Belzébuth ou Belzebub ou Beelzebuth, prince des démons, selon les Écritures; le premier en pouvoir et en crime après Satan, selon Milton;chef suprême de l’empire infernal, selon la plupart des démonographes.Son nom signifie seigneur des mouches.[i]
Acazias, oitavo rei de Israel e filho da infame Jezebel, “sofreu uma queda da sacada do seu quarto, no palácio de Samaria e não se recuperava de seus ferimentos”[ii]. Temeroso, ele enviou seus mensageiros “consultar Báal Zebul, Baal-Zebube, o Príncipe, deus de Ecrom”[iii]. A iniciativa foi malfadada, pois um Yahweh irado com sua infidelidade o amadiçoou para que morresse.
Acazias não é o primeiro rei desobediente da narrativa bíblica; em exemplos famosos, Saul quebrou preceitos bíblicos para invocar o fantasma do profeta Samuel com ajuda da Bruxa de Endor, e Salomão, dando ouvido às suas esposas, se deixou “seduzir e seguiu a Ashtoret, Astarote, deusa dos sidônios, e a Moleh, Moloque, o abominável e repugnante deus dos amonitas”[iv].
A estória de Acazias no primeiro capítulo do segundo Livro dos Reis nos preserva a única referência a essa divindade no Antigo Testamento; no original hebraico o nome aparece como בַּעַל זְבוּב, BAAL ZEBUB. A palavra Baal pode ser, geralmente, traduzida como Senhor, e Zebub “é o nome coletivo para moscas”[v]; a partir daí se formou a famosa interpretação do nome como significando Senhor das Moscas.
O nome é comumente traduzido como “o senhor das moscas” e supõe-se que o deus seja assim chamado porque, como um deus do sol, ele traz as moscas, embora Ba’al provavelmente não fosse um deus do sol, ou mais provavelmente porque ele é invocado para afugentar as moscas do sacrifício, como Zeus Apomuios, que as expulsou de Olímpia, ou o herói Myiagros em Arcádia.[vi]
Entretanto, análises mais atuais têm considerado que neste caso zebub pode ter sido resultado de um jogo de palavras derisório que alterou a forma Baal Zebul, esta indicando algo como “Baal o príncipe, um deus ctônico capaz de ajudar em caso de doenças”[vii]. Neste caso, a forma do nome transliterada Βεελζεβοὺλ (= Beelzeboul) no Grego do Novo Testamento estaria mais próxima do nome original.
O Arconte dos Demônios
O nome Beelzeboul entra na vida dos cristãos graças à famosa e polêmica passagem relatada por Mateus (12:24-29), Lucas (11:15-22) e Marcos (3:22-30), onde ele é chamado de ἄρχοντι τῶν δαιμονίων (arkonti ton daimonion, arconte dos daimones):
Depois disso, aconteceu que lhe trouxeram um endemoninhado, cego e mudo; Ele o curou, de modo que pôde falar e ver. Então, toda a multidão ficou atônita e exclamava: “É este, porventura, o Filho de Davi?” Mas os fariseus, ao ouvirem isso, murmuraram: “Este homem não expulsa demônios senão pelo poder de Belzebu [Βεελζεβοὺλ], o príncipe dos demônios [ἄρχοντι τῶν δαιμονίων]”.[viii]
A resposta dada por Jesus nos Evangelhos pode ser considerada como sendo ou ingênua ou capciosa; ele contradiz os fariseus argumentando que Satanás [Σατανᾶς] não subsistiria se expulsasse seus próprios demônios[ix], o que de forma alguma realmente refuta a acusação de que ele usava esses demônios para enganar as pessoas. Entretanto, o que é de interesse aqui para nós é que, ao responder, Jesus usa o nome alternativo Satanás, o que deixa claro que, neste primeiro momento, Beelzeboul é apenas um outro nome para a mesma entidade.
A primazia de Beelzeboul reaparece no texto chave da Magia Salomônica, o Testamento de Salomão, texto grego cuja composição, embora debatida, se refere certamente a um período posterior ao primeiro século da era cristã, e para a qual existem evidências já no século IV.
