Desde o primeiro documento eclesiástico que fazia referência a bruxaria, o Corrector de Burchard de Worms, publicado entre 1008 e 1012 [1], ela foi descrita como um “erro” e especificada como uma atividade realizada por mulheres. Nos parágrafos 157 a 159 do Corrector, Burchard atribui claramente às mulheres a arte do fascínio, de lançar o mau-olhado, a realização de pactos diabólicos, do voo ao Sabbath para comungar com estes espíritos diabólicos e lascivos, e das “missas domésticas diabólicas”, que também era conhecido como housel. O housel é um ritual onde se compartilha pão e vinho com ancestrais, espíritos e a família na Europa, o que estaria “imitando a Eucaristia”, mesmo que esta antiga prática romana tenha sido cooptada pela Igreja em seus anos formativos.
O mestre italiano das artes mágicas Fulvio Rendhell, está segue o exemplo ao descrever como um encontro de bruxas consiste em mulheres inspiradas pela Lua, focadas em fazer pactos com ‘demônios’, no sentido de forjar acordos com espíritos da floresta e lugares naturais de poder. Ele afirma que essas congregações são comumente apoiadas por um homem que vestem o papel de Sol Niger, ou o Homem de Preto, que é o mistério particular em que um Magister é investido para dar este apoio necessário a um clã de bruxas.
A importância lunar também é encontrada dentre os povos eslavo e os romani, onde uma “bruxa” é chamada holyipi, uma palavra que significa aproximadamente “montanhas da lua”, em referência às suas atividades que incluem a oferta de sangue menstrual como meio de renovação de seu pacto. As montanhas da Lua também se referem ao momento em que o rei da Lua nasceu da Terra, sua mãe, e gerou montanhas que assumiram poderes particulares ao se tornarem refúgios para a classe de espíritos conhecida como miseçengre, que são comumente traduzidos simplesmente como “demônios”. Nestas montanhas é possível encontrar-se uma pedra chamada moscovita e uma planta chamada de conescro (flor da Lua) que fornece os poderes de atração, fascínio e clarividência para as bruxas e que somente as mulheres podem coletar.
A importância particular das mulheres em relação à arte inominável também é encontrada nas terras bascas, onde os praticantes de modazaharra dão suprema importância a Etxe ou “casa” e à dona da casa, a etxekoandera, a “Senhora da Casa”, como uma extensão do Mari, a personificação de toda a Natureza cognoscível que reina suprema nos assuntos da Etxe. O Homem da casa, se investido do conhecimento secreto que constitui um homem de preto, assumirá o papel de uma força estabilizadora e auxiliadora das atividades de Mari exercidas pela etxekoandera.
Essa relação de poder é encontrada também na Escandinávia, onde o papel entre a etxekoandera e o homem de preto é muito bem demonstrado na relação entre Frigg e Odin.
Frigg e Thor são filhos de Erda, Terra; eles pertencem a uma genealogia diferente da de Odin, e pode ser que a idéia por trás seja a mesma que encontramos entre os romani em relação às holyipi na natureza de Frigg e Thor. A ideia de Thor se espalhou através das exaltações germânicas dos aesir e fez com que o fato de Thor ser um mestre de trolldom e herbalismo desaparecesse nas sombras de suas qualidades mais solares e marciais.
Odin recebe a associação com a Lua, mas ele também é o Sol Niger ao Thor solar, que pode ser a maneira como ele desfruta do respeito e admiração, não apenas de Frigg e Freya, mas também das Nornas (as deidades do destino). É como se Odin ao vestir de Lua, entrasse em um reino de simpatia com as forças femininas da criação, e pode ser por isso que ele tenha escolhido cercar-se de agentes protetores saturninos como as cobras, os lobos e os corvos, bem para enfatizar seu papel como Sol Niger ou o homem de preto.
Talvez seja por isso que vemos tantos homens ocupando o centro do mundo das bruxas, como organizadores e colecionadores da poesia e dos mitos das bruxas, não muito diferentes de como os trovadores da Europa registravam eventos, mistérios históricos e alegorias, preservando essas memórias para a posteridade.
Também temos o termo “warlock”, que é comumente entendido como bruxo ou feiticeiro, mas sempre alguém ligado a algum demônio. A palavra remonta a cerca de 1000 aC e, de acordo com a etimologia é derivada do inglês antigo wǣrloga, que significa “traidor, quebrador de juramento, canalha, monstro”, bem como “o diabo”, ou de wǣr “aliança” + um elemento relacionado a lēogan “negar, enganar”. Claramente, a ideia de Satanás ou o Diabo como inimigo da humanidade e pai da mentiras foi então imposta àqueles que eram considerados bruxos; Também pode ser uma possível conexão etimológica aqui com o nórdico antigo örlog/a, que significa aproximadamente “sina” ou “destino”, mas nesse sentido seria alguém que entendia o destino ou que fosse capaz de fazer seu próprio destino.
