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Divididas e conquistadas: a bruxaria dentro da cristandade

Atualizado: 8 de fev. de 2022

Vivemos em uma era no mínimo interessante, de necessária turbulência social combinada com um sentimento apocalíptico. Nunca tivemos tantas informações combinadas com tanta velocidade. E como tudo chega para a rápida digestão de um público ávido por novidades, há pouco tempo e pouca disposição para se fazer uma pausa. O julgamento é rápido e desatento e a realidade é construída em binários extremos: bom ou ruim, e passemos para a próxima informação. Nada se perde assim, e só adicionamos mais e mais camadas sobre as nossas inconsistências e verdades desconfortáveis ou inconvenientes.


Eu já ouvia os gritos de revolta ao cristianismo e por um bom tempo eu mesma fiz coro. Há um fundo de verdade nesta revolta. Há uma razão legítima. 


Quando li o livro Bruxaria Apocalíptica do Peter Grey (2016) antes de vir a ser publicado no Brasil eu o interpretei como um manifesto em prol ao planeta, um chamado a qualquer ser minimamente espiritualizado para que juntos repensássemos a nossa forma de honrar a Mãe Terra. Não vi ali o Peter criar um “sistema de bruxaria”, mas através do uso de metáforas ele buscou incitar a necessária fagulha da mudança. Ao compreender esta nobre motivação, relevei meus pontos de discordância com ele em aspectos que na hora não pensei que se tornariam tão relevantes quando semeados em solo brasileiro. Peter astuciosamente deixou o campo aberto a qualquer um que quisesse se denominar “bruxo/bruxa” – um pensamento que vem ganhando espaço desde Satanic Feminism de Pier Faxneld [1] e as teorias da filósofa italiana Silvia Federeci [2], e até aqui eu concordo muito. Ao mesmo tempo ele fez uma escolha ousada elegendo Babalon como a representação da Deusa e mantendo (e até acelerando) um profundo ranço ao cristianismo. Eu acho que foi justamente aí que o caldo entornou.


Tomemos um livro anterior do Peter Grey, o The Red Goddess (2007) [3]. Já na apresentação do livro, sob o título “A History of Mystery”, ele começa com “Babalon é uma Deusa surgida de uma rica visão bíblica do Apocalipse de João. Uma Deusa que aparentemente apareceu do nada, com uma besta de sete cabeças como companhia, dando às crianças cristãs convincentes pesadelos sensuais sobre a guerra iminente no céu.”… E mais adiante: “O bad boy da magia negra Aleister Crowley a clamou em uma colisão de repressão sexual vitoriana e sua ereção química perpétua.”


Agora, com este panorama em vista, podemos observar um uso seletivo da Bíblia para se criar a metáfora do “outro”. Uma metáfora sobre uma metáfora original de preconceito racial, afinal a menção bíblica se relacionava à Babilônia, à sua cultura e seu povo altamente condenado pelos judeus. Ao mesmo tempo em que Peter Grey tem em mente a Babalon primeiramente utilizada por Crowley como referência à Mulher Escarlate, ele critica fortemente o cristianismo. Contudo, é necessário refletir que ele está condenando o impacto social da cristandade na humanidade e não necessariamente a Bíblia. 


Esta diferenciação é tremendamente importante, especialmente quando levamos em consideração a história do cristianismo e da(s) igreja(s) como um todo e como poucas bruxas e bruxos se empenham para analisar o avanço e as apropriações que ocorreram dentro das culturas. No Brasil temos ainda um elemento que dificulta ainda mais a capacidade de compreensão destas complexidades, com um baixíssimo índice de leitores e um recorte mínimo de bruxas e bruxas, que invariavelmente acabam comprando verdades mastigadas sem a menor curiosidade sobre as origens delas. O ranço ao cristianismo encontra assim um terreno fértil para se alastrar, e tem-se feito isto muito bem desde a chegada da Wicca por estas bandas. Há um sentimento de nostalgia de tempos melhores nas florestas encantadas da Europa, onde fadas ruivas e druidas de vestes brancas saracoteavam em volta de fogueiras acesas nas noites de solstício. Há muito sentimento de pertencimento com a raça daquelas mulheres que morreram injustamente, cujos gritos ecoam em nossas vozes enquanto caem nos ouvidos surdos dos nossos opressores. É fácil dizer ao papa “Enfia o teu mea culpa onde o sol não bate!”.  Sentimos aquela sensação quentinha do ódio no estômago. Odiar é fácil. É só eleger um “outro”, afinal fomos todos adestrados muito bem a fazer isso.


