“Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn”.
(Diga isso três vezes encarando seu reflexo em uma bacia de água numa sexta-feira à noite e depois vá dormir. Boa sorte com seus sonhos).
Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) foi uma figura ímpar. Um escritor considerado medíocre por muitos, um homem certamente racista e um cético assumido, ele escreveu diversos contos da chamada “weird fiction” e de horror e acabou criando o que hoje se conhece como “Mito de Cthullhu” – um corpo de textos que carrega boa parte do caráter do seu autor.
Durante sua vida não foi reconhecido, ganhando uma legião de fãs apenas após a morte. Na verdade, tornou-se tão famoso que hoje há todo um subgênero envolvendo suas criações. Há produtos como produção literária de terceiros, jogos de videogames, jogos de RPG e muitos outros que são baseados em seu “Mito de Cthullu” (certamente você já deve ter visto algum – um bom exemplo é a última temporada de Sabrina, na Netflix). A sua influência mais estranha, porém, não está nesses nichos, mas na magia. Antes de chegarmos nesse ponto, vamos discutir um pouco mais sobre essa figura.
De Providence (E.U.A) para o mundo, Lovecraft ganhou notoriedade por conta da sua imaginação vívida que descrevia monstros além do tempo e do espaço que habitavam um universo repleto de coisas terríveis e muito mais grandiosas do que o ínfimo ser humano. Eram histórias cujo principal objetivo parecia ser colocar o homem no seu devido lugar: o pior possível no universo. Lovecraft era hábil em transmitir um cenário de total desespero, insanidade e de nenhuma esperança. As criaturas de seus textos, todas pavorosamente bizarras, vinham de mundos distantes e incompreensíveis – filhas dos delírios criativos de um homem apaixonado por astronomia e atormentado por diversos demônios pessoais.
Com um corpo de monstros tão impressionantes e histórias sobre cultos e antigos livros mágicos (quem não conhece o famoso Necronomicon?) pode ser um pouco surpreendente saber que Lovecraft era um cético convicto. Ele não acreditava, de acordo com os registros, em nada que fosse minimamente místico ou mágico. Ou seja, Lovecraft separava claramente suas criações literárias da realidade.
Entretanto, isso não impediu que os praticantes de magia pegassem o universo Lovecraftiano e o transformassem em matéria fértil para a prática mágica. Sem me preocupar em falar da visão de um autor específico, poderia citar alguns que usaram do “Mito de Cthullu”: Lavey, Kenneth Grant, Michael Bertiaux e Asenath Mason, por exemplo. Na verdade, quem procurar achará muitos outros. Desses, Grant talvez seja o que mais o tenha explorado e suas trilogias Tifonianas estão repletas de referências ao “Mito” (por favor, refiro-me ao “Mito de Cthullu” quando uso apenas “mito” e não ao – também – horror cósmico que chamamos de Presidente).
Pode parecer contraditório pegar as criações de um materialista e fazer delas combustível para magia, mas, na verdade, não é. A prática mágica não precisa estar baseada apenas em teorias e criações de místicos e magos. Por exemplo, é comum diversas discussões mágicas considerarem filósofos que certamente não eram praticantes ou sequer acreditavam em magia como se entende atualmente. Entretanto, os autores que costumam usar as criações de Lovecraft geralmente concordam que ele teria entrado em contato com seres e energias reais – mesmo sem saber! Seguindo essa linha, Lovecraft teria “canalizado” mensagens ou visões desses seres (os chamados “Old Ones”) e sem entender bem o que estava acontecendo, teria tomado tudo como simples imaginação. Uma coisa meio Chico Xavier do horror cósmico.
Se a sua praia é mais a linha “psicológica” da magia, aí a coisa fica mais fácil de justificar. Não interessa nem um pouco então, nesse caso, se Lovecraft teria realmente acreditado ou não em qualquer coisa que tenha escrito. O importante seria o impacto de seus textos e de suas criações no leitor e no praticante. Sem qualquer crítica a nenhuma teoria (não nesse texto), só pretendo esclarecer que tem justificativa pra encaixar o “mito” em qualquer modelo.
Sempre há os que gostam de um mistério mais complexo. Para esses há a teoria de que o ceticismo de Lovecraft era puro fingimento. Neste caso, Lovecraft teria sido um cidadão bastante interessado em magia. Aliás, ele foi contemporâneo de Alesteir Crowley e, por isso, não é surpresa saber que certas teorias apontam que Lovecraft teria estudado Crowley e a Ordem Hermética da Aurora Dourada. Enfim, os registros (inclusive cartas de Lovecraft) não concordam com isso e quando discutimos essa possibilidade, que fique bem claro, estamos no domínio da suposição e da fantasia (que, convenhamos, pode ser bem mais interessante do que a realidade).
Seja como for, as criaturas e os mitos de Lovecraft foram além dos seus contos e influenciaram de maneira significativa o ocultismo. O autor provavelmente acharia isso tudo uma grande bobagem, mas quem se importaria com a opinião dele? É fato que Cthullu, Nyarlatothep e outros ganharam vida própria e mesmo depois de pouco mais de 80 anos da morte de Lovecraft, continuam assombrando o mundo.
Finalmente, se você nunca leu Lovecraft e ficou interessado, gostaria de levantar uma questão. Hoje em dia ele anda na lista de autores “cancelados”, pois, como já mencionei, era racista. Aqui entramos naquela problemática: vale ler o autor que tem atitudes condenáveis? Quer dizer: a obra supera o autor? Isso fica para cada um escolher. Eu só não vou passar pano. É preciso reconhecer que Lovecraft escreveu diversas vezes contra Judeus, negros e imigrantes (particularmente em “O horror em Red Hook”). Em outras palavras: a intolerância de Lovecraft fica evidente sim em seus contos. Portanto, quem quiser ler, fique avisado.
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