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Foto do escritorEduardo Regis

Definir religião é foda.

Definir religião é foda (desculpem, sei que repeti o título). Eu não vou tomar essa tarefa para mim, vou apelar para o velho Durkheim e tentar apresentar essa discussão bacana. Tomara que ao fim, conhecendo as ideias do famoso pensador, possamos construir melhor nossa própria noção do que é religião. Em seu livro fundamental “As formas elementares da vida religiosa”, Durkheim está preocupado principalmente em entender qual a religião mais antiga e primitiva, de maneira que possa a partir dela, reconhecer elementos característicos que definam também as religiões mais contemporâneas e mais complexas. Ou seja, ele espera conseguir reconhecer melhor os elementos religiosos fundamentais em expressões religiosas mais simples. O primeiro passo, claro, é definir exatamente o que é uma religião. Caso isso não fosse feito, os esforços poderiam ser vazios ou até mesmo equivocados.


Durkheim então primeiro identifica que é preciso procurar dentro da própria religião essas características que definirão a coisa religiosa. Evidentemente, é preciso ir até o fenômeno para entendê-lo, caso contrário, correríamos o risco de procurar em um local inadequado pelos pontos que constituirão a definição de religião. O problema que se apresenta é que para se lançar nessa procura é preciso ter uma noção de religião e essa definição prévia será significativa, pois definirá o que entrará ou não no escopo da investigação, influenciando fortemente o resultado final. Durkheim está aqui tentando ser inclusivo. Ele quer chamar de religião tudo que lhe pareça assim e, desta maneira, espera abarcar expressões até então ignoradas por outros pensadores, como Frazer, que ele próprio cita. A ideia de Durkheim então é abarcar o que foi até então descartado e para isso terá que começar com uma abordagem bastante inclusiva.


Durkheim estuda a possibilidade de que a religião possa ser então qualquer coisa associada ao sobrenatural. Ou seja, que lidaria com tudo aquilo que não seria conhecido, misterioso e que estaria além do conhecimento obtido por meios naturais. Durkheim se vale ao longo de todo o livro do método de apresentar uma noção para depois negá-la e, finalmente, chegar ao que se quer dizer. Assim, Durkheim não entende que a religião passe pelo “sobrenatural”. De fato, ele está certo de que nas religiões primitivas essa ideia do que está além do natural não cabe, pois, para elas o que é compreendido por “mágico” ou “fantástico” pela mente contemporânea de Durkheim seria apenas o que há de mais corriqueiro e esperado. É uma visão de mundo completamente distinta.


O que temos então é que Durkheim entende que os primitivos estão vivendo em um mundo e dentro de uma visão que absolutamente aceita premissas distintas para elementos diferentes. De maneira geral, o homem contemporâneo está preocupado em reconhecer apenas o que as leis científicas definem e entende todo o resto como “sobrenatural”. Entretanto, para o homem primitivo, se reconhece que os trovões geralmente anunciam a chuva e também se reconhece na mesma medida que certos rituais agem com determinados efeitos sem se preocupar em apresentar uma divisão entre esses reconhecimentos. É por isso que Durkheim diz que a ideia de “sobrenatural” é recente, pois ela é oposta a uma “ordem natural das coisas” (como o autor coloca). A questão da religião e do homem primitivo passa então por uma visão distinta de “ordem natural”, que aceita mais elementos.


Apesar de que, Durkheim pontua, dentro do pensamento primitivo há também o espaço para coisas extraordinárias. Utiliza como exemplo o eclipse solar, um apagamento não esperado da luminosidade. Isto estaria fora do esperado e assim seria atribuída a isso uma causa diferenciada – que teria, em sua opinião, dado origem ao “sobrenatural”, dentro do próprio contexto primitivo e da religião primitiva.  Durkheim é cuidadoso em dizer que o “sobrenatural” não pode ser entendido só como o novo e o inesperado, mas é preciso que seja o “impossível”. Essa é uma diferença fundamental. Isso diz novamente que o homem primitivo e a religião primitiva apresentam suas “leis” e que quando algo acontece que não é possível de ser explicado por elas, torna-se extraordinário.


Mesmo com toda essa discussão, Durkheim diz que é errado procurar pela religião no que é fora do comum, pois o pensamento religioso, para ele, estaria preocupado em explicar o que é comum e esperado. Ou seja, a religião, no fim das contas é uma coisa que trata mais do cotidiano e do que é frequente. Assim, ele entende que o mistério não pode ser elemento caracterizante da religião.


