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Ensaios: O Contador de Histórias

“No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra.” – Carlos Drummond de Andrade


Você sabe o que é um feitiço e/ou como se constrói um feitiço? Antes de termos acesso aos inúmeros grimórios e receitas prontas; num mundo onde a feitiçaria era um perigo para a sociedade e com leis restringindo sua prática, como as pessoas realizavam seus feitos mágicos? Numa época onde somente a realeza era alfabetizada, como as supostas bruxas e feiticeiras sabiam quais combinações fazer e quais cantos entoar?


Eu me lembro de quando criança, uma das coisas que eu mais gostava de fazer era criar histórias, imaginar a mim mesmo realizando feitos ou vivendo aventuras que não seriam possíveis para um ser daquela idade. Eu me lembro de desenhar cada uma dessas epifanias (gosto de chamar assim porque naquele momento era como se eu tivesse vivido cada uma das coisas que minha cabeça criou a um nível extático), de escolher cada cor cuidadosamente para representar minha criação, de me preocupar em ocupar todo o espaço da folha e fazer algo cuja história pudesse ser compreendida por quem visse minha obra de arte; motivo pelo qual eu amava mostrar meus desenhos para os outros e perguntar o que eles haviam entendido.


Bom, anos se passaram, a criança se tornou um adolescente e o adolescente consequentemente escolheu ir para a faculdade. Cursei design gráfico (nota de curiosidade). Lá eu retomei, ou melhor dizendo, relembrei sobre o que eu fazia quando era criança aprendendo que cada coisa deve contar sua história, esteja esta explícita ou subjetiva. Logo me apaixonei por identidade visual e branding, me encantava o estudo e a importância que se davam ao criar uma marca, ao transformar um ideal em um símbolo e como este símbolo, uma vez impregnado na vida das pessoas, era imbuído de um valor simbólico pelo ideal que ele transmita e/ou representava.


Em paralelo a isso, meu caminho dentro do universo da feitiçaria me levou a muitos aprendizados, muitos questionamentos, muitas frustrações e muito amadurecimento. Dizer que tudo foram flores amarelas, velas roxas e incenso de verbena é a mesma coisa que dizer que eu sou loiro e dos olhos azuis. Sou descendente de japonês (nota de curiosidade número dois).


“Sonho as ilhas, o palácio

onde Circe me espera,

o que me dirá a deusa

que convive com os porcos?

Sua beleza flamejante

no mar, a quantos anos me convida

inocente de ser homem?

Serei o animal de seu amor, impassível.

O corpo do porco, além, exalando

um porto de violetas,

iludido pelo desejo de um deus

que nos transforma, o que será então

da carne onde o tempo

crava seus punhais, se de verdade

os deuses brincam conosco?

Estar encantado é viver nesta ilha

por um tempo, saciando-me de espinhos,

esperando que as portas de seu palácio

ressuscitem os meus olhos.” – Nelson Romero Guzmán


Feitiços, então, sempre foram objetos de estudo para mim; eles fazem sentido dentro da minha vida e sob a minha ótica são bem mais ricos do que os julgam, e isso quer dizer que: existem várias formas de eu ver o que compõe um feitiço e o fato de eu ser amante do assunto não significa que tenho um feitiço para cada dia do ano.


Dei toda essa volta no túnel do tempo só para chegar na conclusão de que feitiços são contos, são histórias criadas a partir de todos os aparatos dispostos na mesa do feiticeiro, incluindo sua capacidade de imaginar. É como Carlos Drummond de Andrade escrevendo “No Meio do Caminho” ou Nelson Romero Guzmán escrevendo “Circe Me Espera”, um feitiço é uma obra arte.


Ele vai te contar uma história, cada objeto, cada ingrediente e cada palavra murmurada vai ser um pedaço dessa história que quando organizada e bem estruturada, será um lindo poema tátil-visual. Vou contar para vocês um pouco sobre um feitiço.


Eu tive a companhia de uma pastora belga lindíssima durante a infância até a adolescência. Do lado dela, eu me sentia protegido, seguro e ao mesmo tempo menos solitário. Então, um dia já na vida adulta, eu fui acarretado por um medo sobrenatural que não soube dizer a origem, então, fui por em prática a teoria de um feitiço.


Eu peguei um punhado de pelos de uma cachorra negra (fui até um pet shop e inventei um trabalho de faculdade), embebi três barbantes em cola e rolei-os nos pelos; quando secaram, eu murmurei peticionando proteção enquanto trançava aqueles fios. Nessa trança foram colocados quatro espinhos de rosas e quatro ramos de arruda. Esse fetiche terminou sendo colocado em volta de uma ferradura que ficava acima da minha porta de entrada.


E esse foi meu feitiço que aparentemente é cheio de símbolos que hora fazem sentido, hora não, para quem não sabe dos meus símbolos pessoais. Contudo, ele contou a minha história, contou sobre o estado no qual eu me sinto seguro e é isso que faz um feitiço ser eficaz ou não. Você sabe qual a história por trás de todos os seus apetrechos? Por trás dos encantamentos que diz?


Ali naquele momento eu contei a história de uma cadela que já havia caminhado pelos caminhos das flores vivas, mas que agora estava na encruzilhada dos mortos; ela em outros tempos cuidou de um menino que já não era tão menino, ele havia se tornado um adulto; um adulto que estava aprendendo a viver no caminho torto e que havia aprendido a encantar no mundo dos espíritos (ele estava aprendendo a seduzir como uma rosa vermelha). Dizem que o destino são três fiandeiras, dizem que os cães são sagrados na encruzilhada de Hécate, assim como a arruda, e que há duas encruzilhadas, dos vivos e dos mortos e que estas se sobrepõem; dizem que cavalos são capazes de cavalgar em ambos os mundos e dizem que uma bruxa está sempre acompanhada de um espírito familiar que a protege.


Conseguiram entender a história contada naquele feitiço? E essa é a razão pelo qual eu digo que fazer um feitiço é assumir o papel de bardo, é ser um contador de histórias, um fiandeiro, um poeta e um artista. Existe um motivo pelo qual chamamos a feitiçaria de Arte, da mesma forma que existe um motivo pelo qual chamamos pintores, escritores, ilustradores, atores, etc, de artistas; então, porque não chamar também o bruxo, o feiticeiro, o conjurador, etc, de artistas?

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