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NOS4A2

Atualizado: 8 de fev. de 2022

Quando assisti NOS4A2 (Nos-four-A-two) que foi lançado neste mês na Amazon Prime, logo pensei em escrever uma resenha, mas ela ficaria sem brilho se não contasse com a visão do nosso Vamp número 1 do Brasil, o Lord A (segue bio no final do artigo) . Segue o resultado desta co-autoria:

 

A primeira vista, NOS4A2 parece repaginar brilhantemente o famoso mito do vampiro, já que foi premiado com o Bram Stoker Award de 2013, mas vai muito além disso quando observamos as entrelinhas. Um dos traços mais interessantes é que o autor, Joe Hill, herdou do pai todo um universo fantástico, e então NOS4A2 não é exatamente uma ilha, mas está deliciosamente inserido dentro de um conjunto de outras obras do próprio autor. Vemos isso claramente quando Charles Manx observa o chamado “Mapa dos Interiores Unidos” logo nos primeiros episódios para encontrar quem poderia estar interferindo em seus planos. Se Hill nos apresenta um universo criativo, ele ainda nos surpreende com menções divertidas e muito bem posicionadas com o universo de seu pai, Stephen King.


Seriam estes “supercriativos” de NOS4A2 como os “Iluminados” de Stephen King (vistos principalmente em O Iluminado e Doutor Sono)? Mas Joe Hill brinca sobre estes temas nas entrevistas com a sutileza que lhe é cara. Aliás, cabe aqui uma menção honrosa a Tabitha King, mãe de Joe e esposa de Stephen, outra grande autora de terror e fantástico, uma norte-americana ainda pouco conhecida no Brasil. E já que falamos de personagens com dons estranhos despertos na adolescência, combinados por uma vida vida difícil no interior dos Estados Unidos, é difícil não lembrarmos de Carrie, A Estranha. E é aqui que entra Tabitha King: ela é responsável por salvar do lixo o texto original de Carrie, A Estranha, estimulando Stephen King a reescrever e aprimorar diversas partes da história.


O cruzamento entre a cultura pop e o que genericamente chamamos de magia mexeu com nosso imaginário em NOS4A2. Isto por conta dos personagens que carregam o dom, chamados na série de “supercriativos”. São eles Vic McQueen, Maggie e Charles Manx. Eles são capazes de criar “inscapes” para a gente algo como “reificar sonhos”, “cristalizar sonhos no jardim selvagem” ou como o termo aponta, a criação de “escapes internos”. Mas falaremos disso mais adiante. Isso porque Charles Manx não é o único que possui a habilidade de criar estes “inscapes”. Nas palavras de Maggie, outra personagem dotada de poderes similares: “Algumas pessoas são estrelas de cinema. Outras pessoas falam uma dúzia de línguas estrangeiras ou são cozinheiras fantásticas, e algumas pessoas são fortemente criativas. Estes relativamente poucos que caem nesta última categoria são capazes de trazer o mundo criado pelas suas imaginações – ou seus inscapes – para a realidade”.

E é aqui que começamos a encontrar os paralelos com o mundo de Stephen King e Joe Hill, bem como referências já exploradas por outros autores, como na Promethea de Alan Moore, H.P.Lovecraft e seus horrores inomináveis (um dos lugares misteriosos leva seu nome em NOS4A2) ou a coleção “Songs of a Dead Dreamer and Grimscribe” de Thomas Ligotti (este, inspirado na Utopia, Heterotopia e Interespaço de Focault), que descreve uma categoria específica de locais que opõem aos espaços concretos da vida ordinária. Aqui também dialogamos com a Imaginália ou ainda Mundus Imaginalis delineado pelo sábio Mohamyd Ibn Arabi e mais popularizado nas obras do francês Henri Corbin, um filósofo e orientalista do começo do século 20. É o espaço sublime ocupado pela imaginação (para eles, algo bem distante do chamado devaneio, delírio ou utopia) que nos atrai e interagimos principalmente por meio da lírica e do estado de gnose ou transe extático.


Os “inscapes” são como uma “terra do nada” – um reino intermediário ou mesmo um oitavo clima. Um mundo sensível além dos sete climas pertencentes a geografia comum. Sendo um mundo com sua própria extensão e imersão, figuras e cores. Mas essas características não podem ser percebidas pelos sentidos como se fossem propriedades dos corpos físicos. Estão ligados ao duplo etéreo ou aos sentidos “psicoespirituais”, sendo, portanto, um mundo objetivo e com equivalentes para tudo que existe no mundo sensível sem ser perceptível pelos sentidos – daí ser nomeado como “Oitavo Clima”.


