Este pequeno ensaio nasceu de uma indignação branda. Para todos os lados falam de xamãs como “aquele que conhece as ervas” ou ainda como “ligado às plantas e aos animais”. Esta definição é absolutamente insuficiente. Não que não exista alguma verdade nela, mas é como definir um engenheiro como “um profissional bom de cálculo”.
É evidente que eu não serei capaz de esgotar o assunto e nem mesmo saciar a sede dos mais interessados no assunto, mas se eu conseguir apontar uma direção, ótimo. Para isso, irei me apoiar em alguns estudos de pessoas que entendem/entenderam bem mais do que eu sobre o assunto.
Além da minha indignação, há outros motivos que justificam este ensaio. Primeiro, os acho fascinantes. Além disso, xamãs sempre estiveram na moda “new age” e esotérica e, como já discutido, frequentemente mal compreendidos. Não é difícil encontrar “xamãs” ou workshops de “técnicas xamânicas” em feiras esotéricas e centros de vivências alternativas. Nada de errado nisso. Afinal, cada um faz o que quer e como quer. Entretanto, isso acaba puxando a discussão sobre essa figura.
Mas o que é o xamã, afinal? É importante começar entendendo que este é um termo ruim. Com isso quero dizer que é abrangente. É o termo específico de uma etnia originária da Sibéria que acabou sendo aplicado em figuras similares que são encontradas em diversas outras culturas. Mirceae Eliade, em seu trabalho vasto sobre o assunto, dá uma definição que irá nos ajudar:
“Pois, claro, o xamã é também um mago e um curandeiro; acredita-se que ele cure, como todos os médicos, e que faça milagres como os dos faquires, como todos os magos, primitivos ou modernos. Além disso, porém, ele é um psicopompo, e ele pode também ser um sacerdote, místico e poeta.” (Mirceae Eliade).
Notem como Eliade destaca o papel do psicopompo. Para os menos familiarizados, cumpre elucidar que o psicopompo é uma figura que guia as almas dos mortos ao submundo ou mundo inferior (como prefiro). Temos diversos exemplos, como: Anúbis no Egito Antigo; e Hermes Ctônico na Grécia Antiga.
Neste contexto, temos uma pista importante: o xamã não é igual aos outros taumaturgos e magos, pois apresenta a capacidade de transitar entre os mundos invisível e visível.
Marcel de Lima Santos nos apresenta outras definições:
“(…) o xamã é um curandeiro ferido pela própria morte, em vida: aquele capaz de restaurar os males mortais com a ajuda do espírito presente nas forças invisíveis da natureza, por ele controladas. (…) o xamã age de acordo com os mandamentos dos espíritos da natureza. (…) Por outro lado, o xamã é o charlatão, cuja personalidade delirante o faz acreditar alcançar estados de consciência alterada, com os quais ele ludibria toda sua comunidade. Uma figura à beira da esquizofrenia (…)” -
Marcel de Lima Santos
É muito interessante notar que “espíritos da natureza” não devem ser confundidos com gnomos bonzinhos e criaturas meio-homem e meio-planta que vem ensinar canções e amor ao xamã. A natureza é ampla e variada. Na verdade, é infinita. Assim também são seus espíritos. Alguns serão amigáveis, outros serão terríveis.
Marcel de Lima Santos fala também do lado “charlatão”. Aqui, o Marcel parece ser levado por uma armadilha etnocêntrica, mas não vamos subestimar o autor. O que Marcel está fazendo é nos provocando uma reflexão que imediatamente me lembra das figuras Mercuriais que estão entre a magia, a genialidade e a mais pura picaretagem. Para ser um exímio viajante entre mundos e poder circular entre uma gama perigosa de espíritos e ainda responder a comunidade com sucesso, é necessária uma boa dose de esperteza
Ainda, Pierre Clastres, que estudou os índios das terras baixas da América do Sul (incluindo tribos que ocorrem no Brasil) também teorizou sobre o xamã. Para iniciar a discussão, Clastres deixa claro que não é possível tratar o xamã como alguém que sofra de qualquer distúrbio psiquiátrico e que isso seria um equívoco causado pelo viés etnocêntrico. Clastres nos lembra (Eliade também comenta isso) que, geralmente, as pessoas não desejam tornarem-se xamãs, pois é uma função complexa e perigosa tanto por questões invisíveis tanto por questões mais concretas: a falha do xamã em defender ou em auxiliar sua tribo pode lhe custar a vida.