A demonologia do Testamento não só coloca Βεελζεβούλ como o chefe dos demônios, ela o faz usando exatamente a mesma expressão que encontramos nos Evangelhos: ἄρχοντα τῶν δαιμονίων, além de outras como τών δαιμονίων ό έξαρχος, o exarca dos demônios, Βασιλέα (Basilea, Rei), como Salomão, e δεσπότης (despotes, regente) dos espíritos do ar, da terra e de abaixo da terra. Quando convocado por Salomão, Beelzeboul lhe declara:
Eu sou Beelzeboul, o exarca dos demônios. E todos os demônios têm seus assentos de chefia próximos a mim. E sou eu quem faz manifesta a aparição de cada demônio[x]
Beelzeboul promete a Salomão que irá lhe trazer em cadeias todos os espíritos impuros, e mais à frente diz a Salomão que apenas ele é príncipe [ἄρχων] dos demônios pois apenas ele restou dos ούρανίων άγγέλων (ouranion aggelon, anjos do céu) que desceram, e que ele era o primeiro anjo do primeiro céu e que agora controla os que estão presos no Tártaro; a isto se soma o fato de que ele diz ter um filho para indicar a influência do Livro de Enoque na composição do Testamento. É no Livro de Enoque que encontramos pela primeira vez o conceito de anjos que desobedecem e são punidos, e a causa de sua queda foi o amor pelas filhas dos homens, com quem geraram crianças.
No Testamento, quando questionado por Salomão, Beelzeboul lhe declarou:
Eu destruo reis. Eu me alio a tiranos estrangeiros. E meus próprios demônios, eu ponho sobre os homens, a fim de que estes possam acreditar neles e se perder. E os escolhidos servos de Deus, sacerdotes e homens fiéis, excito aos desejos de pecados maus e heresias malignas, e a atos sem lei; e eles me obedecem, e eu os carrego à destruição. E eu inspiro homens com inveja, e desejo de assassinato, e guerras e sodomia, e outras coisas más. E eu destruirei o mundo.[xi]
O Regente da Goetia
O filósofo neoplatônico Porfírio de Tiro (234-304 d.C.) nos deixou uma importante descrição sobre a prática goetica, que podemos ver que permaneceu fiel à suas descrições mais antigas vindas dos séculos VI e V a.C.: tratava-se da invocação de daimones de mortos ou de outros espíritos ctônicos sob a autoridade de uma divindade apropriada – o mesmo esquema narrado anteriormente nas necromancias de Homero no século VIII a.C. e de Ésquilo no século V a.C.
Mas é através do tipo oposto de daimones que toda feitiçaria [γοητεία, goeteia] é realizada, pois aqueles que tentam alcançar coisas ruins através da feitiçaria [γοητεία] honram especialmente esses daimones e, em particular, seu chefe.[xii]
Segundo Porfírio, esses daimones ajudam as pessoas a prepararem filtros e encantamentos amorosos, e o chefe, regente ou governante [άρχοντας, arcontas] desses daemones maléficos seria o deus Serápis, que ele em outra passagem equipara com Plutão. Serápis é uma divindade sincrética criada após a conquista do Egito por Alexandre, o Grande, no reinado de Ptolomeu I Soter; ele reúne atributos do deus Osíris e do touro sagrado Ápis, tido como o filho de Hathor. Serápis, Plutão e Osíris dentro do sincretismo religioso da época se referem, portanto, a um deus que governa o mundo ctônico dos mortos. Porfírio também indica a deusa Hécate como sendo também uma regente desses espíritos.
