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À Justiça

Quando eu nasci, um anjo crioulo,

desses feitos de pastiche e gozo,

me olhou colorido e disse: “Vai, É-lisa,

Ser pentêia* na vida”.

Quebrei a cabeça mil meses pra abrir caminho à Justiça,

pentelhando o mundo em busca do fiel dessa balança,

ou pelo menos assim me pareceu.

Danada essa mulher, que faz morada no juízo de todas as coisas!

Muito me custou reconhecer quão pouco reverencio o rigor ajustado, do tempo e do lugar exato, para tudo o que se manifesta. Esse rigor que vive de espada e balança na mão, morando majestosa e solar bem pra além da narrativa da Criação conduzida pelo meu desejo, embora eu tenha cá umas boas ideias na capanga pra compartilhar.


Cai mais um véu de ignorância sob o aguilhão, palmas!


Confesso que tinha Maat como uma moça um tanto dura. Malgrado a pena na cabeça, que na mão sempre me soou à liberdade das ideias, ela nunca me revelara muito mais que uma postura em preto e branco… mas suspeito que nossa relação passou para um novo patamar nos últimos tempos.


Numa tarde de dia de semana, ela me visitou sobre o jogo de xadrez. Venusiana que só, como boa libriana, arfava sob o peitoral de aço, e assim não só evidenciava o colo iluminado como ostentava a harmoniosa dança do seu nobre coração:

Pra dentro,

pra fora…

Pra dentro,

pra fora…


Seus olhos me convidavam, me envolviam em verde e rubro. De início resisti, mas logo já não pude: eram imperiosos e firmes esses olhos, e eu sabia que batiam em Chico e também em Francisco, fossem amigos ou não. Pegavam emprestado a nossa própria chibata diária, batiam-nos investidos das nossas próprias forças movidas pela culpa, aqueles justos e imperiosos olhos. Lançavam ao espelho diário as dissonâncias e desonestidades frente à Vontade original e inescapável. Despia mesmo as dissonâncias travestidas, ah, principalmente as travestidas. Harpia dilacerante dos caducos hábitos, aqueles que se acumulam nos cantos da casa da vida e aos poucos vão impedindo o fluxo, cômodo por cômodo: desajustamentos. Tudo isso ela avaliava criteriosamente, e colocava na balança do seu discernimento coroado, sem dó nem piedade. “Sem dó é sempre melhor”, ela dizia… o dó é o abismo da empatia.


Olhei para a sua espada sentindo um misto de medo e alívio, afinal tem excesso que dá gosto eliminar, ainda que doa. Com a balança a história já é um pouco diferente: falo pra ela da pouca receptividade que tenho às decisões em preto e branco. Afinal, num mundo tão afeito aos meus amados tons de cinza, qual seria o fiel dessa balança? Qual é a fagulha original desse olhar que me ordena, pesa, mede e corta, atuando na relação entre a Natureza que se desenrola fora, tão horrenda e tão bela e tão selvagem; e a Natureza que se desenrola dentro, na intimidade das escolhas feitas pela minha humana consciência? Se já há tanto tempo não creio em bem e mal como instâncias soberanas, com que direito me ajusta, a senhora com sua pluma, formando essa tríade desconfortável com os testes e os sacrifícios pelo caminho da restrição?


Nenhuma das indagações ela me respondeu, porque tem resposta nessa vida que não cabe em palavras: elas escapam às narrativas como os cheiros e gostos escapam à visão. Não podendo ser divisadas, são impressões que permanecerão para sempre inapreendidas em terras de grandes olhos abertos e bocas e narizes tapados, nas sombras. Quando as palavras não foram mais suficientes, foi a experiência dos sentidos que me abriu caminho. Isso já tinha acontecido uma vez, em 2013, quando caiu falecida minha última esperança de acessar o mundo todo com caneta e papel, ou teclas de computador, ou livros e enciclopédias. Quando é assim, é hora de botar o coração na roda, mais uma vez. Ao menos foi o que aprendi.


