Justo eu, que te procuro a vida inteira, quantas vezes já não te encontrei em momentos em que eu menos esperava? Na teoria a gente sempre espera que esses encontros sejam especiais, rebuscados e mágicos, mas quando olho para trás percebo que foram momentos curiosos, oníricos e até desavisados; pelo menos nos que pude vislumbrar um pedacinho que fosse de suas faces.
Às vezes bastou um olhar, uma sensação, uma palavra, e esses momentos marcaram. Esse é o terceiro de três pequenos causos: frames pontuais que no fantástico ou na banalidade que se apresentaram me catapultaram para novos caminhos interiores. Três breves encontros, com três misteriosas mulheres e suas principais fases.
Minguante
– Vai a Santiago?
A voz daquela velha senhora – que vinha do outro lado da grade – me pegou de surpresa. Parei o passo com um salto.
– Vou sim senhora! – respondi ofegante.
– Vai sozinha e veio de longe a gaja… – pontuou sem acrescentar tom de pergunta – E o que vai fazer quando chegar lá, rezar?
Seus olhos, sem cruzar com os meus, mediam a distância entre ela e um vaso de alecrim selvagem que aguava de longe. Precisei ainda de outro segundo para formular minha resposta:
– Minha reza é cada passo que eu vou dando. Quando chegar lá, eu volto.
Ela repousou a mangueira, com água ainda brotando em abundância, em um de seus canteiros de rosas e me olhou nos olhos. Ela não sorriu, mas fez um sinal com as mãos para que eu esperasse e sumiu por uma porta estreita. Tirei a mochila das costas e a encostei no muro baixo. Poderia jurar que ela estava pesando pelo menos duas vezes o tanto daquela mesma manhã, mas tudo que eu havia acrescentado era um punhado de castanhas e alguns figos verdes para mais tarde. O sol de outono mais parecia de meio de verão e antes desse episódio eu só pensava em apertar o passo para logo encontrar um lugar para descansar e preparar minha comida, mas aquela senhora me intrigava.
Foi algo no jeito dela de me fazer aquelas perguntas, como uma anciã que desafiava pacientemente seus iniciados. Foi algo na forma que ela me olhou, medindo minha resposta, fazendo eu me sentir uma “miúda” que aguardava ansiosa para ouvir o “muito bem” de sua professora favorita. Ela estava me testando e eu sabia. Algo oculto e profundo em mim não queria decepcioná-la. Então eu esperei. E ela voltou. Trazia em suas mãos enrugadas duas taças de vinho tinto. O sol atravessava sem piedade o vidro e fazia ele brilhar vermelho como sangue. Ela me entregou uma das taças e ergueu a outra na altura dos olhos:
– Ao caminho!
– Ao caminho! – respondi com um sorriso agradecido.
E juntas bebemos de seu vinho. Ela terminou seu longo gole e virou a taça, derramando o que havia sobrado sobre a terra nua:
– Que aos buscadores a terra nunca falte!
– E que a terra os buscadores não mais maltratem! – complementei, imitando seus modos e derramando no chão o que restava no fundo de minha taça.
No mesmo chão por onde um dia caminharam meus antepassados.
A senhora assistiu a cena em silêncio e então, finalmente, me abriu um sorriso largo. Um sorriso de bruxa, de mãe, de avó. Um sorriso há muito tempo aguardado. Um sorriso de benção, um sorriso conquistado. Em um quadro parado no tempo – através dela – a terra inteira também me cumprimentava, pois de alguma forma que eu ainda não conhecia, aquele sorriso me levava de volta para casa.
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