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As Bruxas de Évora

Me fascina em minha pesquisa ver o constante ir e vir entre Mito e Magia: que melhor exemplo que Cipriano para isto, personagem lendário, criado para promover o Cristianismo, atacar a magia e o paganismo, e que acabou dando origem a tantas tradições de feitiçaria? E de seu livro português também veio a Bruxa de Évora, que de fábula virou pombagira.


Foi graças ao eminente ciprianista português José Leitão que o segredo da origem desta personagem se esclareceu para mim: o texto que aparece na edição do Livro de S. Cypriano ou Thesouro do Feiticeiro, publicado em fins do século XIX pela Livraria Econômica em Lisboa, com o título de A Feiticeira de Évora ou História da Sempre Noiva, foi tirado de uma obra de Amador Patrício (pseudônimo de Martim Cardoso de Azevedo) publicada em 1739, a Historia das Antiguidades de Evora.

EBORA LIBERALITAS JULIA


O historiador Plínio (o Velho) no primeiro século chamou o povoado romano estabelecido no local onde hoje se encontra a cidade de Évora de Ebora Cerealis, nome derivado do celta antigo eburos, que indicava um arbusto conhecido hoje como teixo. As vizinhanças são notáveis pelos megalitos neoliticos que remotam à cinco mil anos, incluindo o Cromeleque dos Almendres, um dos maiores conjuntos de menires da Europa.


No século I antes de Cristo, o povoado recebeu o título honorifico Liberalitas Julia por sua fidelidade ao imperador romano Júlio César durante as guerras civis. Um dos marcos históricos desse tempo são as ruínas do Templo erguido em honra ao imperador Caesar Augustus, que era venerado como um deus; a atribuição do Templo à deusa Diana foi feita erroneamente no século XVII, e novamente em outro erro em 1945 à Deusa da Graça.

NO LIVRO DE SÃO CIPRIANO


O capítulo dedicado à Bruxa de Évora na edição da Livraria Econômica abre com a descrição da descoberta de um lugar fantástico que, na verdade, vem de uma narrativa também da Historia das Antiguidades de Evora mas que não se refere à Bruxa. É a descrição (bem interessante) da descoberta da sepultura de um Montero-mur, durante a suposta construção (ou recontrução) do Castelo de Giraldo, um castro (estrutura fortificada) com origens na Idade do Bronze, localizado hoje no Distrito de Évora:


No meio da casa estava uma cova da altura de um homem. Pela banda de dentro estava toda pintada em roda, de lagartos, cobras e lagartixas. Na parte de fora, pelas bordas, estavam quatro sapos de pedra naturais, e entre sapo e sapo umas figuras de meninos, cada um do tamanho de meio côvado, em pé. Tinham nas mãos uns molhos de varinhas com que ameaçavam os sapos. Em um dos cantos desta casa estava a figura de um monstro que da cabeça até a cintura era homem, e da cintura para baixo serpente enroscada. No outro canto estava uma tartaruga e em cima dela um corvo que tinha na boca um morcego, como quem o estava comendo. Nos outros dois cantos, em cada um, uma figura de mulher, uma acordada e outra dormindo; a acordada tinha na mão esquerda uma cabeça de homem pelos cabelos e aos pés estava um rafeiro com a boca aberta, como quem queria arremeter à cabeça, e a mulher com a mão o impedia. A que dormia tinha em uma das mãos um mocho e na outra um gavião com as asas abertas desejando arremeter ao mocho. Pelas paredes da casa estavam muitas pinturas de caracóis, lesmas, rãs, vespas, zangãos, escaravelhos, carochas e outros mais bichos miúdos.


Essa é parte do texto como se vê no Livro de S. Cypriano; este segue bem fielmente o que se vê na Historia das Antiguidades de Evora, com um ou outro erro de copista; mas, a seguinte frase foi inserida para associar o lugar com a Bruxa de Évora,

Era o antro onde a bruxa Lagarrona fazia os seus feitiços diabólicos.”


Lagarrona é o nome dado na estória para essa bruxa, que também é chamada várias vezes de feiticeira. Em nenhum momento no texto original vemos as expressões Bruxa de Évora ou Feiticeira de Évora serem usadas; essas expressões, que se tornaram tão populares, foram introduzidas pelo Livro de S. Cypriano que deu ao seu texto composto o título de A Feiticeira de Évora, ou História da Sempre Noiva. Ao apresentar a personagem, Amador Patrício escreveu que se tratava de “uma Moura, também Mágica, e encantadora, que se chamava Lagarrona“.

