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Ensaios: Entre a clareira e o templo

“Não me ajeito com os padres, os críticos e os canudinhos de refresco: não há nada que substitua o sabor da comunicação direta.”


São tantas as coroas de plástico e batinas de cetim enfeitando o mundo esotérico que eu me pergunto se as pessoas realmente entendem a função de um sacerdote, o que esse ícone nos ensina sobre abdicação e sacrifico em prol de um trabalho maior que si mesmos.


Do outro lado desse cenário temos bruxas que não sabem ouvir o sussurro dos ventos, olhar por entre as pedras furadas para ver o reino das fadas, gozar em múltiplos aspectos do seu próprio ser sem vergonha de ser quem, de fato, são e/ou até mesmo cozinhar à partir de uma horta um veneno ou um bálsamo com as mesmíssimas ervas. E então eu me pergunto, novamente, se essas pessoas entendem o é viver feito uma bruxa, o que significa ser um peregrino do caminho torto.


Logo, vejo nessa modernidade uma confusão gigantesca sobre ser um bruxo, um sacerdote e não ser nenhum dos dois no final do dia por não entender nem um e nem o outro. E digo isso com certa propriedade porque vim dessa geração, vivenciei na pele essas dúvidas e cozinhei por alguns anos esses questionamentos por estar dentro desse mesmo meio e querer entender a fundo qual a real necessidade de ostentar tantos títulos. E vejam bem, querer conversar sobre isso não é um ataque, tampouco, a maçã de Éris; mas um debate necessário para chegarmos mais perto do entendimento de quem somos nesse tabuleiro de xadrez, qual o caminho que ressoa mais conosco no fim do dia.


“Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?”


Muito do que estou dando voz nesse ensaio começou ano passado quando escrevi “Banquete com Deuses”, e dessa vez estou apenas concluindo o raciocínio e apresentando um quadro mais amplo sobre aquele debate onde incitei que uma bruxa não serve aos Deuses, ela se senta à mesa junto deles, motivo pelo qual não trarei à tona Deuses e Deusas (até porquê, acho piegas definir tais conceitos como o bruxo e o sacerdote somente do ponto de vista com relação a divindades sendo que há tantas outras características a serem apontadas).


Mas e um sacerdote? Onde ele fica nessa dança das cadeiras?


Ele também não é aquele ser que serve aos Deuses cegamente, como um criado servindo seu criador; mas um sacerdote é aquele que serve a sua comunidade, muitas vezes abdicando de si mesmo em prol do bem daqueles que estão sob seus cuidados, ele é um porta voz do divino sim e somente ele sabe o quanto é necessário sacrificar pra ser esse psicopompo. A visão de serviçal é uma herança cristã que ainda impregna o ser humano; não é fácil se desvencilhar destes sutis reflexos, mas é nossa escolha tentar.


Pra ilustrar melhor esses dois ícones vou contar uma história:


“Existiam duas mulheres dentro de um vilarejo. Ambas estavam grávidas e com dúvidas quanto ao que o futuro reservava. A primeira mulher foi até uma bruxa que vivia à margem do vilarejo. Uma mulher descrita como uma estranha que falava com os pássaros e caminhava na calada da noite pela mata. Ao entrar na morada daquela bruxa a mulher lhe contou sua história e a bruxa disse-lhe as seguintes palavras:


Para dar fim ao teu bebê, misture num jarro de aguardente artemísia, romã, poejo, hibisco e sálvia. Saiba que sentirá muita dor e sangrará até colocar tua própria vida em risco. Mas se quiser ter seu bebê e seguir com a vida, aprenda a ver o mundo através de um espelho d’água, seduza a tudo e a todos quando necessário; seja temida, mas nunca dispensável. Se quiser, venha a noite até a clareira no meio da floresta e conheça outras que poderão ser você um dia, donas de si e rainhas do mundo onírico.


Ao sair da cabana da bruxa a mulher já não tinha tanta certeza se o aborto era o seu real desejo ou se estava movida pelo medo do fardo de ser uma mãe solteira; a bruxa lhe havia apresentado um novo olhar sobre a mesma realidade; ela havia lhe dado o poder da escolha e uma perspectiva sobre o futuro.


A segunda mulher se dirigiu ao sacerdote do vilarejo cujo templo estava no centro de toda aquela arquitetura. Ela foi recebida por todos os sacerdotes e sacerdotisas que ali habitavam e ao lhes contar sua história ouviu as seguintes palavras:


Peça aos Deuses um sinal, mas se estes até aqui te trouxeram ouça-nos primeiro antes de qualquer decisão. Nosso templo é humilde e carece de luxos, mas se a vida tornar-se muito difícil, aqui você encontrará abrigo, alimento e acalento até conseguir estruturar-se novo, estará protegida de qualquer um que queria o teu mal. Nada lhe será exigido, mas uma vez que fizer tua escolha saiba que ela será sua e terás que conviver com isso pelo resto de sua vida.


A mulher saiu do templo sentindo-se menos sozinha e abandonada. Ela também não tinha mais certeza sobre nada pois os sacerdotes lhe apontaram uma nova possibilidade de vida, menos solitária e cruel.”


Agora vocês conseguem entender a real diferença entre esses dois seres? Um não é melhor que o outro, tampouco são a mesma coisa. Eles ensinam e vivem por vias diferentes e ao querer adotar qualquer uma dessas nomenclaturas, diria eu, para levarmos ao íntimo os seguintes questionamentos:


“Eu estou pronto para o ônus e o bônus de qualquer um desses caminhos? Eu tenho condições, físicas, materiais, mentais, emocionais e espirituais, de prover para a minha comunidade quando esta estiver carente? Eu sou destemido(a) o suficiente para encarar a solidão e a dualidade de caminhar entre dois mundos e não pertencer completamente a nenhum deles? Eu me basto se não restar mais ninguém ao meu lado? Eu sou capaz de lidar com o pior reflexo de mim para entender o melhor que posso ser?”


Essas perguntas filosóficas e de tirar o sono são boas diretrizes se você é aquela pessoa que sente a necessidade de se nomear algo, seja bruxa, feiticeiro, sacerdotisa, gran-alguma-coisa, e assim por diante.


“Tudo o que acontece é natural – inclusive o sobrenatural.”


Mario Quintana ilustrou nosso ensaio. Poeta, tradutor e jornalista ele foi considerado o “poeta das coisas simples”, um dos maiores brasileiros do século XX. E pra terminar esse ensaio eu queria deixar algumas observações pessoais acerca desse assunto.


Não é a sua coleção de coroas, títulos e mantos que indicará o tamanho do teu poder; mas sim o teu sucesso na vida cotidiana. Não me conte sobre seus deuses para me contar sobre sua bruxaria; me conte sobre você e como você enxerga o mundo. Sacerdócio é uma coroa pesada e bruxaria é um caminho torto que nem sempre fará sentido imediato.

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