Estas passagens de Porfírio são relevantes aqui porque, quando o bispo Eusébio de Cesareia (265-339) comentou sobre elas, ele nos deixou um exemplo perfeitamente claro sobre como essa goetia grega se metamorfoseou na goetia cristianizada que hoje conhecemos. Em sua Praeparatio Evangelica, ele escreveu:
E quem o poder que os preside acontece de ser, será esclarecido novamente pelo mesmo autor, que diz que os regentes dos daemons maus são Serápis e Hécate; mas a escritura sagrada diz Βεελζεβούλ (Beelzebul).[4]
Lucifer e Beelzebul
Os exemplos acima que vimos, tirados dos Evangelhos, do Testamento de Salomão e dos escritos do bispo Eusébio de Cesareia mostram que, até o século quatro, o nome mais associado ao líder dos demônios era Beelzebul; as mesmas passagens bíblicas também mencionam o nome Satanás, mas este talvez fosse menos considerado porque, na sua origem, não era um nome próprio, e nem tão pouco usado apenas para seres maléficos: o anjo que confronta o profeta Balaão, por exemplo, recebe esse epíteto, e mesmo o Satã (הַשָּׂטָן) do Livro de Jó deve ser considerado uma figura bem diferente da do Diabo cristão, uma vez que se apresenta diante de Deus e conversa com ele.
Mas, durante esse período, outro nome começou a ganhar popularidade: Lúcifer. A criação do “Lúcifer cristão” é o resultado patético de uma sequencia de traduções e interpretações equivocadas. Esta estória começa com a passagem de Isaías, que compara um rei babilônico com o planeta Vênus usando seu título Helel ben Shahar (הילל בן שחר) – o brilhante, ou o filho da manhã. A primeira tradução do Antigo Testamento para a língua grega traduziu a expressão usando a palavra Ἑωσφόρος (heōsphoros, portador do amanhecer) e, por fim, nos fins do século quarto, a tradução latina conhecida como a Vulgata traduziu Helel ben Shahar como Lúcifer, um dos nomes latinos para a estrela matutina. Como Orígenes de Alexandria (185- 253) aparentemente já havia sugerido que o rei da passagem de Isaías seria o próprio Diabo, o nome Lúcifer passou a ser associado a ele.
A adoção do novo nome trouxe uma consequência interessante: o nome Beelzebul, aos poucos, passou a indicar outro demônio, deixando de ser um dos nomes do Diabo.
Beelzebul na Literatura dos Grimórios
Em uma das versões manuscritas do Tratado de Salomão, ou Hygromanteia, MS Harleianus 5596, essa distinção já está bem clara: Loutzipher é o demônio do Leste, e compartilha o império demoníaco com Asmodai no Norte, Astaroth no Oeste e Berzeboul no sul. Cada um dos demônios principais tem um séquito de espíritos subordinados; neste caso:
Ò vós espíritos e demônios do Sul, Berzeboul, Arkanel, Akhonioth, Zirtheouel, Ephlakh, Ephipta, Meltos, Kariter, Hypopalt, Listitho, Kaliouth, Boidonatekan, Malekapon, Liskax, Belioukh, Pelgiab, Gaabon, Eisgonel, Rhendipon, Khameloul, Digmason, Hyperikphimas, Oukaslabitan, Ptethama, Bebykis, Ourti, Kethapson, venham, venham, venham, de onde vocês estiverem, rapidamente, de uma vez [xiii].
