Muitos avisam que lidar com Exu não é fácil. Ignorar isso é simples, no começo. Uma vela aqui, um copo de cachaça ali e um ponto cantado e você acha que está tudo certo. Há muito mais, porém – e quando se começa a nadar nessas águas, as portas do inferno começam a se abrir. É traçado então um limite: há os que correm e há os que persistem. Eis a razão pela qual eu acho que é mais interessante e excruciante persistir.
Exu é um espírito de natureza saturnina e marciana (recomendo os livros de Nicholaj de Mattos Frisvold) que pode trabalhar de maneira drástica, violenta e assustadora. Não se enganem. Esses espíritos não realizam seu labor mais profundo através da caridade e da leveza. Eles nos jogam direto no fogo do inferno e é preciso que nos deixemos arder. Essa provação que impregna nosso sangue com enxofre e sombras é terrível, mas poderosa. Difícil é resistir ao processo.
Enquanto caímos no abismo infernal de Exu, nossa essência se decompõe e nós somos espalhados em camadas sinistras que se apresentam como pesadelos e impulsos absurdos e assustadores. Quando é chegada a hora de decisão. Ou seja, quando você é colocado naquele ponto no qual o próximo passo decidirá se há ou não retorno – aí é que somos colocados face a face com tudo que mais gostaríamos de evitar. O resultado disso pode ser bem óbvio ou até surpreendente, mas sempre será extremamente desagradável.
Esta é uma característica da morte – ela nos desafia. Lembremos que Exus são espíritos de morte e assim eles zombam da nossa condição. É a sua natureza. Essa zombaria não é gratuita, mas é por conta da prisão que construímos para nós além da carne, a prisão da mente. A única maneira de se quebrar essas paredes prisionais mentais é por meio de golpes duros. Não há espaço apenas para delicadeza nesse processo. Assim, a figura do Exu como um trickster – um trapaceiro – se revela não como a de um bobo, mas como a de um sábio que ao colocar pedras no caminho, nos faz aprender a caminhar melhor.
As provações de Exu são duras. Duríssimas. Você acha que está ficando louco ou que é uma pessoa desprezível. Você acha que está sozinho e que está condenado. A clareza precisa vir de meditações e de persistência. De onde vem toda essa escuridão? É claro que só pode vir de nós mesmos. As labaredas infernais de Exu lançam luz e nos revelam essas sombras nossas e aí então só nos resta encará-las. O segredo aqui é que o combustível para o fogo de Exu é nossa própria essência. Quanto maior o fogaréu, mais terríveis as provas.
Então, quando você chama Exu e ele atende e naquele momento nascem coisas terríveis na sua cabeça… Bem, o desespero toma conta do corpo e do espírito e você tenta achar seu eixo e descobre que ele foi destruído. É preciso girar, girar e girar. É preciso ficar à deriva. O incêndio é labiríntico e a cada curva que você faz mais paredes ígneas se levantam. O calor é insuportável. O medo é avassalador. Fuja e você terá consigo para sempre o medo. Persista e comece a construir algo verdadeiramente fantástico.
Este é o ponto de não retorno. É quando mesmo assustado, ferido e cheio de dúvidas, você retorna. O regresso não é sinal de loucura, mas de perspectiva. Aquele que persiste entendeu o que está acontecendo, percebeu a mudança e agora se joga voluntariamente para dentro das portas escancaradas do inferno. É um abraço apertado na morte. Esse gesto de carinho sela um pacto silencioso que mesmo que não seja tão forte quanto um contrato, já revela que a pessoa em questão bebeu do cálice de veneno, provou seu amargor e continua de pé.
E é só de pé que dá para seguir em frente. Um passo atrás do outro sobre a brasa ardente, pois foi Exu quem abriu as portas…
Imagem: Exu abre as portas do inferno – Eduardo Regis 2020
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