Agora temo informar que estamos jogando o bebê com a água do banho


Certamente alguma noção das apropriações os novos bruxos têm: de que algumas deidades locais ganharam roupagem de santos, que em antigos locais sagrados foram erigidas as novas igrejas, que as festividades ganharam datas comemorativas cristãs. Mas este sequestro foi ainda muito maior do que se pensa, e os países católicos têm pistas mais escancaradas disso. Enquanto vários países da Europa se ressentem do cristianismo protestante (ou do anglicano) – e que o protestantismo foi bem mais duro em seus processos inquisitoriais – os brasileiros colocam todos eles no mesmo balaio de gato. Cristão é cristão e ponto. E para coroar a falta de coerência no discurso pseudo-histórico, uma pessoa é capaz de dizer “a bruxaria não é excludente” e completar com “a benzedeira não é bruxa” ou “não existe bruxa cristã”. Que incoerência! E que inconsistência! 


“Bruxaria Cristã”

A Bruxa de Endor – A necromancia é só uma das várias magias descritas na Bíblia

Perfeito. Eu vejo o quanto “bruxaria cristã” pode soar como um comprimido grande demais para se engolir. Mas se tivermos um olhar mais empático para o que estas mulheres estão fazendo (sim… mulheres!), muito rapidamente podemos destruir mais um muro que nos separa e passamos a entender do que é que elas estão falando. Aliás, esta é a diferença entre uma fanática e uma mulher livre: a mulher livre está aberta às possibilidades infinitas da Arte, enquanto a fanática sempre ficará fechada no seu mundinho cheio de preconceitos.


Fiz uma rápida busca e logo encontrei um material disponibilizado pela “Reverenda Valerie Love (aka KAISI)”, uma mulher negra que foi criada em um contexto protestante (Testemunhas de Jeová), que explica como foi todo este processo de “conversão”: para ela, crescer neste meio fez com que ela visse a bíblia como um livro fantástico, tal como ler “O Senhor dos Anéis”. A diferença era que ela nunca interpretou tudo aquilo como “a verdade”, mas uma “fantasia épica” cheia de pistas de como magia funcionava. Em seu site, ela chega a dizer que “Qualquer um que tome a bíblia literalmente é um idiota”.


Das coisas fantásticas que ela declara encontrar na bíblia, ela enumera vários: do mar que se acalma após ser alimentado por um profeta desobediente (o livro de Jonas), dos homens que podiam caminhar em chamas e não se queimarem (Daniel, 3), de um cajado e manto mágicos (Êxodo 4), anjos e demônios através da bíblia inteira, de gente andando sobre a água (Mateus 14), gente controlando o clima com cajados, mantos e palavras de poder (2 Reis 2:8 e Marcos 4), necromancia (Mateus 4), etc. A lista é bem extensa e eu só trouxe alguns destaques do material dela.


Para ela, foi muito libertador poder usar os elementos com as quais ela estava familiarizada do que incutir outro imaginário e do que nutrir uma rejeição às suas raízes. É possível nos perguntarmos onde está o erro na lógica dela, mas se observarmos como a bíblia tem sido objeto de interpretações dos tipos mais bizarros e de como ela é frequentemente é usada de forma bem seletiva e conveniente pelos cristãos modernos, podemos concordar que este é o tipo de uso que não deveria incomodar a mais ninguém além dos próprios cristãos. Por quê o Crowley e o Peter Grey puderam usar a Bíblia e esta mulherada não pode? 


Uma fonte inesgotável, bem na frente dos nossos olhos


Os elementos pagãos da bruxaria que muitos novos bruxos teimam em não enxergar estão espalhados em várias práticas católicas. Dentro e fora da igreja. Atesto que foi absurdamente fácil trazer estes exemplos, pois bastou abrir alguns livros em qualquer ponto deles para encontrar estes exemplos que aqui descrevo:

Janus e a relação com os “cardeais”

Câmara Cascudo é um “must read” para quem quer entender estas relações. Em seu livro Superstição no Brasil [4] ele descreve várias passagens, mas abrindo aleatoriamente encontrei a seguinte passagem: “Os romanos dedicavam à porta de entrada quatro divindades. Janus presidia a todo conjunto, janua. Fórculos protegia as folhas-de-madeira, os lados, batentes, fores. Limentinus defendia a soleira, limen. A deusa Cardea ou Carna, cuja festa ocorria no primeiro das calendas de junho, encarregava-se dos gonzos, cardines, origem da palavra “cardeal”. Que a forma de culto adotada pelo catolicismo contenha claros elementos pré-cristãos não é novidade, afinal por onde o cristianismo passou ele absorveu elementos como uma verdadeira esponja. Vários destes elementos também se encontram no chamado “catolicismo popular”, que são práticas “toleradas” em maior ou menor grau pela Igreja.


