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À Lua

– Não, permaneço.


– Mas não dá mais! Sigamos.


– Preciso ir devagar, ou vou definhar.


– Mas por que, por Deus?


– Por deus nada, talvez fosse pela Deusa, se fossem aqueles tempos em que eu estava mais inspirada.


– Cedeste?


– Cedeu o chão, a Torre, cederam os véus. Cederam ao Tempo, à mudança, à roda, ao vírus, às notícias na internet. Eu fui só levada junto, correntezas de espacialidades múltiplas, a pálida teia azul que nos une a todos. Acho que eu tenho algo em Peixes, depois vou olhar.


– Você costumava ter esperança… falava dela até com olhos de brilho vespertino. Eu gostava daqueles olhos.


– Sim, em tempos de Amor, fui amor. Agora não são tempos de Amor. A cólera nascida do medo e da pulsão de sobrevivência invade os corações dos desesperados, dos desguarnecidos, dos desamparados. Agora os olhos secam e se molham, e secam outra vez; os lobos estão à solta, há medo pelo ar das esquinas. Na escuridão do medo, o único som é o dos corações sobressaltados. Silencio, então. Compartilho dessa dor, e feneço.


– Não, por favor! É preciso falar do Medo! É preciso passar pelo Medo, dar-lhe nome e endereço, testá-lo para covid, passar pela Noite Escura, sob pena de jamais ver o sol nascer novamente. É hora de resistir no Amor, fazer tombar o pêndulo. Caminhar, enfim.


– Eu já não posso… qual lagostim n´água parada, padeço incrédula frente à repetição histórica desses erros caquéticos; ando farta de assistir esses fractais bizarros da nação imaginária que construímos para nós. Contemplo envergonhada a dança da falsamente nascida democracia brasileira, onde enternáveis* (mas não enternecíveis) homens de bem mal escondem suas capitanias hereditárias nos bolsos gordos, sorrindo de arma na mão. Eu já não posso… movo-me com dificuldade, olho para trás com frequência, careço de foco e vontade, imersa na experiência do lado escuro da Lua. Entorpeço, tropeço.


– Pois não possa. Não vá. Há espaço suficiente para os desistentes sob a poeira das eras. Haverá seu tempo, sua hora, sua lux. Afinal, sempre soubemos que essa era uma jornada solitária. Atemporal, mas solitária. Coletiva, mas solitária. A dança cósmica do Ser só, a etapa mais dolorosa da jornada deste herói que vos fala. Aqui nos separamos. Como poderia padecer eternamente no tanque de águas paradas das ilusões perdidas, quando já vejo lá na frente, após suor, disciplina, enfrentamento e sangue derramado… algo tão sublime que reduzo muito pra caber nesse potinho linguístico: chame de Aurora, por ora. Como poderia?


– Como? Seus sons já quase me escapam, e daqui vejo apenas sombras. E, sendo assim, tudo bem… vou tateando aos poucos, tendo essa Lua com cara de gente em minha companhia, ouvindo Lacrimosa. Quando eu voltar a ver a sua nuca, saberei que estou chegando lá.


“Sertão é o sozinho”.

Grande sertão: veredas – Guimarães Rosa

*enternável: diz-se daquele que escolhe ser chuchado num terno para mascarar o que vai em seu íntimo e caber no sistema que atualmente rege as instituições mundanas. Ver também Agente Smith.

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