“Prova-me que sou seu filho, pai Sol! Reconhece meu brilho e distinção principesca!”, grita Phaeton.
Caminho longamente pelas pedras e rios e tempestades e calmarias deste Reino, sem contudo ter disponível aos meus olhos de criatura a prova cabal de minha origem divina, semente do Criador. Quanta dor e quanta tristeza me assolam… vejo-me enclausurado a tão ordinária jornada, homem entre homens, mulher entre mulheres!
É aquela dúvida que me consome, alimentada pela sanha dos que me rodeiam e insistem em não admitir minha excepcional origem divina. Sou o filho do deus Sol, será que vocês não conseguem ver? Onde estão a clareza, a razão, o intelecto a legitimar-me? Onde a luz que poderá me distinguir dos comuns, esses reféns do instinto e da selvageria, e elevar-me às esferas celestes e régias? Diga-lhes, mãezinha, que não me misturo com essa gentalha!
E ainda que internamente a anima sussurre em meu coração a Verdade da minha divindade de microcosmo, anseio pelo reconhecimento dos olhares alheios: esses seres de formas indefinidas, cuja vontade livre ameaça desvelar minha transitória inconsistência solar, que a custo travisto com a maquiagem lunar da orgulhosa superioridade, ou tímida inferioridade. Vícios de sol nascente, ainda longe do crepúsculo da sabedoria aureolada pelo Fogo Puro. Mas a caminho. Mas… há caminho.
Saciar-me com a voz íntima e perene, que desde sempre afirma minha origem divina, não parece agora uma opção. Vou de encontro ao Pai. Caminho para o leste rumo ao apolíneo palácio dourado, e, tal qual aquele cara da anedota hermética – que, quando enfim na presença de seu Sagrado Anjo Guardião, pediu a ex-namorada de volta -, na presença do Grande Deus Solar eu peço: “Prova-me que sou seu filho, pai Sol! Não me basta ser centelha, quero já provar-me estrela! Deixe que eu guie a sua sagrada carruagem, que me exiba pelos céus levando o dia e abandonando o Reino à noite, com o simples advento da minha presença! Todos assim verão, e honrarão o Sol que Eu Sou!”
“Mas e você, filho meu, verá? Você, filho meu, então honrará a si?” São essas as perguntas divinas que ecoam eternamente pelos céus e terras, após o raio fulminante de Zeus que suplanta com justiça a tão trágica cena do assoberbado filho. Tragédia que aguarda a todos e todas nós, quando teimamos em portar-nos como o Sol que guia a vida dos outros, sem suficiente experiência e sabedoria para tal; atuando, assim, no sentido destrutivo, porque desordenado, da Criação. Será tão difícil regozijar-se em ser centelha, aprendiz de divindade, em lugar de querer antes da hora ser o Sol que ilumina todo e qualquer tempo e espaço? Haverá comida suficiente para essa gula solar? Haverá lugar para ele, ou todos os lugares lhe pertencem, porque vistos através de lentes tão distorcidas pela dor e pela calúnia? Haverá de estar para sempre aprisionado pelo medo de que alguém descubra a sua farsa épica? Afinal sois filho do Sol, e isso de fato sois. Contudo, e por enquanto, nada além. “Sente-se e ouça, então, com toda a paciência e compaixão que consiga praticar, enquanto te ensino o Mistério da minha carruagem solar.”, é o que nos cochicha baixinho esse sagrado e luminoso Princípio.
Ah, o Sol! Ao Sol está tudo o que permito, o que passa sem freios à luz da consciência, e emerge cristalino na superfície da vida, tanto da que nos é interior, quando da vida exterior. Aquilo de que me orgulho, aquilo que me retrata perante a consciência mais íntima, consciente que é de que sou filho do Sol tão sujeito à luz do dia quanto exilado na noite escura… e ser filho, isso vimos, é muito diferente de ser o próprio Sol. Mitologia é trem didático.
Arrisco-me a dizer que essa distinção existe porque ainda não estamos dispostos a agir como o Sol, que não apresenta faces escuras. É todo clareza e verdade, veículo de iluminação onde quer que vá, contando para isso com nada mais que sua própria natureza. O somos também? Nem sempre. A dualidade interior/exterior frequentemente nos rasga ao meio, e impede a reconciliação inocente de animus e anima infantis, que alegremente brincariam em nossos interiores após ultrapassarem o nem tão alto muro da provação do ego-ísmo. Egoísmo, esse menino Phaeton que nos habita.
“Cindir-se em dois”, acho que diria um certo Sol Maior, “só vale à pena se for para não sentir-se uma consciência solitária e criadora na imensidão. Só vale a pena criar um outro ser à minha imagem e semelhança, e por isso dotado de livre-arbítrio, se for para poder brincar de criar com ele e sua pequenina Razão em formação; surpreender-me a cada dia com sua criatividade outra que não a minha… (a Criação como um encantamento de Amor, mas disso falaremos noutra espiada no Espelho).”
E o Sol Maior continuaria: “Contudo, para o caso de algum dia eu querer criar algo e ele não estar de acordo, estabeleço Agora que nos manteremos em expansão eterna, percorrendo uma jornada infinita pelos multiversos. Assim há de haver espaço para a nossa dissonância, bem como para a consonância. Para isso, de nada precisaremos além da Lei, localizada bem no Meio entre o Eu e o Outro. Está feito.”
Ao Sol ele mesmo, deixo aqui meu agradecimento, junto a tantos outros que acumulo, graças a esse hábito tilelê de saudá-lo todas as manhãs com minha xícara de café. Sou grata porque ele me ensina todos os dias que nasce para todos, e não só para os meus escolhidos. Sou grata porque assim posso levar a lição para dentro, e aos poucos iluminar meus interiores sombrios e egoístas, que clamam pelo reconhecimento da divindade dessa minha natureza temporariamente dual. Reconhecimento esse que talvez…
agora começo a pensar que, talvez…
… ofereça mais paz de espírito quando brota de dentro, em lugar de ser exigido ou exibido como atributo exterior a mim, voando pelos céus sobre as cabeças dos mortais. A bússola interior – que apesar de ter origem na palavra italiana para “caixinha”, não deixa nunca de me intrigar, pelo Sol que carrega no Meio – haverá de saber muito bem que tipo de carruagem estou apta a conduzir por aí, em direção, e nisso eu tenho Fé, ao Sol Maior.
“Apollo Granting Phaeton Permission to Drive the Chariot of the Sun” (1690/95), de Johann Michael Rottmayr (Áustria,1654-1730). Créditos da imagem: domínio público, disponível em https://www.artic.edu/artworks/20155/apollo-granting-phaeton-permission-to-drive-the-chariot-of-the-sun
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