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É dia dos mortos!

É dia dos mortos. No Brasil, os cemitérios estarão lotados (ou nem tanto por causa do atípico coronavírus). Milhares de pessoas irão visitar seus entes queridos falecidos. O resto do tempo ou essas pessoas tocam as vidas sem se preocuparem muito com os falecidos ou os colocam carinhosamente em suas orações. É dia dos mortos e eu gostaria de discutir um pouquinho sobre eles com vocês.


Jake Stratton-Kent tá aí advogando que a falta de trabalhos com os mortos é o maior furo no renascimento do esoterismo ocidental. Jake puxa da Grécia antiga os goes, feiticeiros que lidavam com almas de mortos – particularmente mortos problemáticos (que não tiveram ritos funerários, que foram assassinados etc). Goeteia era a arte desses feiticeiros – nota de rodapé: o filósofo Empédocles provavelmente era um – e sabemos que Goeteia é de onde deriva Goécia, a tradição mágica (vou chamar assim para não limitar a um grimório) preferida de 9,3 em 10 iniciantes em magia.


Observação: Eu sei que já falei de Jake e dessa questão dos mortos que ele levanta antes. Não estou gagá. É um assunto que merece ser rememorado. Assim, agora eu gostaria de me debruçar mais sobre ele e tentar entender se Jake tem tanta razão assim em sua crítica.


Obviamente, a Goécia que conhecemos vulgarmente, derivada do Lemegeton não parece lidar com espíritos de mortos diretamente. Os gênios da Goécia parecem realmente que pertencem a uma natureza diferente da humana e esse é um dos argumentos contrários à famosa equivalência que Aluízio Fontenelle faz em seu livro “Exu” dos anos 50 entre os Exus e certos espíritos do Grimório Verum (outro grimório da “tradição” Goética). Exus sim, em sua maioria, são compreendidos como espíritos de mortos. Entretanto, essa equivalência é claro, objeto de séria disputa. Há pessoas que a negam completamente e há outras que assumem que há uma relação, mesmo que não seja exatamente uma equivalência direta.


As diversas tradições Brasileiras e outras que se estabeleceram fortemente aqui não sofrem com a falta de veneração aos mortos. Vamos logo discutir o Cristianismo. Jesus está morto na cruz em todas as igrejas. Alguém poderia argumentar que ele voltou e, portanto, não estaria mais morto. Justo. Então vamos falar dos santos. Santos nada mais são do que mortos venerados, o que transforma o Cristianismo numa tradição repleta de contornos necromânticos muito importantes.


A influência Africana no Brasil foi significativa e isso não é mais surpresa para ninguém. As diversas etnias que para cá foram trazidas trouxeram diferentes e complexas expressões espirituais – mas, em geral, a ancestralidade era algo cultivado em comum. Ou seja, havia a lembrança e o culto aos que vieram antes. Os ancestrais podem ser míticos ou até mesmo os mortos mais recentes, portanto, os falecidos não estão fora dessa equação.


Das macumbas e calungas e da mistura com o espiritismo Francês nasceram as expressões que hoje chamamos de Umbanda e Quimbanda. Não há dúvidas de que essas estão fortemente ligadas aos mortos. Pretos velhos, Caboclos e Exus e Pombas-Gira certamente são exemplos dos mais conhecidos de espíritos dos mortos que interagem e se apresentam como estruturantes dentro de religiões.


Aliás, já que falamos do espiritismo Francês, devemos necessariamente citar o Kardecismo, tradição que parecer ter encontrado um ambiente muito fértil em terras Brasileiras e que se baseia na comunicação entre os vivos e os mortos. Dispensa maiores comentários, portanto.


Algum crítico agora diria que meus exemplos são tipicamente Brasileiros e que assim não é possível fazer uma costura com o comentário citado inicialmente de Jake Stratton-Kent. Na verdade, seria possível dentro do contexto Brasileiro e é isso mesmo que eu vou fazer, mas nos lembremos de que Jake astutamente puxa seu argumento da Grécia antiga – que é considerada o berço da civilização ocidental. Logo, não há furo no argumento de Jake e nenhum furo em puxar o Brasil nesse cenário. Embora, claro, exista uma diferença enorme na construção do Brasil quando comparado aos países Europeus.