OS PODERES DA BRUXA DE ÉVORA


Essa estória nos apresenta a Lagarrona como uma feiticeira de grandes poderes: ela torna seu filho invisível, e depois o transforma em um asno. Aqui encontramos novos erros do copista, que afirma que esse burro desapareceu “fugindo pelos campos”, quando a narrativa original diz que ele foi levado pelos ares – por tanto a Lagarrona também tinha este poder.


A feticeria “tinha alcançado por seus encantamentos que seu filho desapareceria por amor de uma cristã“, logo, ela podia prever o futuro. Ela preparou feitiços que, postos debaixo dos travesseiros, fizeram a moça cobiçada por seu filho e seu noivo adormecerem sem consumar o casamento, e outros encantamentos que, colocados na roupa do noivo, o matatram em vinte e quatro horas. E assim com mais dois pretendentes.


A isto tudo, se acrescenta poderes de ilusionismo, bem descritos em um interessante parágrafo que, infelizmente, o copista do Livro de S. Cypriano esqueceu de incluir, e que eu aproveito para resgatar. Segundo o que se vê na Historia das Antiguidades de Evora, quando a moça pretendida por seu filho se encontrava cativa em sua morada, a Lagarrona a distraia:


“[…] com muitas invençoens de encantamentos: ora parecia, que estava em seus Paços mui sumptuósos, em jardins frescos, e pomares alegres: outra vezes lhe inventava caças de feras, jógos de cavallos, torneos, danças, mascaras; e finalmente mil cousas, com que ella passava o tempo, e se alegrava.”

A Lagarrona, em desepero quando seu filho foi preso e setenciado, novamente recorreu aos seus poderes de ilusionismo, fazendo aparecer na prisão “muitas sombras negras envoltas em fogo” e “gigantes armados e animais ferozes”.

Atando pois o preso, de pés e mãos, saíram com ele para o justiçar; mas chegando à forca começaram grandes trovões e relâmpagos, que a todos apavoraram, e logo sobrevieram umas nuvens negras, tão espessas, que se escureceu o ar e se não viam uns aos outros, e depois disto se abriu a terra, saindo muito fumo e sombras negras que andavam pelo ar, com umas cobras nas mãos, fustigando a todos. Depois ouvindo-se um grande baque e tremor de terra tornaram os ares a ficarem claros como antes.”


A bruxa morre no fim da estória, quando seu transe mágico é interrompido pelos homens da justiça durante um grande feitiço, e ela sofre um acidente fatal. Como o Livro de S. Cypriano também aqui apresenta erros de cópia, cito do original:


A justiça a pôs naquele lugar dependurada, onde esteve até apodrecer, que era mesma casa, em que ella morava;  e dalli por diante se ficou chamando Lagarrona, tomando o nome desta feiticeira, que alli morreo, e mudando-se huma letra se chama hoje Lagardona.

As palavras mágicas que utilizava a Lagarrona em seu último feitiço, segundo a estória, não foram registradas, “porém alguns Authores dizem […] que dizia as palavras seguintes”:

Olenta in pus, nigabao, negabus. Oleolapolaó merrinhao, mirrinhaó, nhao, nhao, nhao, nhao.

O copista do Livro de S. Cypriano nos deixou:


Olenta in pus, nigalao negabus. Oleolapolaó, merrinhaó, merrinhao, nhão, nhãn, nhão!

Novas Estórias


Quem conta um conto aumenta um ponto. O Livro de S. Cypriano nos acrescentou várias estórias onde, sem ligar para detalhes de tempo e lógica, temos aventuras onde o santo e o feiticeiro se misturam. Da mesma forma, novas narrativas sobre a Bruxa de Évora foram sendo criadas. Uma das mais bonitas se encontra no livro de Maria Helena Farelli:


