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Foto do escritorRaphael Kakazu

Ensaios: Osculum Infame

Tenho vergonha de mim,

Pois faço parte de um povo que não reconheço

Enveredando por caminhos que não quero percorrer.

Ao lado da vergonha de mim,

Tenho pena de ti,

Povo deste mundo!


Vamos continuar conversando hoje sobre algo que se iniciou semana passada quando publiquei o ensaio “A Mão Direita do Diabo”. Lá conversamos bastante sobre prazeres, sobre ressignificar o que é o prazer e o que é sofrimento e onde cada um deles se encaixa na nossa vida.


Hoje quero conversar sobre vergonha, um sentimento ambíguo e que como toda a gama de emoções que permeia o ser humano, habita dentro de todos nós e se alimenta de um padrão ético e moral influenciado pela sociedade no qual somos criados. É vergonhoso ter pensamentos negativos, é vergonhoso expressar sua fúria, é vergonhoso gostar de alguém do mesmo sexo, é vergonhoso gostar de sexo (se você for mulher), é vergonhoso não gostar de sexo (se você for homem), é vergonhoso viver a vida deliciosamente num fluxo venusiano de fluidez e deleite.


Entende como a vergonha é um grande problema? É um sentimento de repressão que vem do interno e bloqueia todo um fluxo de poder. Mas por que ultimamente tenho falado tanto de padrões humanos como aquele jovem praticante de yoga e seguidor de kaballah porque viu uma entrevista da Madonna? Porque todos esses bloqueios impedem com que você alcance a totalidade de viver a feitiçaria em sua forma mais bela, nua e crua. Nunca atingiremos o total potencial de nosso ser amarrados e amordaçados por regras que cabem somente ao homem puritano e à consciência frágil. Nunca se praticará uma bruxaria ou feitiçaria verdadeiramente real, palpável e poderosa enquanto esta for ditada por regras humanas inventadas por outros seres humanos.


De tanto ver triunfar as nulidades,

De tanto ver prosperar a desonra,

De tanto ver crescer a injustiça,

De tanto ver agigantarem-se os poderes

Nas mãos dos maus,

O homem chega a desanimar da virtude,

A rir-se da honra,

A ter vergonha de ser honesto.


Vamos então nos voltar para a imagem da bruxa, aquela lá de tempos imemoriais, antes do sacerdócio, antes da religiosidade, antes mesmo de denominarem-na bruxa. Aquele ser que não sentia vergonha de ser quem era em sua plena dualidade, a salvadora e o monstro; a parteira e a aborteira; a curandeira e a envenenadora. Esse ser ausente de vergonha e que hoje espelha tantos contos e fetiches dos que procuram integrar-se a esse caminho indomado.


O que ainda prende o ser humano distanciando-o dessa figura? Por que sentem vergonha de dizer que há dias em que podem amaldiçoar um mundo inteiro e dias em que podem curar uma comunidade toda? Por que se sente vergonha de dizer que há dias onde não se quer nem ouvir em falar em feitiço ou bruxaria? Que também ficam tristes? Que também se questionam coisas? Por que ainda se envergonham da própria humanidade?


Perguntas como essa precisam ser respondidas e confrontadas para que se tenha um esclarecimento de quem somos nós dentro desse universo imenso. Qual o nosso limite, se é que há limites, e qual a extensão de nosso ser dentro desse ofício tão grandioso e cheio de possibilidades. O nosso Osculum Infame, ou Beijo da Vergonha, não é tão ligado ao sexo quanto faz-se parecer, mas está diretamente ligado à vergonha dos sentimentos que nos habitam e da pele que nos cobre. Beijar a outra face do Diabo é olhar para aquilo que não queremos olhar em nosso interior e prestar reverências a isso. É aceitar que uma vez comungado com tais forças, somos plenos e, consequentemente, completos em nossa soberania e domínio.


As leis são um freio para os crimes públicos.

A religião para os crimes secretos.


Não tomem estes últimos ensaios de 2019 como uma ponte entre feitiçaria e psicologia, até porque eu detesto essa associação, não estamos falando em arquétipos tampouco em indivíduos generalizados; estamos falando sobre aqueles que querem peregrinar no Caminho Torto, que anseiam viver a vida deliciosamente e serem comtemplados pela chamada Bruxaria (nem moderna, nem tradicional, mas bruxaria como ela sempre foi) e que no meu caso optei por chamar de Feitiçaria (tenho meus motivos linguísticos e bla, bla bla, outro dia conversamos sobre isso). Deixem a psicologia para os psicólogos e a religião para os sacerdotes; vamos viver o mistério que habita a imensidão de um céu noturno e que não necessita de explicações verbais.


Rui Barbosa ilustrou nossa conversa hoje. Ele foi jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor, orador e outras coisas. Um dos intelectuais mais brilhantes do seu tempo e um polímata brasileiro; e essa palavra, polímata, que significa “aquele que aprendeu muito” me leva a uma associação direta com o ícone da bruxa, como aquela que também aprendeu muito ou que sabe de muitas coisas. Enfim, está ótimo de filosofias por hoje, semana que vem tem mais.


E um último manifesto, dessa vez de autoria minha:


“Vamos curar as feridas uns dos outros, vamos amaldiçoar as plantações dos adversários, vamos gargalhar frente à política dos homens, vamos verbalizar sem vergonhas, vamos viver sem camisas de forças e moldes de bolo, vamos amar “dolorosamente” até que se transforme em “prazerosamente”. Vamos ser aquilo que somos e deixar o mundo lidar com os problemas que são do mundo.”

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