Podemos citar pessoas como John Napier de Merchiston (1550-1617) e George Pickingill 1816-1909) como exemplos do warlock e do homem de preto. Quanto a Pickingill, sabemos o seguinte:
“Durante um período de 60 anos, Pickingill estabeleceu um grupo de covens conhecido como “Nove Covens”, localizado em Hertfordshire, Essex, Hampshire, Sussex e Norfolk. Ele selecionou líderes que tinham conexões hereditárias com o ofício. Iniciados incluíam homens e mulheres, mas todos os rituais eram realizados inteiramente por mulheres. Dizia-se que Pickingill era o líder que controlava um grupo de bruxas chamadas Sete Bruxas de Canewdon.” [2]
É importante salientar que sob esta ótica, a interpretação de Pickingill como o ‘líder’ desses covens é errônea. Pickingill, como o homem de preto, era o guardião dos covens que ele ajudou a estabelecer, mas como um homem de preto responsável, ele sabia que seu papel era para apoiar os covens e não se destacar como seu líder, e qualquer pessoa realmente envolvida na arte sem nome saberá que não é assim que as relações de poder funcionam entre homens e mulheres em um coven ou clã de bruxas.
Se permitirmos um salto no passado para os míticos Alpes da Transilvânia, encontramos lendas falando sobre Rainhas Dragão, e histórias semelhantes são encontradas no Egito, Etiópia, Nigéria e Benin, como podemos encontrar no artigo de David Wilson concedido ao The Cauldron Brasil [3]:
“As Rainhas Dragão eram responsáveis pela consagração ritual dos reis na bacia mediterrânea. Elas possuíam templos no atual Iêmen, no oeste da Nigéria e o sul da França. Antigamente um rei não podia reinar a menos que ele fosse ungido pelas Rainhas Dragão. O processo de unção era feito com uma mistura de gordura de crocodilo e sangue menstrual. As Rainhas Dragão tinham uma abundância de certos hormônios, que podiam ser usados para abrir o terceiro olho, dando ao rei ungido o dom da clarividência. A habilidade de se produzir os hormônios necessários era considerado genético, então para ser uma Rainha Dragão era necessário ser também uma filha de uma Rainha Dragão. Estas mulheres tinham o poder de veto efetivo sobre aquele que iria reinar e como consequência, a tradição desenvolvida fez com que estas rainhas se tornassem as primeiras esposas dos reis, e para proteger sua herança genética elas se casariam com seus irmãos. Esta é a origem do termo sangue azul.”
Vamos refletir um pouco mais sobre esta passagem, talvez reler, para obtermos a profundidade das relações de poder que encontramos em qualquer verdadeiro coven de bruxas.
Em nossa realidade pós-moderna, onde as pessoas são livres para fazer o que querem e a se reconstruírem de acordo com suas fantasias, é fácil perder o contato com as raízes agrárias da arte que chamamos de bruxaria, uma arte que associo à palavra necessidade. Quando você administra uma fazenda com gado e colheita, deve saber sobre o espírito dos ciclos, dos ventos, de que tipo de espíritos que vivem em seu entorno, com os quais você pode se associar e negociar em prol de sua própria existência e manutenção. Trata-se de fazer o que é necessário em um jogo entre necessidade e integridade. Os covens de bruxas sempre foram dominados por mulheres. Eram as mulheres que saíam ao voo do sabbath para fazer pactos com os demônios; que tiveram acesso exclusivo aos dons espirituais, que fizeram com que a hoste sagrada de anjos caísse e se tornassem seus professores nas artes mágicas. Foram elas que foram demonizadas, foram elas que morreram por todas estas acusações.
Isso não quer dizer que os homens são excluídos. Pelo contrário, eles são vitais para um pacto bem oleado possa funcionar sem problemas, mas é importante perceber que o Magister está lá para apoiar o trabalho da Dama, para vestir a Lua e prestar homenagem à Terra e ao anjo do fogo-bruxo; nisso reside o primeiro ciclo de mistérios que faz do Magister um homem de preto.
[3] Edição VIII-2006, pg 22.
Imagem: Kenyon Cox (1856-1919). A queda. 1892
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