O que os olhos plásticos do Cristo de cera me disseram na primeira vez que os fitei foi o seguinte: estou morto. Era impressionante como aqueles olhos em toda sua artificialidade, em toda sua falta de naturalidade, conseguiam ainda sim exprimir o sofrimento e a morte. Isso me trouxe a certeza de que a morte é tema central no Cristianismo. Eu ainda era novo e não pude entender bem o que aquilo significava. Só levei daquela experiência o terror e não compreendi o papel fundamental da morte na dicotomia falsa entre humano e Deus.
Na verdade, fui injusto no parágrafo prévio. A morte não é tema central apenas no Cristianismo. É em diversas outras religiões e filosofias. Por exemplo, nos mistérios Órficos, nos mistérios de Elêusis, no Espiritismo etc. Será difícil achar algum sistema no qual a morte não figure de maneira destacada. Que há no fim da vida uma grande questão não é novidade e nem surpresa. Quem nunca parou para pensar no que acontecerá após a morte?
Ocorre que há um limiar entre o visível e o invisível. O mundo sutil é algo que embora pareça fazer parte e estar, de alguma maneira, conectado ao mundo da matéria, ao mesmo tempo escapa da prisão da cristalização. Isto nos leva a crer que há na matéria um “peso” que impede o homem de alçar voo. Desta lógica que coloca a matéria como um obstáculo nasce a ideia de que a liberação da matéria é uma espécie de garantia de acesso a todo o resto. Neste contexto, é evidente que o homem precisa se desfazer da carne para alcançar o status divino.
Entretanto, podemos e devemos questionar isso. Por exemplo, quando utilizamos o esquema da árvore da vida (preferido de 9 em cada 10 sociedades esotéricas ocidentais), vemos que há um primeiro ponto de cristalização do inominável e que dele vai se espalhando a manifestação. Essa manifestação vai ganhando determinadas características em cada ponto desse esquema. Em cada esfera que reconhecemos, um determinado conjunto de abstrações e de conceitos é cristalizado, até que, finalmente, chegamos ao fim da cristalização – e aí é que dizemos estar a matéria como conhecemos.
O primeiro ponto de questionamento que devemos fazer é: ora, se tudo vem se espalhando do mesmo ponto primeiro de cristalização (Kether), logo, tudo é a mesma coisa. Isto pode parecer confuso, mas não poderia ser mais simples. Se a energia que vem do inominável se focaliza e vai se dispersando, ela até pode atingir novas fronteiras, mas ela não muda sua essência. Então, em cada esfera, o que se cristaliza é uma face da essência da energia. Todas essas faces contêm todas as outras, pois nenhuma é deixada de lado nessa jornada. Essa energia não se “gasta”, não se “filtra”, ela é a energia que flui da veia do divino.
Portanto, a matéria não é um aprisionamento de nada. Como algo pode aprisionar a si mesmo? A matéria é apenas uma face da mesma coisa que permeia e estrutura todo o resto. Assim, precisamos pensar se a morte é necessariamente a única maneira de se alcançar o que está “aparentemente” além.
É evidente que a morte física não responde a essa pergunta. Nós não sabemos de fato o que acontece. Por mais que as diferentes religiões professem destinos distintos para o homem após seu fim, é fato que tudo isso é envolvo em grande mistério. Podemos imaginar o seguinte, entretanto: se vamos para outra face ou se enxergamos tudo isso por outro prisma, isso não necessariamente quer dizer que fica mais fácil enxergar o todo. É comum que se entenda que estamos em Malkuth. Isso é uma simplificação. Estamos na árvore toda ao mesmo tempo. O que as sociedades iniciáticas fazem é usar esse mapa para desenrolar um currículo que fará com o que seus membros percebam melhor todas essas faces e como a mente humana precisa de sistematizações – isso é feito em passos. Entretanto, quando nos utilizamos de instrumentos mais radicais – como enteógenos – podemos ganhar essas percepções de maneira simultânea, mesmo que depois percamos isso tudo e fiquemos com aquela sensação de “nossa, eu havia entendido, mas agora não consigo mais alcançar aquela ideia”. A verdade é que mesmo que aquela sensação tenha se perdido, a mente que volta dessa experiência não retorna igual.