No Livre des Esperitz, grimório que sobrevive em uma cópia em francês do século XVI, e que se relaciona em seu catálogo com a Pseudomonarchia Daemonum e, por extensão, com o Ars Goetia do Lemegeton, Bezlebuth divide o poder supremo demoníaco apenas com Lúcifer e Satã – e este é o exemplo mais antigo que conheço onde os nomes Lúcifer e Satã passam a denominar seres diferentes. O Livre des Esperitz descreve assim a Bezlebuth:
Gay, grande e malvado espírito, é chamado Bezlebuth, e foi chamado antes da época de Salomão de Anthaon, e é o maior do inferno depois de Lúcifer, e deve-se saber que ele reina nas partes do oriente, e aquele que o chamar deve ter sua visagem voltada o para o oriente e ele lhe aparece em bela figura e aparência. Ele ensina todas as ciências e dá ouro e prata a quem o constrange a vir, e dá resposta verdadeira daquilo que se demanda dele, e revela os segredos do Inferno se o demanda dele, e ensina verdadeiramente as coisas guardadas na terra e no mar, e manifesta todos os tesouros que estão em repouso na terra, e protege de outros espíritos, e deve ser chamado em tempo bom.[5]
Por fim, dando mais um exemplo, Belzebuth compartilha com Lúcifer e Astaroth a chefia da hierarquia do Grimorium Verum, um exemplar tardio da literatura de grimórios do século XVIII. Aqui, ele tem a obediência dos espíritos que habitam na África, e tem como subordinados diretos Tarchimache e Fleruty. O Grimorium Verum assim o descreve:
Beelzebuth às vezes aparece em formas monstruosas, como a forma de um bezerro monstruoso, ou um bode com uma longa cauda, e ainda mais freqüentemente ele aparece na forma de uma mosca de um tamanho extremamente grande. Quando zangado, ele vomita chamas e uiva como um lobo.[xv]
Beelzebuth na Quimbanda
Com a publicação das obras de Aluízio Fontenelle (1913-1952) sobre Umbanda e Quimbanda, entre 1950 e 1952, Beelzebuth e os demais espíritos do Grimorium Verum adquiriram grande importância no ocultismo brasileiro. Fontenelle sincretizou os espíritos desse grimório com os exus mais conhecidos em sua época, preservando também o arranjo triádico dos espíritos superiores; assim, Beelzebuth seria o Exú-Mór, que “se apresenta sob variadas formas ou aspectos, quase nunca imiscuindo-se com os seres incarnados, pelo fato de que, possuidor de grandes honrarias, tem a incumbência de mando sobre uma legião incalculável de Exus”[xvi].
Curiosamente, na iconografia da Quimbanda, a imagem de “Exu Belzebu” foi inspirada na famosa ilustração do Baphomet de Eliphas Levi.
Nota: este artigo incorpora trechos de meu livro Goetia: História & Prática.
[1] “Se Satanás expulsa Satanás, está dividido contra ele próprio. Como poderá então subsistir o seu reino?”. Mt. 12:26.
[2] The Testament of Solomon: Edited from Manuscripts at Mount Athos, Bologna, Holkham Hall, Jerusalem, London, Milan, Paris and Vienna, Chester Charlton McCown.
[3] The Testament of Solomon, translated by F. C. Conybeare.
[4] Eusebius of Caesarea Praeparatio Evangelica (Preparation for the Gospel), Tr. E. H. Gifford (1903).
[5] Les who’s who démonologiques de la Renaissance et leurs ancêtres médiévaux, Jean-Patrice Boudet.
[i] Dictionnaire Infernal: Répertoire Universel, par J. Collin De Plancy. Sixième Édition, 1863.
[ii] 2 Reis 1:2, Bíblia King James Atualizada.
[iii] 2 Reis 1:2, Bíblia King James Atualizada.
[iv] 1 Reis 11:5 Bíblia King James Atualizada.
[v] The Dictionary of Deities and Demons in the Bible, edited by edited by Karel van der Toorn, Bob Becking and Pieter W. van der Horst.
[vi] Beelzebub, Encyclopedia Catholica. https://www.newadvent.org/cathen/02388c.htm
[vii] Beelzebub, Dictionary of Deities and Demons in the Bible, Karel van der Toorn, Bob Beking. Pieter W. van der Horst.
[viii] Bíblia King James Atualizada, Mt. 12:22-24.
[ix] “Se Satanás expulsa Satanás, está dividido contra ele próprio. Como poderá então subsistir o seu reino?”. Mt. 12:26.
[x] The Testament of Solomon, translated by F. C. Conybeare.
[xi] The Testament of Solomon, translated by F. C. Conybeare.
[xii] Porphyry: On Abstinence from Killing Animals, Translated by Gillian Clark.
[xiii] The Magical Treatise of Solomon or Hygromanteia, translated & edited by Ioannis Marathakis
[xiv] The Book of Abramelin: A New Translation, by Abraham Von Worms (Author), Georg Dehn (Editor).
[xv] Grimorium Verum, A handbook of Black Magic, Edited and Translated by Joseph H. Peterson.
[xvi] Exu, Aluizio Fontenelle.
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