Clastres também destaca a qualidade de atravessar mundos dessa figura:
“(…) enquanto médico, é um viajante: ele deve partir em busca da alma mantida cativa pelos espíritos maus, deve lançar-se, assistido por seu espirito auxiliar, numa viagem de exploração do mundo invisível, combater os guardiões da alma e trazê-la de volta ao corpo do doente. Assim, cada cura, é uma repetição da viagem iniciática que permitiu ao xamã adquirir seus poderes, exige dele colocar-se em estado de transe (…)”
Pierre Clastres
Isto nos revela que o xamã nasce de um evento iniciático. Ser um xamã não é somente desejar ser um. É preciso que um chamado ou que um evento aconteça e que ele culmine em uma iniciação. Aqui, podemos conectar com Marcel de Lima Santos que ao discutir o contexto da morte do próprio xamã, nos lembra que este evento é geralmente de visita ao mundo invisível, dos espíritos e dos ancestrais. Ou seja, uma catábase, uma jornada ao mundo inferior.
Eliade fala sobre estranhas doenças e sonhos perturbadores ou pouco usuais que acometem o futuro xamã. Por exemplo, este autor descreve que entre certo povo Siberiano, o futuro xamã deve ficar doente e ter seu corpo despedaçado e seu sangue sorvido por espíritos ruins. Parece muito intenso. Na verdade, assustador. Entretanto, depois de passar por uma experiência dessas fica difícil imaginar que alguém não tenha ganho um preparo sólido para lidar com o mundo invisível.
Muitos outros exemplos falam de eventos que emulam a morte e o renascimento. Assim como no caso do Cristo (aliás, o Evangelho de Nicodemos mostra Cristo descendo ao inferno), há um “sacrifício”. Só depois de vencer a morte, o xamã está então pronto.
O treinamento, depois, em alguns casos pode ser realizado por outro xamã. Entretanto, não é incomum que o conhecimento sobre ervas e espíritos venha dos próprios espíritos que o xamã encontra em suas viagens. Aqui, apesar de toda a controvérsia, vale lembrar Carlos Castaneda e as lições de Dom Juan, principalmente sobre os “aliados”.
Sobre ser xamã e o xamanismo, Marcel de Lima Santos também desenvolve:
“O fenômeno do xamanismo é primordialmente uma experiência religiosa. No entanto, trata-se de um tipo muito diferente, até mesmo estranho, de religião aos olhos do homem ocidental, que se acostumou a ver as práticas religiosas antes como fundamentalmente comunais e intelectuais do que uma experiência dos sentidos. Os xamãs são pessoas que podem escapar da vida mundana e mergulhar em outros níveis de consciência através do voo mágico. Entretanto, ao contrário dos médiuns, os xamãs agem conscientemente”
-Marcel de Lima Santos
O que fica claro com essa discussão até agora é que conhecer plantas e falar de espíritos de árvores e pedras absolutamente não define xamanismo. O que parece definir o xamanismo é o voo, a jornada entre mundos. Sem isso, não há como se falar em um xamã, essa figura que se sacrifica (ou é sacrificada) e retorna dotada de conhecimentos e poderes que são colocados a serviço da comunidade.
Marcel de Lima Santos evoca Eliade ao falar que o xamã é, no fundo, um especialista na alma humana. Isso parece fazer todo o sentido, pois ele conhece esses mundos, ele viaja entre eles e lá ele acessa conhecimentos e seres que são de um local inacessível de outra maneira e de um tempo “além do tempo” (como coloca Pierre Clastres).
Ou seja, apesar de ser muito interessante estudar esse fenômeno e certas técnicas ditas xamânicas espalhadas por aí sejam úteis e valiosas, é preciso ter em mente que meramente tocar um tambor ou conhecer plantas de cura não faz de alguém um xamã. Para ser um xamã é necessária uma experiência realmente transformadora, capaz de deslocar o eixo da alma de tal jeito, que deixa a pessoa com um pé no visível e outro no invisível.
Bibliografia
“Shamanism”. Autor: Mircae Eliade.
Xamanismo: a palavra que cura. Autor: Marcel de Lima Santos
Arqueologia da Violência. Autor: Pierre Clastres
A Sociedade contra o Estado. Autor: Pierre Clastres
Imagem: The Sacred Science
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