“Os emissários do reino vegetal se fundem com o corpo humano e ajudam as pessoas a atingir outros estados de consciência. Somente os deuses sabem quais poderes da natureza estão aqui em ação. As pessoas possuídas se entregam a atividades sexuais e participam da dança cósmica da alegria. Eles celebram festivais no verdadeiro sentido da palavra. Essas festividades são uma expressão daquela forma fundamental e atemporal de cerimônia religiosa que é um convite aos deuses. Através dessa adoração, homem faz um pedido, ele oferece aos deuses seu corpo e alma, para que eles o ‘tomem’. Iluminação.” – Timothy Leary – Sobre a Criminalização do Natural
Levou quase dois séculos para que a Cannabis começasse a ser vista como uma erva benéfica e medicinal no ocidente, e aqui no Brasil, este avanço chega em terreno ainda bastante receoso. Esta erva foi trazida pelos povos negros que foram escravizados dentre várias outras foram adaptadas e incorporadas em nossa flora e nos servem como alimento e remédio, mas gerações de brasileiros cresceram ouvindo mitos que ecoavam aqui no Brasil que provenientes desta época, e já em 1830 a erva foi criminalizada.
Para termos uma pista do status da erva, em 1915, o médico Rodrigues Dória apresentou um estudo nos Estados Unidos explicando que ela teria sido trazida como uma vingança da “raça subjugada” pelo roubo da liberdade, e nos dá uma pista de seu uso ritualístico, de que a cannabis serviria para “produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas”. Ao escravo, fica claro, nem alento e nem prazer.
Nos EUA, o racismo também justificou a proibição que viemos a conhecer através de suas campanhas contra o uso da erva. Em 1930, Harry J. Anslinger, chefe do Federal Bureau of Narcotics declarou: “[…] a maconha é a maior causa de violência na história da humanidade. A maioria dos fumantes são negros, hispânicos, filipinos e vagabundos. Sua música satânica, o jazz e o swing, é resultado do uso da maconha. Esta maconha que faz com que mulheres brancas queiram ter relações sexuais com negros” [1].
Muito além desta história de preconceito e sistemática demonização do que é na realidade o agente inebriante mais seguro que se tem história, há uma outra linha que corre paralela e que por si explicaria às mentes mais fechadas as razões para encará-la como uma herança cultural humana. Ela está presente na história de várias religiões, incluindo as majoritárias no Brasil, desde que partem de uma herança judaica. “Keneh bosem” é mencionado em Números 17:12-13, Cântico dos Cânticos 4:14, Isaías 43:24, Jeremias 6:20 e Ezequiel 27:19. Em aramaico, ela era chamada de “kene busma”. Os judeus usavam a cannabis como remédio como todo o mundo ao redor usava na época. É bom lembrar que o uso medicinal para tratar a pressão intraocular nunca foi novidade. Os egípcios já usavam esta erva para aliviar as dores dos olhos. Vai ficando fácil perceber que foi este preconceito histérico que ainda vemos hoje que atrasou as várias descobertas de seus benefícios.
Além da sua religião, as outras…
Alguns estudiosos da etnobotânica identificaram o uso da Cannabis pela humanidade tão longe na história quanto nos primeiros agrupamentos do Vale do Indo, na Mesopotâmia e na Babilônia, e de que ela faria parte do que foi conhecido em algum ponto como a lendária bebida sagrada “Soma”. Na Índia, ela já havia sido documentada ao redor de 1400 AC.. Lá, e no Himalaia, ela era – e ainda é – usada no xamanismo, nos cultos tântricos, e até na yoga.
No centro e no leste da Ásia, os “xamãs” originais já faziam uso da erva. A evidência etno-histórica para a maconha pode ser encontrada em textos antiquíssimos da China e Nepal. O deus Shiva é também conhecido como “Bhangeri Baba”, ou “O Senhor da Cannabis”. Os rituais de tantra conduzidos até hoje no norte da Índia ainda usam o “bhang” que é transformado em “amrita”, a bebida dos deuses. No Nepal, ascetas, xamãs e magos têm consumido porções desta erva desde tempos ancestrais para induzir estados de transe. Brahmans usam o Cannabis para auxiliar a meditação e promover a concentração, bem como na compreensão dos textos sagrados. Os ortodoxos da área de Varanasi (Benares) e Allahabad (Uttar Pradesh) ingerem regularmente o “bhang”: toda sexta feira.
Dentre os assírios, a Cannabis era queimada como incenso sagrado. Na Jamaica, é central ao culto rastafári. Ao mesmo tempo em que eles usam a “ganja”, eles repreendem o uso do álcool por considerá-lo danoso à saúde e por promover a agressão. No México, ela é central em um culto indígena de raízes pré-colombianas que a chama de “santa rosa”, usada para falar palavras sagradas e como expressão do divino. Ela também é a erva sagrada dos sufis, bem indispensável mesmo. Alguns cultos no Brasil fazem uso da erva, mas por receio de retaliação não gostam de se declarar. Dentre eles, a Cannabis é chamada acertadamente de Santa Maria. É alento e visão.
Na arte ela contribuiu com sua natureza visionária e dentre os muitos artistas que recorreram a esta planta-musa estão Aubrey Beardsley (do movimento art-deco), no surrealismo de Picasso (que usava haxixe) ou nas obras de Alfred Kubin. Autores e poetas como Charles Baudelaire (Paraísos Artificiais), Fitz Hugh Ludlow (O Comedor de Haxixe), Maurice Magre (A Noite de haxixe e do Ópio), Walter Benjamin (Über Haschisch), Leo Perutz (Der Meister des letzten Tages), e Ernst Jünger (Annäherungen), todos eles no patamar de clássicos da literatura, e isto sem mencionar os outros tantos da geração Beat ou sobre a música que é associada ao consumo da erva, que é tão variada quanto o panorama cultural do nosso planeta.
A Cannabis tem uma história de cura, mas também de visões proféticas, experiências religiosas e artísticas. É uma herança mística mundial que levaria muitas postagens para ser descrita em detalhe. A Cannabis é uma PLANTA cuja proibição só é benéfica a políticos, traficantes, a indústria farmacêutica e a esperta classe médica que agora têm ao seu dispor um mercado de receitas tal como ocorreu nos EUA antes que vários estados finalmente chegassem à “incrível conclusão” de que ela seja boa pra qualquer coisa. Fica aqui um convite à reflexão sobre o uso ser regulado por esta turma que parece não estar interessada em nada disso.
Para saber mais:
[1] ANSLINGER, 1937.
The Encyclopedia of Psychoactive Plants – ParkStreet Press – Christian Rätsch
Crédito da imagem: Howie Green
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