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Maledictum (parte 1)

Meus passos ecoavam à medida que caminhava pelo beco úmido. O sereno trazia um ar cortante que me chicoteava o rosto, umedecia meus cabelos e queimava meus pulmões. Eu podia ouvir a fúnebre sinfonia da noite uivando enquanto eu procurava um local que me fosse meramente familiar; um deja-vu, uma visão concedida pelos espíritos enquanto meu corpo queimava com as pomadas de saturno no meio de uma clareira qualquer em meados de Maio.


Cansado. Eu estava exausto e à medida que levava um cigarro à boca, uma pequena chama incandesceu na escuridão seguido de uma nuvem de fumaça esbranquiçada. Só faltou um café, pensei; traguei, senti a fumaça morna preencher meus pulmões para depois se esvair num sopro.


Olhei ao meu redor à procura de uma porta de ferro, um portão, ou qualquer coisa parecida. Minhas costas estavam repousadas contra os tijolos à vista de um muro que compunha o beco. Escuro e sem saída, aquele seria um local perfeito para uma emboscada, um assalto e outras tragédias; mas não havia ninguém ali, nem mesmo os bichos que habitavam os lugares mais isolados perambulavam por entre os entulhos de alumínio e as latas de lixo. Era uma zona morta, um local invisível e inabitado. Meus olhos foram atraídos para um brilho opaco à frente me distraindo de meus próprios delírios. Me forcei a sair da inércia, dei um último trago no cigarro e o abandonei no chão. Caminhei até aquele fraco luminoso para encontrar o que estava procurando. Uma porta singela feita de ferro e pintada de cinza pastel muito bem camuflada naquele cenário; não haviam trincas ou maçanetas do lado onde estava, aparentemente era impossível abri-la pelo lado de fora.


Levantei o antebraço e suavemente movimentei meus dedos pelo ar. Um rangido, seguido de um estralo e a porta se abriu como se fosse mágica. E se ao menos as pessoas soubessem, de fato, o que é magia, elas escreveriam menos romances adolescentes sobre o assunto.


Segui caminhando portão adentro. Estava escuro, podia sentir poças de líquidos sob meus pés; algo mais denso que água, mais pegajoso. Levei outro cigarro à boca; lampejo flamante, trago, fumaça. Segui andando. À frente uma luz amarela bruxuleava e à medida que me aproximava pude entender melhor para onde estava indo. Retirei as luvas que protegiam minhas mãos do frio e guardei-as no bolso do casaco segundos antes de atingir o salão. Abandonado com o concreto inacabado e macabramente iluminado com lamparinas de óleos borbulhantes, eu me vi sendo recebido por pessoas vestidas com túnicas de algodão escuro e máscaras feitas a partir de crânios de animais.


Alguns trocaram olhares comigo, outros agiram como se não estivessem me vendo, mas ninguém verbalizava uma palavra sequer. Há uma harmonia no silêncio entre bruxas e feiticeiros e um monólogo inteiro trocado apenas por olhares. Um cheiro ocre, meus olhos procuraram um braseiro localizado ao fundo, quase totalmente coberto pelas pessoas que se aproximavam em passos rasos. Enxofre e benjoim, conclui.


Parei frente à uma mesa desconexa de todo o local; ela era de mármore claro polido e sob a pedra repousava uma pessoa. Um homem, nu, por volta dos 35 anos com um pedaço de pano amarrado à boca. Seus olhos eram de puro terror, seu corpo se contorcia à medida que as cordas que o atavam ao mármore permitiam e eu via as lágrimas escorrendo pelo canto dos seus olhos.


Alguém com uma máscara de lebre se aproximou e me entregou uma adaga. A lâmina cromada tinha um formato serpenteado e o cabo era de osso talhado. Um trabalho magnífico. A adaga kris empunhada pela minha mão direita dançou pelo corpo do homem enquanto as pessoas à minha volta começaram a entoar um sussurro cantarolado em um idioma incompreensível. Velas até então não percebidas por mim ascenderam por todo o local com chamas altas e dançantes. O ar ficou pesado e minhas narinas arderam com a fumaça tomando conta do recinto. Meus dedos se apertaram em torno do punho da adaga, levantei a mão esquerda num sinal de silêncio e fechei meus olhos. Fiz uma pausa, procurei dentro de mim a marca do Diabo, tateando cuidadosamente as cicatrizes adquiridas ao longo do caminho. Entoei um encanto e à medida que meus lábios se movimentavam minha voz quebrava o silencio, até então, eterno: “Diabolus est scriptor ferrum, a Deo carnem”.


A lamina de aço damasco assoviou ao penetrar na pele por entre as costelas do lado direito do homem. Um fio de sangue escorreu. Uma segunda perfuração logo abaixo do umbigo e um terceiro corte vertical na caixa torácica. Minha mão penetrou na carne ainda quente procurando em meio ao sangue e à carne um órgão ainda vivo. Puxei, arrancando-o do conforto das entranhas do corpo. Em minha mão repousou o coração ainda pulsando de um homem que eu não necessariamente queria saber quem era.


Foto: pixabay


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