De toda a sorte, o Brasileiro parece que tende mais a se entender como ocidental do que híbrido. Por exemplo, vemos no cenário do ocultismo muitas pessoas envolvidas com tradições mágicas de origem Europeia: Thelema e Golden Dawn (e seus derivados), por exemplo. Nada de errado. Não é esse o ponto.


A questão vai passar pelo apagamento do papel dos mortos nessas tradições – que parecem não ter bebido de uma das fontes mais significativas dentro do mundo mágico formativo ocidental. Esse é o argumento de Jake, salvo uma leitura ruim de minha parte. Há algum problema nisso? Bem, perde-se uma parte da cultura que é fundamental. Os Neandertais já faziam funerais. Logo, não é de hoje que as pessoas estão aí preocupadas com seus mortos.


Então como as tradições mágicas do ocidente estão lidando com esse assunto? Parece-me que muitas não estão particularmente preocupadas com isso. Novamente, tudo bem. Entretanto, isso não apaga essa necessidade humana de nos relacionarmos de alguma maneira ou com os mortos ou com a morte em si. Por isso, se não há um escape nessas tradições, provavelmente, as pessoas que estão inseridas nelas acharam esse escape por outro lado.


Eu não estou defendendo que se faça uma inclusão forçosa em nenhuma tradição de uma disciplina ou de um estudo sobre os mortos. Longe de mim querer dizer o que alguém ou algum grupo tem ou não que fazer. Recolho-me ao meu papel aqui de observador e relator. O que eu posso sugerir, porém, é que seria interessante se algumas assim o fizessem e há diversos motivos para isso.


Um primeiro motivo seria o resgate dessa noção de identidade que se ganha com o trabalho com os ancestrais. Outra razão são as lições que se ganham de como melhor viver a vida quando se está lidando com a morte. Há também a própria necessidade de tentarmos melhor compreender nossa finitude. Finalmente, encerro minha pequena e breve lista – que está longe de ser exaustiva – com o argumento de que os mortos podem ser agentes mágicos poderosos.


Novamente vou tentar antecipar-me aos meus críticos. Um exercício que provavelmente deve gerar ainda mais críticas, mas seguimos. Na verdade, precisamos entender o argumento de Jake em sua complexidade. Existem expressões dentro da tradição esotérica ocidental – ou que a influenciaram fortemente.


Há uma tradição filosófica e esotérica (sim, embora pouco explorada) que lida muito com a morte com mortos. Estou falando da Maçonaria. Sem entregar além do que tá na Wikipedia, temos que o assassinato de Hiram Abiff é central na alegoria Maçônica. Claro que estamos falando de, como já adiante, alegorias – mas tratar a morte por meio de alegorias ainda é uma maneira válida e poderosa de tratar do assunto. Uma alegoria possui diversas camadas e as mais óbvias não são necessariamente menos valiosas. Entretanto, a lida atual Maçônica com os mortos está apagada, pela minha experiência. Imagino que no passado isso tenha sido algo mais presente.


Há outra tradição Ocidental – de berço Francês – que também se apega muito fortemente aos mortos. Estou falando do Martinismo. O Martinismo Papusiano irá se apoiar nos chamados “Mestres do Passado”. Essas não são figuras míticas e distantes, mas pessoas que geralmente sabemos claramente que foram reais, que foram iniciados e que agora são invocadas nas sessões (consulte aqui para saber mais: http://www.hermanubis.com.br/artigos/BR/MARCO2013BasesdoMartinismoPapusiano.htm).


Então, vemos que o argumento de Jake não pode ser compreendido como uma ignorância total aos mortos – mas sim como uma falta de ênfase como a do passado, que ele entende como algo fundamental. No fim, é saudável que usemos os argumentos de outros apenas como meios de se refletir para que cheguemos as nossas próprias conclusões. Eu concordo com Jake que há sim um apagamento dos mortos na tradição esotérica ocidental, mas se isso é um problema ou não, cabe a cada um decidir.


É dia dos mortos e achei que seria bom que pensássemos sobre isso nesses tempos. Se vamos deixa-los esquecidos ou se iremos procura-los nos túmulos, nos templos e nas florestas e pedir que nos sussurrem suas histórias maturadas pela ação dos vermes e da inevitável podridão que se apossará dos meus dedos que agora digitam e dos seus olhos, leitor, que agora passeiam por essas linhas. As línguas gélidas e inertes dos mortos falam em idiomas que podemos compreender, mas precisamos ter ouvidos.

Imagem de Peter Dargatz por Pixabay.

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