Então estamos falando necessariamente de uma morte simbólica. O humano precisa deixar de ser mero humano para que alcance sua divindade. O que isso poderia querer dizer? Ora, primeiro que o humano é sim divino. Não é tudo a mesma coisa, afinal? Falta apenas que percebamos a divindade que há em nós. Depois disso é preciso aprender a trabalhar com ela. Não há uma revelação única que desperta todos os “poderes”. É um caminho. Mesmo em escolas diferentes, nas quais a jornada é distinta – sempre há um percurso a ser percorrido.
A morte simbólica só pode querer dizer alcançar um estado de compreensão do qual não se tem volta. É o tomar o enteógeno, entender tudo ao mesmo tempo e depois que o efeito passar, não perder essa sensação – em um exemplo bem bobo. É o necessário deixar de ser quem era e se tornar alguém completamente novo. Por mais que as pessoas se transformem o tempo todo não há transformações radicais toda a semana. A morte simbólica é uma transformação radical. É por isso que as sociedades iniciáticas começam a vida dos seus membros com mortes simbólicas. Ora, não se espera que um recém-iniciado passe por uma mudança brutal. O que se faz é colocar ele nessa senda – e a encenação ritualística dessa morte é parte fundamental do apontamento dessa direção. Lembremo-nos que “iniciar” significa “começar”.
Assim como o enteógeno coloca a pessoa em um estado do qual ela retorna diferente, o ritual de iniciação também o faz. Não há uma transformação completa, mas há uma pequena mudança que colocará essa pessoa em um determinado curso. É evidente que isso não é garantia de nada, pois a pessoa não estará isenta de fazer a sua parte. Os que simplesmente desistirem não chegarão a lugar algum pela mera graça de uma experiência.
Assim, percebam, é preciso, de fato, morrer. Essa dicotomia entre humano e Deus pede por uma síntese e essa, no Cristianismo, é Jesus Cristo. Vamos despersonalizar essa figura e focar apenas no Cristo – e já entramos em prováveis heresias. Agora temos um estado que é o acolhimento harmônico das duas naturezas: humana e divina. Isto deve vir com a realização de que essas naturezas não são distintas. Afinal, o humano é feito à imagem e semelhança do Deus. Aí está o Cristo – o mediador entre humano e Divino. Mais do que mediador, o reintegrador.
Aos incautos, isso não quer dizer que o Cristo ganhará sabedoria infinita, vida eterna e outras fantasias. Não se trata disso. O divino não é fantástico, ele é justamente natural. O que há de supranatural é apenas natureza ainda velada. Existem, claro, dimensões que se apresentam com fenômenos estranhos e aquele que se reintegra a essas dimensões poderá sim alcançar certos efeitos.
Comecei este texto falando dos olhos plásticos da imagem de cera do Cristo no sepulcro. Era uma grande imagem em tamanho natural que ficava na Igreja na qual eu fiz o meu curso de Primeira Comunhão (coisa comum no Brasil dos anos 80). Agora, eu mudo para os olhos do Cristo de carne e osso. Os olhos desse Cristo não são diferentes (em uma investigação externa) dos olhos dos outros. Estes olhos, porém, enxergam as coisas de maneira diferente e, por isso, enxergam além. Eles enxergam estruturas, conexões, motivações e expressões que os olhos ordinários não alcançam.
Não bastar querer acordar e enxergar as coisas de maneira diferente. É preciso trabalhar para isso. A reintegração, essa mediação, essa redescoberta, enfim, esse estado é fruto de trabalho contínuo e de entrega genuína. Não basta saber racionalmente que o humano é divino – é preciso viver isso – ou simplesmente teremos conhecimento vazio e o conhecimento inócuo é uma grande armadilha. Um grande campo de areia movediça no qual as pessoas mais dedicadas e interessadas já ficaram presas. Não podemos jamais subestimar os perigos desse obstáculo.
Imagem: Luis Francisco Pizarro Ruiz via Pixabay.
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