por que será que a humanidade anda doente? Por que será que as pragas se multiplicam e a gente não aprende?


Há poder na voz do povo, e diz-se que isso seja o tal de “Vox Populi, Vox Dei”, mas por que será que a humanidade está voltando às trevas do medo e da ignorância? Quem está controlando a narrativa?

Imagem: Filme ”O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman


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