Sorrir... essa arte delicada que aprendemos antes mesmo de nossas bochechas saberem corar. Quem nunca ouviu um “dá um sorrisinho para o titio” ou “vê se melhora essa cara!” logo após um daqueles momentos em que só queremos sumir no abismo da própria cama? Essa forçação de barra para “melhorar a cara” é tão comum que, quando começamos a pensar sobre isso, percebemos o quão profundo é o buraco onde a sociedade nos empurra.
Lá em Marte, Valentine Michael Smith, o protagonista de “Um Estranho Numa Terra Estranha”, aprendeu que o riso dos humanos, na verdade, é uma forma de lidar com a dor e a tragédia. Para ele, o riso é uma resposta ao sofrimento, uma tentativa de exorcizar a crueldade da vida com um som que deveria ser alegre, mas que esconde lágrimas. E, se pensarmos bem, não é assim também com o sorriso feminino? Desde pequenas, aprendemos que o sorriso é quase como uma moeda de troca.
Sorrimos para evitar brigas, para acalmar os ânimos, para mostrar que somos "boazinhas". E se, por algum motivo, decidimos não sorrir, nos tornamos automaticamente "grossas" ou estamos "naqueles dias”. É quase como se sorrir fosse uma obrigação, um dever social imposto a nós para mantermos a paz nos lares, nas ruas e até mesmo nos escritórios.
Mas o que acontece quando nos recusamos a seguir essa cartilha? Vejamos o caso da atriz Brie Larson, que foi criticada por não sorrir o suficiente em seu papel como Capitã Marvel. Curioso, não? Porque se há uma coisa que jamais deveríamos exigir de uma super-heroína, é que ela sorria enquanto salva o mundo. Mas, claro, as críticas vieram — e adivinhem de quem? Sim, dos homens. Afinal, o que seria da vida sem uma mulher que sorrisse para fazer as coisas parecerem menos pesadas? E por um acaso alguém viu o Wolverine sorrir? E eu não vi alguém reclamar disso.
Voltando à Terra, onde diferentemente de Marte existe essa ideia bizarra e antiga de que a mulher que ri é louca e perigosa... podemos refletir que isso talvez venha dos tempos em que o riso feminino era visto como um sinal de “histeria”, mas que no fundo era rebeldia, de não conformidade com o papel esperado de docilidade e submissão. Afinal, uma mulher que ri pode estar rindo de quê? Do homem? De seu membro agudo que jaz ali, flácido? Da própria sociedade? Do destino que lhe foi imposto? Seja como for, esse riso é visto com suspeita, como se trouxesse consigo uma ameaça.
Recentemente, o ex-presidente Donald Trump referiu-se à candidata à Vice-Presidência e agora candidata à Presidência, Kamala Harris, como "Laughing Kamala", insinuando que seu riso é um sinal de loucura. Em diversos comícios, ele repetiu a crítica, sugerindo que o riso de Kamala a desqualificaria para a liderança. Esse ataque se alinha a uma longa tradição de desmerecimento do riso feminino, associando-o à falta de seriedade ou ao desequilíbrio, e reforça estereótipos que há muito tempo são usados para minar a autoridade das mulheres na esfera pública.
E aí, temos a questão do prazer. A cultura popular há muito tempo relegou o domínio do prazer ao universo masculino. É o homem quem "desfruta", enquanto a mulher... bem, a mulher sorri. Ela sorri para mostrar que está feliz, mesmo quando o prazer é uma experiência distante. É quase como se o prazer fosse um privilégio masculino, e a mulher, uma espectadora que precisa sorrir para participar, mesmo que à margem, sem gozar.
Existem duas hipóteses para o sorriso da mulher: uma delas se relaciona à empatia e à natureza expressiva das mulheres, a outra, às dinâmicas de poder. As mulheres devem carregar a complacência estampada no rosto. As duas hipóteses nos revelam muito sobre o papel no qual a mulher preenche esse espaço de ser a “empática” a todo custo e sobre a “complacência” que nos é cobrada desde crianças.
Os símios, nossos parentes primatas, têm um comportamento curioso: mostram os dentes em situações de ameaça ou submissão. Para eles, esse gesto não é um sinal de alegria, mas uma forma de indicar que não representam perigo ou que estão assustados. Curiosamente, o sorriso feminino, em muitos casos, parece carregar a mesma função. Em uma sociedade que espera docilidade e complacência das mulheres, o sorriso frequentemente se torna um mecanismo de defesa, uma maneira de desarmar situações desconfortáveis ou potencialmente perigosas, como se estivéssemos, instintivamente, seguindo um comportamento ancestral.
E falando em comportamento curioso, quem melhor para ilustrar isso do que a hiena? Esse animal peculiar não só tem uma risada icônica, mas também, pasmem, inclui em sua dieta coisas bem questionáveis, como fezes. E ainda assim, continua rindo. Se a hiena pode dar gargalhadas com a boca cheia de... bem, merda, quem somos nós para deixar de sorrir nos dias difíceis? No fundo, talvez o segredo da hiena seja exatamente esse: rir da vida, mesmo quando ela não é exatamente "digestiva".
Agora, o que acontece quando as mulheres começam a questionar tudo isso? Quando param de sorrir simplesmente para agradar? Imagine, por exemplo, uma semana inteira sem o famoso “não-duchenne”, aquele sorriso falso que a gente dá porque “é o certo”. Uma semana observando as reações ao nosso rosto sério, impassível, um rosto que reflete o que realmente estamos sentindo. Será que seríamos vistas como fortes? Ou apenas como loucas e perigosas?
A verdade é que o sorriso feminino, assim como o da Monalisa, carrega em si um mistério. Será que ela está realmente feliz? Ou é apenas complacente? Aprendemos a sorrir até quando estamos tristes, com medo, ou em situações de poder desigual. Mas o que aconteceria se nos libertássemos dessa obrigação? Se começássemos a sorrir apenas quando realmente sentimos vontade, sem medo de sermos mal interpretadas?
Talvez a resposta para essa questão esteja no riso — aquele que, segundo Margaret Atwood, autora do distópico “O Conto da Aia”,- os homens temem porque expõe sua insegurança ao perceberem que não são levados a sério (e com o mundo sob o controle deles, deveríamos levá-los?). De forma irônica, esse mesmo riso é a ferramenta que as mulheres muitas vezes utilizam para se proteger. Elas riem para disfarçar o medo profundo de serem subjugadas, violentadas ou até mesmo assassinadas. O riso, então, se torna uma máscara, um escudo frágil contra a brutalidade que ameaça suas vidas.
Então, ao longo dessa semana, experimente sorrir apenas quando sentir vontade. Deixe o sorriso verdadeiro surgir e observe como o mundo reage. E se, por acaso, sentir que o riso está sendo arrancado à força, lembre-se de que o domínio do prazer não pertence a ninguém além de você. Afinal, o verdadeiro sorriso, aquele que nasce do prazer genuíno, é um ato de revolução. E, no fim, quem sabe, a Monalisa estava rindo de todos nós, com um sorrisinho de quem já entendeu tudo isso muito antes que a gente.
Sorria, se quiser. Ou não. A escolha, finalmente, é sua.
Amei! Adoro essa reflexão, muito necessária, e o exercício vale mesmo a pena :’D