Cumpre notar que isso não quer dizer que este elemento não esteja exprimido nas religiões. Durkheim está aqui procurando os elementos caracterizantes e não todos os elementos constituintes da coisa religiosa. Portanto, é evidente que religiões lidem com mistério. Aliás, o “que não se sabe” permeia toda a experiência humana.


Discute então sobre o conceito de divindade, muitas vezes também compreendido como o que define a religião. Entretanto, ele logo coloca que nem todos os sistemas de crenças apresentam “deuses”, embora os espíritos e ancestrais possam fazer às vezes do divino, uma abordagem tomada por Tylor. Assim, por essa visão, a religião seria o fenômeno de interação com seres espirituais.


Durkheim logo derruba esse argumento ao discutir que “grandes religiões” não se baseiam ou não apresentam deuses e espíritos, usando o exemplo mais do que explorado do Budismo. Ele discute o fato do próprio Buda ser considerado um deus por algumas vertentes e algumas personalidades, mas é coisa que não exprime necessariamente o sistema do Budismo.  Indo além e entrando numa discussão muito acertada, Durkheim alerta que até mesmo dentro dos sistemas religiosos que se orientam por deuses e por espíritos há atos e ritos que não se ocupam desses “seres”. Mesmo que esses ritos e atos possam ser, de fato, periféricos nessas religiões, são elementos constitutivos dela. Por isso, Durkheim acredita que não se pode caracterizar a presença de deuses e espíritos como coisa caracterizante da religião.


Durkheim reconhece que a religião é “um todo formado por partes” e isso é importante, pois sem conhecer a parte (como ele tenta), não será possível entender o todo. Para ele a religião está apoiada em crenças e ritos. Crenças seriam os determinantes da visão de mundo e os ritos seriam as ações, que, arrisco dizer estão orientadas pela crença e também orientam a crença. Temos uma dinâmica complexa entre estes dois pilares.


Ritos, de fato, para Durkheim são ações que só são reconhecidas em classe especial pela sua preocupação e pela sua natureza. Ou seja, ele começa a discutir aqui uma separação das coisas e é essa separação em profano e sagrado que Durkheim elenca como um elemento caracterizante de todas as religiões. Essa dicotomia é um recurso amplo e interessante. Durkheim faz questão de deixar claro que o sagrado não pode ser restrito a uma classe espiritual ou divina. Qualquer coisa pode ser classificada como sagrada, isto dependerá da cosmovisão em questão. Nisso, os ritos também apresentam essa divisão em si. O rito religioso encerra em si a ocupação de lidar com o sagrado – mesmo que haja nele partes profanas e que exista nele uma manifestação objetiva que pode ser entendida como profana (seguindo Eliade).


Durkheim destaca que o que é sagrado apresenta uma diferenciação no sentido de  maneira que é frequentemente considerado como um estado superior ao profano. É uma boa questão, e se consideramos em que há cenários onde a coisa hierárquica não apareça, como diferenciaremos o que é sagrado do que é profano? Há outras maneiras, claro. Uma seria pelas sensações e impressões que o sagrado poderia despertar, por exemplo. Neste sentido, certas coisas sagradas parecerão mais “ordinárias” aos homens e terão em si o caráter profano também encerrado em si.  Assim, é importante que Durkheim note que a ordenação hierárquica não é o que caracteriza a dicotomia sagrado x profano.


Ele aponta para que essa diferença seja caracterizada pela sua “heterogeneidade” que é “absoluta”. Ou seja, estamos diante de categorias marcadamente e inequivocamente distintas e é essa certeza, que é coisa da ordem da natureza delas, que marca essa divisão. Neste sentido, Durkheim formula que se determinados conjuntos de coisas sagradas se relacionam em um ordenamento ou sistema, aí então se constitui uma religião. Assim, ele retorna as “partes” que constituem o “todo” e caracteriza que o sistema religioso é claramente heterogêneo e não se pode pensar na religião como algo homogêneo.