Mas que têm a ver os árabes com a nossa história? E que, segundo a lenda, a Bruxa de Évora era moura; sim, diziam que era árabe ou mourisca. Era morena, não branca como a maioria das portuguesas. Tinha vindo de terras quentes e tinha amigos árabes, mas fora criada na Ibéria; por isso, ela falava bem o árabe e o português, além do latim. A lenda diz ainda que seu pai e sua mãe morreram quando ela tinha sete anos; que uma velha tia a criou e ensinou-lhe as artes mágicas, dando-lhe como talismãs sete moedas de ouro do califa Omar, uma pedra ágata com inscrições em árabe e uma chapa de prata com o nome do Profeta. E a ensinou a trabalhar em olaria: a bruxa fazia suas panelas de barro e seus vasos. Dizem alguns que ela era louca por tapetes e, todo dinheiro que ganhava, gastava neles. Diz a lenda que ela lia o Corão e escrevia; tinha entre seus pertences um rico tinteiro de cobre cinzelado. Sabia matemática e, olhando o céu, reconhecia as estrelas; sabia ler a sorte nas areias, nas estrelas, e fazer feitiços e curas. Ela conhecia as magias de seus ancestrais muçulmanos; mas, vivendo no século XIII, também sabia a dos celtas, que por muito tempo ocuparam o sul de Portugal. Infiel, portanto. Adoradora do Cão… Inimiga da Igreja. Mas a velha bruxa já tinha feito a peregrinação a Santiago de Compostela, onde havia relíquias preciosas. Já tinha ido à Sé de Braga muitas vezes pagar promessas, e vivia bem. Era livre. Colhia flores e ervas, ganhava seu rico dinheirinho, era temida e respeitada. Só tinha medo de ser presa e torturada como adoradora do diabo. Assim, sumia. Diziam que voava na sua vassoura, com seu mocho às costas… coisas do tempo dos reis...”

A narrativa de Farelli transforma a Bruxa de Évora em uma heroína mágica, mesmo em uma erudita. Na narrativa original ela era, na verdade, uma feiticeira perversa que colabora no sequestro de uma virgem cristã e ajuda a matar seus noivos.


CIPRIANO & A BRUXA


As narrativas originais sobre São Cipriano o fazem mártir durante o reinado de Diocleciano, que reinou de 284 a 305. A estória da Bruxa de Évora decorre durante o tempo da ocupação muçulmana de Portugal, que durou de 726 a 1249. O livro São Cipriano o Legitimo Capa Preta, entretanto, não teve pudores em colocar os dois personagens em uma mesma narrativa:


Com trinta anos, foi para a Babilônia onde deveria aprender a astrologia e os mais profundos mistérios dos caldeus, ao mesmo tempo em que se entregava a uma vida impura e escandalosa. Para poder estar mais ligado aos demônios estudou magia e chegou a associar-se à velha Bruxa Évora, conhecida como a mais poderosa cartomante e interpretadora de sonhos. Quando a Bruxa morreu, já com bastante idade, deixou-lhe todos os seus segredos e descobertas, cuidadosamente compilados em seus manuscritos, material que seria de grande utilidade para Cipriano.”


A bruxa aqui tem um final mais digno… Nos textos originais sobre São Cipriano, escritos no século quatro, uma das primeiras coisas que o bruxo faz ao decidir se converter é se apresentar ao bispo e queimar seus livros; o São Cipriano o Legitimo Capa Preta também inova neste ponto:


Já convertido, Cipriano apressou-se em distribuir os seus bens aos necessitados e seus manuscritos, bem como os apontamentos da Bruxa Évora, ele os guardou no fundo de uma grande arca, trancando-a com poderoso cadeado. Muito embora Cipriano reconhecia que os mesmos não tinham nenhum valor contra o Deus Todo Poderoso, adorado por Justina e Euzébio, ele reconhecia que aqueles documentos poderiam, no futuro emancipar muitas dúvidas e elucidar certos mistérios.”

A BRUXA POMBAGIRA


O Livro de S. Cypriano menciona dois personagens que posteriormente viriam a fazer parte da Quimbanda; Maria Padilha aparece em cinco feitiços deste livro, e é hoje uma das suas entidades mais importantes. Feitiços com Maria Padilha aparecem nas confissões de bruxas portuguesas exiladas pela Inquisição para o Brasil, nos tempos da colônia, mas a Bruxa de Évora só fez sua passagem do Mito à Magia graças à popularização dos Livros de São Cipriano vendidos e publicados no Brasil.


