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Bruxaria Portuguesa, Bruxaria Brasileira

Em razão do apreço com que meu texto anterior, sobre as Bruxas de Évora, foi recebido, selecionei e reorganizei trechos de um estudo meu intitulado A Gnose do Diabo, publicado em Português na minha antologia Scientia Diabolicam, onde delineei o método (ou métodos) usado pelas bruxas portuguesas, muitas das quais foram degredadas para o Brasil, conforme suas declarações nos Tribunais do Santo Ofício.


Novamente, a fonte primária que utilizei foi o excelente O Imaginário da magia: feiticeiras, advinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, de Francisco Bethencourt. No que segue, as citas em itálico são dessa fonte.

A Inquisição em Portugal, no século XVI, apresentou algumas peculiaridades absolutamente únicas. Os inquisidores mostraram as obsessões habituais a serem encontradas em outros tribunais da Europa, com três conceitos fundamentais da definição de bruxaria diabólica da Igreja, ou seja, o Pacto, a Marca e o Sabá. No entanto, o que eles receberam foi uma torrente de dados etnográficos loquazes sobre a magia popular do povo comum, que extrapolou muito do que eles procuravam.


[…] a análise intensiva dos cerca de cem processos da Inquisição que selecionamos sobre a magia mostrou uma enorme loquacidade dos presos, denuciantes e testemunhas, apesar de nenhum deles ter sido submetido a tortura. As declarações encontradas não correspondiam, na maior parte dos casos, ao universo mental dos juízes. Enquanto os inquisidores se preocupavam em saber se as práticas mágicas tinham se beneficiado do pacto diabólico, os agentes inquiridos falavam de práticas sincréticas, com invocação alternada de Deus e dos demônios, de almas e de forças sobrenaturais, no lançamento de sortes, na realização de conjuros, no prognósticos do passado, do presente e do futuro, na elaboração de filtros de amor, fervedouros, ligamentos, amuletos, nôminas, cartas de tocar, feitiços de benquerença e de malquerença. [O Imaginário da magia]


Das diversas confissões e denúncias recolhidas pelos inquisidores, podemos reconstituir o método usado pelas bruxas para convocar os demônios, de acordo com as seguintes características:


Lugar: As invocações geralmente eram feitas nos campos ou matos, às vezes no quintal da casa. O espaço doméstico poderia ser perigoso para outras pessoas (pois os demônios poderiam atacá-las) e para a própria bruxa (que poderia ser espionada e denunciada), mas algumas bruxas acreditavam que os espíritos podiam se manifestar melhor nos lugares isolados.


Margarida Pimenta, concretamente disse, que disse a uma cliente, “que lhe não podia fazer cousa nenhuma em casa de sua irmã a Calista por estar um menino […] filho da dita Calista e temia que os demônios lhe fizessem algum mal e que lho iria fazer antes no campo porque lá lhe vinham os demônios melhor”.


Tempo: Os dias escolhidos eram sextas, quartas e segundas-feiras, geralmente entre as horas noturnas das 22 e meia-noite.


Proteção: Algumas bruxas usavam variações simples dos círculos mágicos que conhecemos dos grimórios, geralmente desenhando um círculo simples, com um sinal de Salomão ou uma cruz, no qual elas entravam.


Isabel Lopes, por exemplo, costumava dizer que fazia uma roda na casa e entrava nela e de dentro havia de chamar os diabos, os quais se a achassem fora daquela roda e do sino samão que a fariam em pedaços. Numa confissão de Iria Jorge, ela diz que o diabo sempre a desafiava para sair do círculo que desenhara no chão, pois dessa forma ficava sob seu poder.


Nudez: A nudez parcial e o cabelo solto ou despenteado são frequentemente citados, sendo até considerados por algumas como condição muito necessária (veja abaixo a justificativa da feiticeira Margarida Pimenta). Encontramos essas características também entre as feiticeiras espanholas, e se repete nas imagens de pombagiras com peito nu e cabelos longos e soltos.


Andar nua e em cabelo [soltou ou despenteado] certamente identificava, no imaginário popular, a protagonista  deste ato com a bruxa. No século XVI, em Évora, sabe-se que a interessada no conjuro das pedras devia faze-lo “em cabelo e em camisa à janela, fitando uma estrela e segurando na mão nove pedras apanhadas em encruzilhadas. No século XVII, persistiria tal gestualidade: em 1637, Maria Ortega conjurava os espíritos desguedelhada e nua da cintura para cima, e em 1664 era de forma idêntica que Maria da Silva invocava demônios ou proferia uma bela oração de Santo Erasmo, valendo-se também de um alguidar e velas verdes.


Oferendas: Há menção frequente de ofertas simples, geralmente de comida, feitas aos espíritos.


Margarida Pimenta, que colocara fora do círculo três montinhos de cevada para quando viessem os demônios em figura de bacorinhos, justifica o fracasso do seu conjuro dizendo que não estava despida e não tinha fressura de bode para lhes dar de comer. Brites de Figueiredo, por seu turno, tinha fama de dar pão, carne e peixe a um diabinho chamado Martinho; [os diabos preferiam] de acordo com Simão Pinto “pão preto e peixe cozido com lama”; Brites Dias dava a eles alho e cebolas para comer.


Conjuração: A conjuração é feita com versos simples, facilmente lembrados e repetidos.


Objetivos: As invocações de demônios geralmente eram feitas para resolver problemas cotidianos e, muitas vezes, em nome de clientes.


Relacionamento: O relacionamento com os demônios podia variar; algumas bruxas se gabavam de seu poder sobre os espíritos, outras confessavam sua submissão e medo e, muitas vezes, os perigos da atividade também são mencionados.


Já a Arde-lhe-o-rabo afirmava vagar descabelada e nua pelos adros e matos, em busca de feitiços: “porque eu ponho-me à meia-noite no meu quintal com a cabeça ao ar com a porta aberta para o mar e enterro e desenterro umas botijas e estou nua da cintura para cima e com os cabelos e falo com os diabos e os chamo e estou com eles em muito perigo.” Quando voltava das andanças, vinha “moída” pelos diabos e pelos trabalhos que tivera.


Foi esse estilo popular de magia de conjuração que migrou para o Brasil, como resultado do exílio dessas bruxas. Como exemplo, temos a Antonia Maria, uma bruxa profissional processada pela Inquisição de Lisboa e condenada à deportação para Angola, que acabou no Brasil por volta de 1715 juntamente com outra bruxa portuguesa (que ela indicou como sua professora no ofício), Joana de Andrade. Antonia Maria superou Joana, aprendendo no Brasil com outra feiticeira chamada Páscoa Maria e, depois de algum tempo, tornou-se rival de sua antiga mestra, a quem ela aparentemente enfeitiçou até a morte por tentar quebrar alguns de seus feitiços, como vemos também na leitura fundamental sobre o tema O Diabo e a Terra de Santa Cruz, de Laura de Mello e Souza.


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