Alceu Maynard Araújo, em seu livro Folclore Nacional, Festas. Bailados, Mitos e Lendas (1964) [5] descreve inúmeras tradições do catolicismo popular  que são dignos de um exame mais aprofundado. Como este:


“Em alguns lugares do Brasil, ainda pelo dia de São Pedro, nas casas de seus xarás economicamente mais aquinhoados do que os demais pescadores, é comum fincar um pau de sebo com um prêmio no topo. Não se deve ser este pau-de-sebo confundido com os mastros-de-junho que são arvorezinhas ou mastros encimados pela bandeira do santo. É escorregadio, revive em parte a tradição milenar europeia, ariana, da árvore completamente desnuda pelo inverno, em torno da qual dançavam tal qual se faz hoje com o pau-de-fita ou dança de fitas. (Rio grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo). É apenas o pau-de-sebo que desafia a meninada para vencê-lo e tirar vitoriosa a nota de dinheiro de seu topo, após a disputa é posto abaixo, derrubado.No baixo São Francisco seus homônimos acendem pequenas fogueiras nas portas de suas casas e no dia 29 de junho; amarrando-se uma fita no braço de um Pedro terreno ele se vê na obrigação de dar um presente ou pagar um beberete que será tomado na primeira bodega em homenagem ao celeste. Em Cunha (E. de São Paulo) registramos um acalanto onde figura entre outros santos, São Pedro: “Acordei de madrugada,/fui varrê a Conceição/Encontrei Nossa Senhora/com dois livrinho na mão/Eu pedi um com ela,/ela me disse que não;/eu tornei a lhe pedi,/ela me deu um cordão./Numa ponta tinha São Pedro,/na outra tinha São João/No meio tinha um letreiro/da Virge da conceição.” 


Seguimos o baile. Folheando mais um pouco, encontramos algumas outras pérolas: “…As três festas do mês de junho são, por excelência, festas caseiras, mormente a de São João, que também nos dá a impressão de revivescência do culto ao fogo, uma forma pirolátrica. É uma celebração que congrega a família em torno da fogueira…”. Ele também nos conta, por exemplo, sobre um costume do vale do Paraíba, onde era comum encontrar três arvorezinhas na frente das casas: a peloteira (provavelmente Solanum sanctae-catharinae), a quaresmeira (Tibouchina granulosa) e a guamerim (Miconia pusilliflora). Estas árvores eram geralmente plantadas na noite do dia 12 de junho de forma bem cerimoniosa, com fogos e rezas enquanto se abriam as covas onde deitavam-se antes ovos de galinha, grãos de milho e feijão para assegurar boas colheitas e a produção das galinhas. Depois, enfeitavam estas árvores com fitas, flores, espigas de milho, espetavam-se laranjas nos galho e enlaçavam-se cipós de flor-de-são-joão (Pyrostegia venusta miers). Em várias cidades, as noites de São João mantinham o povo acordado até altas horas, pois a partir da meia-noite realizavam-se os “sortilégios e sortes”, usando toda uma variedade de imagens sacras (às vezes amarrando, pendurando de cabeça para baixo, afogando ou surrando-as), pisando em brasas, pulando os fogos, guardando-se tições que mais tarde seriam colocados nos cantos dos roçados. Sortes eram tiradas com ovos, agulhas e pés de alecrim. Alegres vigílias eram feitas com muita batata doce assada com pinhão cozido. Mais a frente, descobrimos que o dia dedicado a Nossa Senhora das Candeias, dia 2 de fevereiro, era também chamado de dia da Purificação – ou seja, manteve-se o ideário central do Imbolc original. Eu levaria cem postagens como esta e não terminaria a lista de remanescentes pré-cristãos embutidos em nossos costumes. Talvez os avós desta geração moderna ainda se lembrem. De toda forma, perguntem… talvez se perguntássemos aos mais velhos não estaríamos todos fadados a repetirmos os mesmos erros novamente e novamente.


Complexo de vira-latas?

Casamento de Deus e a Alma Pecadora, Jean d’Ecckoute – 1491-1492.

Mas se o interesse não for do tipo que se apega à nossa cultura, podemos dar uma passada pelo The British Book of Spells and Charms de Graham King, que era o curador do Museu de Bruxaria em Cornwall. Ali, dentre os muitos encantamentos, encontramos um sobre “parar o fluxo de sangue”, que teria sido coletado de um manuscrito anônimo de 1475 e que de acordo com o autor “segue um formato muito popular e antigo” [6] . 

“Jesus, que estava em Belém, nascido e batizado nos fluxos do Jordão, assim como a água parou em sua chegada, assim o fluxo de sangue de teu homem, X, teu servente, em virtude de Teu Santo Nome – Jesu (sic) – e Teu primo, o doce São João. E diga este encantamento cinco vezes, como cinco “Paternosters” em adoração às cinco chagas”.