A Pombagira Bruxa de Évora tem se tornado popular; este me parece ser um fenômeno recente, pois não encontrei menção a ela (até o momento) na literatura de Umbanda e Quimbanda das primeiras sete décadas do século XX. Em uma fonte de Internet, que utiliza também material do livro de Farelli, hoje vemos:


Pomba-Gira Bruxa de Évora é muito requisitada quando não se sabe mais o que fazer. Ela sabe e faz com a maior boa vontade, pois é sedenta para completar seu objetivo. Ao invés de perseguir suas vítimas, ela prefere atraí-las, o que faz muito bem.  É ela mesma quem decide qual espírito será designado para cada missão e tem o poder de surpreendê-los se não desempenharem bem suas tarefas.”


E ainda:


Era sempre visitada por um bode preto. Os bodes sempre foram animais dos feiticeiros por serem considerados sensuais. A Pomba-Gira Bruxa de Évora obedece a todas Yabás (orixás femininos), uma entidade pouco conhecida que tem muitos mistérios à sua volta. Quase não se ouve falar nela, mas trabalha com todo tipo de magia e encantamentos para todos os fins. Ela se apresenta como deseja, ora como uma senhora, ora uma dama, ora uma moça bonita e faceira. Por trabalhar para todas Yabás, não tem um estereótipo muito definido, gosta de champanhe e cigarrilhas.”


Comprovando que veio para ficar, a Pombagira Bruxa de Évora tem já sua própria imagem, como podemos ver a seguir. Ela segue o arquétipo da bruxa velha montada na vassoura tão popular em nossa cultura.

Imagem da Pombagira Bruxa de Évora. Foto de Verónica Rivas

AS VERDADEIRAS BRUXAS DE ÉVORA


Quando foi surpreendida em seu último feitiço, a Lagarrona se encontrava em um cômodo onde “no chão estava pintado hum sino samão”, um signo de Salomão. Este detalhe está conforme narrativas coletadas pelos inquisidores portugueses; em O Imaginário da Magia – Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no Século XVI,  de Francisco Bethencourt, por exemplo, vemos:


Isabel Lopes, por exemplo, costumava dizer que fazia uma roda na casa e entrava nela e de dentro havia de chamar os diabos, os quais se a achassem fora daquela roda e do sino samão que a fariam em pedaços.”


A Inquisição Portuguesa começou em Évora em 1536, com a promulgação da bula papal Cum ad nihil magis; seu tribunal funcionou até 1821, quando o Santo Ofício em Portugal foi extinto pelo governo.


Uma coisa muito interessante levantada por Francisco Bethencourt, a partir dos processos do tribunal de Évora, é a existência, no século XVI, de uma rede de intercâmbio e aprendizado entre as feiticeiras. Assim sabemos, por exemplo, que as feiticeiras Brites Marques e Brites Frazoa eram consideradas pelas demais como sendo “as mais sabedoras”; Brites Marques era consultada em casos mais difíceis pelas companheiras Inês Arruda, Inês Rodrigues Catela e Guiomar Rodrigues, que mesmo lhe enviavam “clientes cujos problemas ultrapassavam seu nível de competência”. Essas redes de feiticeiras se estendiam também para fora das localidades: Ana Godinha, feiticeira de Alcácer do Sal, aprendera com Brites Frazoa de Évora, e mesmo as “mais sabedoras” Brites Marques e Brites Frazoa consultavam a mourisca de Montemor chamada Maria Fernandes. Em um detalhe interessante, a feiticeira Jerónima da Cruz confessou ter aprendido a se comunicar com o diabo com “uma moura cativa”.


Essas bruxas e feiticeiras presas na malha da Inquisição de Évora às vezes eram enviadas para cumprir pena no Brasil. Por exemplo, em 1675 o Tribunal de Évora prendeu Leonor Gonçalves, acusada de feitiçaria, superstição e pacto com o diabo, e a degredou para a colônia. Leonor confessou conversar com seu anjo da guarda e seu marido defunto, e que “tirou do altar da. Igreja da Misericórdia da Vila de Frades, um pedaço de ara para com ela fazer certos feitiços com intuito de curar os doentes”. Ela declarou aos inquisidores que:


Nossa Senhora do Rosário era a mãe do Diabo e Nossa Senhora dos Remédios era a tia do diabo e que lhe entregara a sua alma e o seu coração por não ter coisa melhor que lhe dar.” (Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas: Os Degredados no Brasil-Colônia, Geraldo Pieroni)


Degredadas para nossa terra, essas Bruxas de Évora se tornaram, por direito, as primeiras Bruxas do Brasil.

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