De mãos dadas com meu coração, Maat enfim poderia oferecer ao meu ponto de vista muito humano de 2021 uma fagulha de entendimento sobre o fiel da sua balança. Penetramos juntas o meio certinho da haste central entre os pratos em equilíbrio, e um mundo de cores e sabores e cheiros e texturas se revelou. Inebriante e explodindo de vida, estendia-se ao meu redor e dentro de mim uma infinita rede tão caótica quanto ordenada, afinal isso dependia muito de quem era o observador da história. Aquilo era a Natureza, sem Tempo e por todo o Espaço, uma Natureza que abarcava tudo e tudo continha.


Multicolorida e vibrante, parecia respirar com tudo o que era vivo, e serenar com tudo o que era morto: maestra soberana do que está entre isso e aquilo. Estabelecia uma rede de causas e efeitos que permeava toda a Criação, uma rede que ora parecia ordenada como as teias da aranha, ora emaranhava-se como os cipós dos mortos. Era ela que eu visitava, então, mais uma vez: a rainha da floresta, a mãe do mundo, como a chamava em sonhos. Mas pode chamar também de Natureza, ou Virgem Maria, que ela atende de boa.


E o que é isso, Natureza? Temo que, na ânsia pela preservação do suposto “mundo natural”, estejamos por vezes transformando esse Mistério tão movente e cheio de ciclos e mortes e vidas em uma imagem estática na mente humana, uma fantasiosa e paradisíaca e permissiva e sempre abundante mamãe Natureza meio Passárgada (penso na Branca de Neve e os passarinhos faxineiros da sua floresta encantada), tamanhas as nossas sedes por estabilidade

e segurança

e progresso

e ordem

e, dessa forma, por uma Natureza higienizada e previsível, que nos permita mamar em suas tetas sem nada oferecermos em troca, qual fosse uma dessas divindades alimentadas só por súplicas chorosas e pudores infundados, afinal temos bochechas rosadas e nosso berço é esplêndido: “me dê logo a chupeta Deus, quero sugar mais sangue preto das profundezas da Terra”.


“Talvez nada escape à Natureza”, eu penso e ela me responde sorrindo. Qualquer indivíduo habituado à selva de concreto reconhecerá em todo objeto à sua volta o resultado de múltiplas transformações e ciclos de vida e morte operados com materiais que não só vêm da Natureza, como são operados e transformados pelo ser humano, esse ser tão natural, tão orgânico, reciclável mesmo. Tudo é eco, lógico.


É claro, seria muito benéfico se pudéssemos questionar juntas(os) para onde estamos indo nessa relação com a Natureza, com tantos resultados alquímicos das nossas operações no mundo manifesto, desde a energia elétrica até o palito de fósforo, e se de fato gostaríamos de estar indo nessa direção. Contudo, me parece inegável que assim como não se retira do filho o DNA de seus pais, não se tira o ser humano da Natureza, não há dualidade real aí, por maiores que sejam os mundos ilusórios criados para sustentar essa condição de suposta / pretensa separatividade, apenas possível no mundo do intelecto e da mamada grátis. Mais uma vez, a lógica dual enquanto um método, uma abstração para pensar a realidade: dois pratos na balança, um lado e o outro lado, o preto e o branco… temporárias mas úteis abstrações, a la Jakin e Boaz, auxiliares da psique para o nosso amadurecimento na seara das tomadas de decisões. E só isso. E tudo isso.


De volta à sala e ao tabuleiro de xadrez, o vínculo do método ao seu propósito estava bem melhor digerido, melhor compreendido porque tornado experiência. E fico eu aqui, tentando agora fazer da experiência um texto inteligível, ofício ingrato de quem é eternamente grata à serpente multicolorida dos meus dias, que cura com uma boa dose de indomada Natureza as armadilhas da aluada rebelião de Elisa frente aos métodos, ordenações e hierarquias intelectuais. “Tudo serve querida, resta saber a quem, a quê”, ela me diz sempre. Mas convenhamos… quando a pergunta que mais interessa é “O que me serve?”, ou mesmo “A quê eu sirvo?”, tem faltado tempo e energia pra sair por aí colocando tudo e todos na balança, só por colocar mesmo. Ainda bem.

Razão é um impasse, razão é danação; só a loucura, loucura divina, oferece uma saída.

O livro de Thoth – Aleister Crowley

**

*pentêia: referente a “pentelha”, de acordo com a ilustríssima (e meio caduca sempre, convenhamos) gramática tradicional.

Imagem: Pintura de Pablo Amaringo, representando as mirações da Ayahuasca.

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