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O dia em que fui comprar um sanduíche

Já são mais de nove horas é hora de estar fazendo algo de útil. É preciso ser alguém. É preciso ter caráter. É preciso ser bobão. É preciso ter valor. Eu queria ter um filho, mas não tenho tempo e nem quintal. Que pena.


Quando as estrelas começarão a cair que nem Renato (O Russo) previu naquela música sobre o dia dos Reis? Eu que bem queria só um sapato furado para andar para todo o lado sem esquentar meus pés no asfalto, penso que o holocausto nuclear numa usina à beira-mar seria algo assim bem feito. Prefiro morrer carbonizado radioativamente a com bala no peito. Bang bang ninguém aguenta mais.


Nessas horas que escrevo é que percebo que estou ficando louco mesmo. O dia nasce, vou jantar. É hora de pegar mais papel eletrônico para rabiscar com a arte pausterizada dos adultos infelizes. Li que no jardim de infância todos somos artistas –e é verdade. Agora somos todos que nem aqueles monges copistas – fazendo o mesmo que faziam os operários na revolução industrial. Todo dia bater ponto é que nem apertar parafuso. Se você acha que não, te faltam alguns.


Aí eu saio de casa para respirar o ar contaminado da cidade. Antigamente o problema era monóxido de carbono e outros gases e particulados. Agora estamos sendo atacados por vírus saltitantes (e irritantes). Mas aí eu saio assim mesmo, pois eu preciso. Como disse o motoboy aqui do lado: o vírus mata, mas a fome também. Então eu saio para comprar um sanduíche. Eu saio mesmo sabendo que não devia. Eu saio mesmo achando que não queria tanto assim um sanduíche. Eu saio.


Sair é deixar-se ser levado pelo sabor dos pés. E os meus pensam mais do que a cabeça e vão caminhando pelas ruas repletas de mascarados. Parece-me mesmo que os bang-bangs não saíram de moda, afinal. Em vez de Billy, the kid, temos o menino Ney. Quem é esse? Não sei. Desculpe-me aí, ando quarentenado. Lá em casa nem se liga mais a televisão.


Agora, passando por uma agência de viagens falida, vejo adesivos desbotados dos destinos mais procurados. Nada daquilo me interessa. Minha pressa, digo sem medo, é de ir morar isolado sem o menor contato com essa coisa chamada ser humano. Lá, nesse lugar encantando eu ficaria entediado de tanto ser eu. Nada de papéis eletrônicos. Nada de palavras insípidas. Neste mato, refúgio sagrado, eu escreveria apenas as palavras mais suculentas em cadernos de espirais cósmicas que pulsam no universo de mim.


Enquanto eu fico aqui, vou ficando mais e mais louco. Pode ser que você me encontre e não me reconheça. Ando abaixando a cabeça, mascarado e sempre resmungando. Nem mesmo eu sei quem é essa pessoa que sai para comprar sanduíches e se perde pelas ruas infecciosas da cidade mais quente que existe. Virei uma mistura de Antônio Conselheiro com Grinch e não sei como lidar com isso.


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