Durkheim se preocupa com uma questão interessante. De acordo com a definição que se baseia na dicotomia até então exposta, a magia também estaria incluída dentro dessa concepção, pois também se baseia em crenças e rito. Apesar de Durkheim achar que a magia seja mais rudimentar, coisa que pode ser objeto de extensa discussão. Lembro-me bem da tese de Robert Ritner que não consegue separar a magia da religião no Egito Antigo. De toda a sorte, Durkheim se baseia em Hubert e Mauss e coloca a diferença entre magia e religião como algo em conflito, na qual a magia é própria em profanar o que é religioso. Ou seja, essas duas expressões são marcadas pelo conflito. Além disso, Durkheim alega que a crença mágica não une os homens como a religião une em uma igreja. Entretanto, é possível contestar isso – já que existem fraternidades dedicadas ao estudo e prática mágica. Durkheim, porém deixa claro que essas associações não são fundamentais para a prática mágica. Entretanto, a observação de fraternidades mágicas contemporâneas revela que existem certas práticas mágicas que são possíveis somente em grupo. Essa discussão, porém não caberia aqui com a complexidade que mereceria. Enfim, cumpre dizer que para ele a religião é dependente dessa prática e convivência comunitária. Aqui surge outra questão, as sociedades mágicas não ofereceriam nada para quem quer que não fosse “mago”. Entretanto, isto também não se vê como verdade nos tempos atuais, onde existem sociedades mágicas que oferecem sacramentos aos leigos. Se elas se aproximaram de religião ou se essa diferença é que não dá conta de explicar o mundo é coisa que renderia discussões relevantes.


Assim, Durkheim entende que a religião envolve um sistema de crenças e práticas relacionados a um conjunto de coisas sagradas inter-relacionadas e que une uma comunidade. Ou seja, a religião para ele seria necessariamente coletiva.  Isto, claro, não elimina um eventual fator ou rito solitário.


Durkheim então coloca na religião um fator social importante. Esse sistema “solidário” de crenças que trataria do sagrado seria um elemento eminentemente social. Ou seja, Durkheim coloca a religião propriamente como coisa humana: social e que se organiza em torno do sagrado – e a diferenciação do sagrado e profano é coisa que só o humano pode caracterizar de tal maneira, por força de uma impressão que a coisa sagrada passa.


De fato, o autor estabelece uma definição de religião que abarca mais do que o se entende usualmente por religião, principalmente por afastar da religião a noção de que ela necessariamente orbite ao redor de um deus ou de espíritos. Ao parar de focar na questão “sobrenatural” e ao colocar os elementos caracterizantes na heterogeneidade e na coletividade, evita, portanto, abarcar coisas demais (como práticas muito reduzidas de superstições ou coisa similar) e também inclui sistemas tão distintos que seriam desprezados por pensadores preocupados apenas com a questão da divindade.


Assim, ele consegue chegar ao totemismo, que seria julgado por outros contemporâneos dele como mero sistema mágico ou ainda de superstição, que ele determina como o sistema mais simples e primitivo. Aqui cabe uma observação. Primitivo de primeiro, aceitamos. Porém, entender o totemismo como simples seria uma contradição até mesmo com seu próprio trabalho monumental. De fato, se pegarmos os trabalhos de Levi-Strauss (mais tardios, sejamos justos), principalmente em seu “Pensamento Selvagem” que vai falar da estrutura do totemismo e revelar também como este é extremamente complexo. Por isso, precisamos ler as palavras de Durkheim dentro do contexto adequado.


Enfim, é fácil perceber o brilhantismo da concepção Durkheiniana da religião. Cabe principalmente aqui a questão da coletividade. É, de fato, essa inovação do autor que entende a religião como uma expressão da sociedade, assim como ele acredita que o indivíduo precisa ser compreendido a partir também da coisa social. De fato, a coisa religiosa é indubitavelmente um elemento (expressão ou não da sociedade – essa discussão poderia ser levantada) que age como uma peça de coesão em grupos sociais, mesmo que os grupos sejam os grupos religiosos em si – ou seja, restritos em si. Neste ponto, percebemos com clareza ao observar que o ethos, segundo Geertz, é algo que absolutamente pode ser influenciado ou definido por um sistema religioso.


Se vamos aceitar ou não essa visão Durkheiniana da coisa religiosa, fica para debate e reflexão. Fato é que as ideias desse grande estudioso nos ajudam a responder melhor a seguinte pergunta: afinal, para nós, o que é religião? Já pararam para pensar sobre isso?

Bibliografia:

Eliade, M. O Sagrado e o Profano. WMF Martins Fontes. 2010.

Durkheim, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Paulus. 2008.

Levi-Strauss, C. O Pensamento Selvagem. Papirus. 1989.

Geertz, C. A interpretação das culturas. LTC. 2017.

Imagem de msandersmusic por Pixabay.

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