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Apagão

Eu não sou um cara cagão. Nem pra filmes de terror, nem pra barulhos no meio da noite, nem mesmo pra escalar montanhas ou pegar o controle remoto quando o gato resolve deitar em cima (odeio gatos, minha mão é sempre um alvo fácil). Até hoje eu não sei se o meu medo da chuva é devido a um sonho (ou pelo menos eu tento me dizer que foi um sonho) ou se foi efeito da porrada que eu dei sem querer na quina da estante naquela noite, mas eu nunca entendi o que realmente aconteceu. O medo do escuro já não é uma coisa tão incomum assim, mas às vezes eu ainda acordo no meio da noite assustado se o abajur não está aceso.


O Rio de Janeiro passou recentemente por uns dias de chuvas torrenciais. Trânsito, pessoas presas nas casas, árvores caindo, deslizamentos, bueiros entupidos, água de leptospirose pra todo lado. Uma puta nojeira pra falar a verdade. No dia da ultima chuva eu fiquei feliz por estar em casa. Meus pais e minha irmã resolveram ir ao shopping passear depois do trabalho. Olhem bem pra minha cara de quem passeia no shopping depois do trabalho. Eu quero tocar uma, jogar Resident Evil até cansar e desmaiar. Com sorte me trariam um sanduiche. Não preciso nem dizer que desmaiei e apenas acordei horas depois com os passos e as vozes da minha família chegando em casa com a TV da sala ao fundo. E o barulho da chuva.


Esperei minha mãe entrar no quarto pra me cumprimentar como sempre faz, mas dessa vez ela não o fez. Mesmo grogue decidi levantar com esperanças de alcançar o meu possível sanduiche quando ouvi o maior estrondo possível, e no susto, bati com a cabeça na quina da prateleira. Me lembro de uma luz cegante e uma vibração conjunta com o barulho que pareceu durar minutos. Não pude evitar, me senti em uma cadeira elétrica e fiquei lá paralisado por uns segundos. Pelo menos acho que foram segundos.


Levantei no escuro, desorientado, me debatendo e levantando rápido.


“MÃE! PAI! BIA!” – comecei a correr pela casa – “BIA! MÃE!”


Tropecei em algo grande e caí. Me levantando lentamente estava uma silhueta com os cabelos caídos levemente sobre o rosto se levantando e no mesmo nível que eu.


“Bia?”


“Oi, bundão!”


“PORRA, VOCÊS QUEREM ME MATAR DE SUSTO?”


Ela se levantou, andou em direção a sala. De onde estava, e ao lado dela, avistei minha mãe. Cheguei perto para lhe dar o abraço de sempre


“Vem cá coroa, não me assusta mais assi…MÃE, QUE PORRA É ESSA… Você tá encharcada e pegajosa”


Esperei sua resposta


“Mãe? Tá ouvindo?”


Levou uns segundos e ela pigarreou. Mais parecia um disco arranhado do que um pigarro.


“Está chovendo, Rodrigo. As pessoas se molham quando está chovendo.”


Minha mãe se afastou de mim.


“Tá, e meu sanduiche?”


Não obtive resposta. E também não estava com saco para esperar.


Me virei para ir até a cozinha fazer meu próprio jantar quando de repente ouvi barulhos vindos do lado de fora da casa. Os barulhos iam ficando cada vez mais altos, eram passos que vinham dos fundos. Foi quando me preocupei e sugeri que todos ficássemos juntos e nos encolhêssemos na sala. Se tivesse alguém lá fora a pessoa ia se mancar e dar o fora se não fizéssemos barulhos (Como se serial killers ou assaltantes ligassem pra isso, mas na hora pareceu sensato e pela primeira vez na vida não me censuraram por ter uma ideia idiota). Nós três nos encolhemos no sofá abaixadinhos. Eles estavam TÃO molhados e gelatinosos. Foi quando comecei a sentir um cheiro estranho. Parecia carne passada depois de uma semana na geladeira. Não havia notado antes. Mas os barulhos eram mais importantes. Pensei em gritar que havia chamado a policia (a quem eu queria enganar?!), mas como todos continuaram em silêncio resolvi ficar também. Mas aquele cheiro… Eles já estavam dentro da casa a pelo menos uns quinze minutos e estávamos todos juntos, e eles continuavam tão… gelados.


Os barulhos pararam por um curto espaço de tempo, e foi então que eu mesmo sugeri que contássemos historias para nos distrairmos. Achei uma ideia besta, mas no fim acho que deu certo… passamos uns bons cinco minutos recordando(ou pelo menos eu passei cinco minutos falando e eles ouvindo) os passeios, momentos da infância e aventuras, sempre nós cinco. Eu, meu pai, minha mãe, minha irmã e a bola de pelo que ela leva pra todos os lugares, o Fofinho. FOFINHO, PIOR. NOME. DO. Espera.

Não vejo essa bola de pelo já faz um tempo.


Os barulhos voltaram no meio do meu pensamento e eu quase dei um berro. Estavam na porta da frente. Tinha alguém ali forçando a nossa maçaneta. Coloquei a cabeça entre os joelhos e por algum motivo cobri os ouvidos. Olhei pra cima e lá estavam. Três silhuetas no escuro. Eles tinham a chave da minha casa. Entraram, fecharam a porta. Eu não sentia mais minhas pernas a essa altura. Eles andavam tateando em silêncio e eu quase me caguei nas calças quando o mais alto veio em minha direção. A luz voltou. Eram meu pai, minha mãe e minha irmã. Eles haviam ficado presos no shopping, estavam ensopados. Iam entrar pelos fundos, onde estacionaram o carro, mas papai deixou as chaves caírem em algum lugar. Voltaram pra procurar, e depois que encontraram decidiram entrar pela porta da frente pra não me assustarem por causa do apagão. Olhei meu celular, umas dez chamadas não atendidas deles até cinco minutos atrás.


“Achamos que você estava dormindo, bundão.”


Bundão. “Oi, bundão!”


A TV religou com a volta da energia. “RODRIGO BUNDÃO, RODRIGO BUNDÃO, RODRIGO BUNDÃO” ecoava pela sala saindo da TV, a voz irritante da minha irmã. Era o DVD do nosso vídeo caseiro de natal. Estranhamente no natal passado estava chovendo.


“Mãe, você está ensopada!”


“Está chovendo, Rodrigo. As pessoas se molham quando está chovendo” Após dizer isso minha mãe me beijou carinhosamente no vídeo.


Sinto algo afiado na minha mão direita e me viro quase tendo um ataque cardíaco. Era só a bola de pelo.


Desorientado fui para o meu quarto. Naquela noite eu não apaguei as luzes nem consegui dormir. Sempre que chove eu não consigo dormir. Sempre que chove eu acompanho minha família pra fazer qualquer programa idiota que eles queiram depois do trabalho.

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