Para o curador do Museu de Bruxaria de Cornwall assim como para vários autores desta temática, os “benzimentos” que encontramos aqui no Brasil muito firmemente desprezados são reconhecidos como práticas bruxas legítimas. Eles conseguem enxergar a herança mágica para além da roupagem cristã. 


No livro Etruscan Roman Remains in Popular Tradition de Charles Godfrey Leland , o autor nos conta sobre os “três reis magos” terem sido em épocas anteriores, três fadas que vinham visitar um recém-nascido trazendo-lhe presentes e prevendo seu futuro. Na lenda anterior, o franquincenso e a mirra ali figuravam e ainda se mantém como “componente de fetiches das bruxas da Romagna“. [7]

Incrivelmente, temos um número de encantamentos deste tipo ainda maior do que os encontrados na Inglaterra. A coletânea organizada por Max Sussol [8] é um exemplo de uma riqueza que tem sido descartada muito prontamente pelas bruxas modernas. O fato de utilizar-se de santos católicos em encantamentos foi um recurso muito comum na Europa, o que foi mais tarde considerado como uma heresia pelos protestantes. Um bom exemplo é observar que inúmeras bruxas foram acusadas de roubarem hóstias e água benta, ou de que em certos rituais você deva circular uma igreja em algum ponto. Vale também lembrar dos livros negros chamados de “ciprianos” e toda magia de roupagem cristã que os envolvia. É importante analisar friamente como as egrégoras são formadas e transformadas pela crença popular, e a grande astúcia da bruxa está em reconhecer o poder onde quer que ele resida. E lógico, saber como usar isso em seu favor, afinal as bruxas eram chamadas de “astutas” ou “sábias” em algumas culturas por algum motivo: A fé do povo é uma ferramenta poderosa. Vox Populi, Vox Dei. Alguns já sacaram isso bem antes, mas talvez hoje mais do que nunca tenhamos que olhar para isso com mais atenção. No abraço da egrégora do diabo alguns brasileiros encontram força para seus feitiços. É só olhar para os lados sem preconceitos.


O patriarcado ganhando de braçada


Até mesmo a teoria de que “tem mulher que pode e tem mulher que não pode se chamar de bruxa” cai por terra quando investigamos os motivos pelos quais as mulheres foram mortas na Inquisição: bastava ser feia, ou bela, ou velha, ou solteira, ou livre, ou estranha… No final a gente percebe que bastava ser mulher. A outra. Isso significa que qualquer mulher tem o direito sagrado e assegurado de poder se chamar de “bruxa”, e a única peça que não se encaixa aqui é o do apego à forma ao invés da função. Ao criar limites, separações, autoridades e instituições, o que estamos fazendo além de “mais do mesmo”?


E se refletirmos bem sobre o fato de que gente equilibrada e feliz não aporrinha ninguém, que sinal o nosso “meio bruxo” está passando? Afinal, se funciona para te deixar bem, sem despachantes, quem é que poderia te condenar? Agora quando não funciona, a gente tem muito tempo para criticar e importunar os outros. Fiscais da vida e da fé alheia é tudo o que não falta e esta atitude só tem que parar de partir das próprias bruxas. Esta não é a minha “estética” preferida e pode não ser a de muita gente, mas respeitar a Arte da amiguinha é bem legal. Se funciona, ainda mais, porque afinal… magia boa é aquela que funciona, não é?


Este lado perverso do cristianismo purista só ganha quando ele é usado por crentes e bruxas igualmente, para não permitir o diálogo e a empatia, e para segregar ainda mais as mulheres, afinal, mesmo compondo a maioria da população ainda estamos divididas, e ainda nos mantemos conquistadas. E se depois disso você ainda quiser manter seu preconceito e seu “purismo neopagão” de araque, bem, ponto para o velho stablishment, patriarcal até o caroço, afinal, você faz parte do problema.

[1] Satanic Feminism: Lucifer as the Liberator of Woman in Nineteenth-Century Culture – Per Faxneld

[2] O Calibã e a Bruxa – Silvia Federeci 

[3] The Red Goddess (2007) – Peter Grey, pg 7

[4] Superstição no Brasil – Luiz da Câmara Cascudo, pg 97

[5] Folclore Nacional, Festas. Bailados, Mitos e Lendas pgs 115-116

[6] The British Book of Spells and Charms de Graham King, pg 137

[7] Etruscan Roman Remains in Popular Tradition, Charles Godfrey Leland (pg 351)

[8] O Livro dos Benzimentos Brasileiros – Max Sussol

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