A parábola muçulmana “No Kaja Abad” (aparentemente do século XII, mas de forte tempero Persa) fala sobre o encontro de todo visionário com uma presença sobrenatural de grande beleza e radiância neste “mundus imaginalis”. Há um claro traço gnóstico nisso tudo e para o homem ocidental que dá um tom agnóstico na sua visão de mundo isso tudo pode soar estranho. Mas para apreciadores de Platão, o oitavo clima não é algo ficcional. Certamente William Blake, Immanuel Swendeborg e mesmo Johaness Bureus não eram estranhos a tal reino.


Novamente, invocando Maggie para explicar os inscapes: “Todo mundo os têm, mas só os fortemente criativos” podem empurrá-los para o mundo real, com a ajuda de uma faca”… “Ela corta o tecido entre o mundo real e o mundo dos pensamentos e permite que você acesse sua ponte”. Aliás, a Maggie e seu “Saquinho de Letras” (Scrabble ou ainda o jogo de mesa palavras cruzadas) é uma oraculista, literalmente de mão cheia, fazendo uso e sendo usada pelas letras que conjura ao fazer uso da sua “super-criatividade”. Neste ponto a inteligências das letras e como as palavras puxam palavras dentro de um processo de sedução e afinidade proposto por Bey, na obra Chuva de Estrelas ganham uma perspectiva fantástica. Cada vez que ela mergulha seu braço inteiro no saco de tecido onde guarda as suas tabuletas com as letras que formarão as palavras oraculares é para lá de sinistro.

Charles Manx constrói seu “inscape” como “Christmasland”, um local onde todo dia é Natal e a tristeza é proibida. É para este local entre-mundos, vida e morte, real e ilusório que ele leva suas crianças, drenando força vital para se manter jovem e vivo. Charles Manx é o misto do vampiro clássico com uma espécie de Krampus, desde que há certo acordo com suas inocentes vítimas, já que elas devem aceitar um caramelo antes de serem abduzidas. Ele também tem um ajudante humano, Bing, que é deficiente mental. Christmasland (Terra do Natal) é um lugar onde a neve tem gosto de açúcar e apesar disso seus habitantes estão completamente desprovidos da bondade ou doçura. Eles são perversos e até o luar exala este perfume de rosas mortas. Algo esperado, uma vez que toda esta doçura e inspiração imbuídas na confiança são completamente drenadas por Manx. É uma doçura macabra. Tudo se torna gasolina para o seu carro negro, e é o que previne que continue envelhecendo. Ao mesmo tempo o personagem se justifica, o que seria dessas vidas tão angustiadas e sofredoras pela negligência de seus pais e tutores? Então ele toma para si toda esta vitalidade ao mesmo tempo que mantém uma vida miserável, nutrindo-se desta miséria humana que lhe atrai pelas paragens ermas do interior norte-americano. Robert Anton Wilson classificaria estas crianças como “Crianças Flores”, com um ressentimento disfarçado por doçura que uma hora explode na forma de um serial killer inesperado.


A “faca” de Charles Manx é seus Rolls Royce, para Vic Mcqueen, sua moto, para Maggie, as letras de seu jogo de palavras cruzadas. Transpondo em termos que os ocultistas se familiarizam mais, para um mago, talvez sua varinha, e para uma bruxa, sua vassoura. A “Faca” no universo de NOS4A2 age como o ponto de foco da sua própria força, ou aptidão. No campo da fantasia na contemporaneidade a saga Fronteiras do Universo (His Dark Materials, de Phillip Pulman) brinca com extrema naturalidade e transita por estes universos no volume “A Faca Sutil” em muitos sentidos. Um artefato místico capaz de rasgar o fino tecido entre as diversas dimensões para ajudar na jornada de amadurecimento de seus personagens. Toda força é um reflexo de quem a exerce. Não é surpresa que Vic use seus dons para coisas boas e que Manx use esta supercriatividade para se nutrir da vitalidade de terceiros e manter sua juventude. A faca de Vic é sua moto e a de Manx seu belo Rolls Royce 1938 (The Wraith). Enfim, na ficção os “maus” sempre têm mais estilo e sofisticação. Aos bons, ainda assim, resta sempre um clima descolado típico dos filmes indie. Um olhar mais profundo revelará uma estória fantástica cobrindo outra, bem mais sombria, que fala sobre abusos e violências.


***Lord A ou Rei Axikerzus Sahjaza é Autor internacional das obras Deus é um Dragão (Penumbra Livros, 2019), Mistérios Vampyricos (Madras Editora,2014) e Codex Strigoi (2017-2020) e da www.redevamp.com a plataforma eletrônica que neste ano celebra 18 anos da fundação da Comunidade Vamp do Brasil e América do Sul. Integra um dos mais elevados graus da Dinastia Sahjaza, uma família e discreta sociedade, que há quase 50 anos desenvolve a espiritualidade e a chamada cosmovisão vampyrica com integrantes em diversos países.

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