Às portas do templo, sob a luz do crepúsculo, o guardião expõe seu Julgamento. É a hora da verdade. Aproveita para requisitar que eu exponha o meu também, o que facilitará e muito o seu trabalho de decidir se já sou digna ou não de adentrar o Sagrado. Mal sabia eu que já estava exposta aos seus olhos de iniciado, pois me via através da minha postura, dos meus gestos, dos meus olhares, do sopro etéreo que aureava meu corpo. Dos meus pensamentos, até… pensamentos que eu jurava que tinha sob meu estrito domínio. Coisas que aprendi em Malkuth.
No dia-a-dia, busco substituir o termo julgamento por discernimento. Isso porque temos aqui um hábito limitador de julgar os outros com base nas escolhas que fazemos e que eles não fazem, como se o simples fato de Eu fazer e o Outro não fazer pudesse estabelecer uma base de comparação que resultasse em inferioridade e superioridade. Se é a minha escolha, só pode estar correta. Se é a escolha do outro, só pode estar equivocada. Dessa forma, o diálogo que poderia engrandecer a ambos, envolvendo-os com a perene transmutação Divina, que afasta de nós toda significação rígida (afinal, Ele é aquele que está sendo, para sempre não terminado), torna-se o coliseu daquela batalha sangrenta e tão conhecida, travada com as armas profanas do ego arbitrário. Se eu estou certa, você só pode estar errado. Preto no branco.
Sempre sinto falta das escalas de cinza, bem como dos intervalos mistos entre as doze cores do círculo cromático. Acho que nasci com essa falta. Mercúrio e vênus em gêmeos, meus amores. Nada está definido por aqui. Afinal, a natureza não é dividida em estamentos claramente definidos, a gente é que virginianamente decide fazer isso, para estudar melhor com nossos olhos duais essa vastidão toda. Matérias na escola, áreas do saber, o eu e o outro… formalidades do mundo das formas, e se o Universo não é feito só de mundo físico, aquelas são verdades apenas parciais.
Sendo assim, me parece mais oportuno adotar o discernimento, que em lugar de julgar o que serve e o que não serve (uma vez que tudo serve a algo na Criação), apenas discerne entre aquilo que serve ao meu propósito e aquilo que não serve a ele. Deixo a quem queira a árdua tarefa de definir o valor de uns em detrimento do valor de outros. É um trabalho que sempre me pareceu cansativo e relativo… Por vezes faço até questão de atrapalhar, confesso: minha face Éris se apraz em incitar a discórdia através de questionamentos vários, quando a definição de bom ou mal parece operar com base em silenciamentos, dogmas arbitrários e meias verdades. Ou seja, quase sempre. Até que os leões possam contar suas histórias, o homem permanecerá sendo o herói das narrativas de caça, diz um antigo provérbio africano. Trago aqui dentro uma simpatia sempre maior pelos leões do que pelos homens, orientada ora para o vício, ora para a virtude. Mea culpa.
“Mas é preciso saber quando parar”, me diz o guardião do templo. Há uma grande Verdade – nada relativa – a ser descoberta no caminho do iniciado, que poderá me salvar dessa perene inquietação da alma, e fornecer uma barquinha na qual navegar pelo oceano das possibilidades infinitas de verdade, os tais “pontos de vista”. Suspeito que ela está ali, do outro lado das colunas Jackin e Boaz, sustentada pelas leis naturais que regem assim a terra como o céu.
E quando parar? Se depender dessa resposta, não vai ser hoje que o guardião do templo me abrirá as portas da iniciação ao caminho sagrado. Shin-gando horrores, sento-me aos pés das colunas. Pirraça.
Surge então uma velha bem velhinha, com uma cara de louca meio Baba Yaga, sorrindo com suas gengivas desdentadas. Ela carrega consigo uma trouxinha que cheira a olíbano, canela e um quase nada de almíscar (entendo que é para não se exceder no caminho do Diabo), e me conta a história do monge Lu Zhishen, um dos protagonistas de A margem da água, um romance clássico da literatura chinesa.
Da boca desdentada brota a narrativa de Lu Zhishen. Inicialmente chamado de Lu Da, ele era um jovem guerreiro que agia como fonte da justiça e também como seu executor, protegendo sempre aqueles que aos seus olhos pareciam fracos e oprimidos. Via-se como o próprio Julgamento, executor da Justiça, bem como a fonte da Lei. “Uma mistura meio perigosa de Xangô com Ogum”, minha opinião. Mas a velha não parecia nada interessada no meu ponto de vista, e contou sua história do fim do dia até o amanhecer. Sob a luz da primeira hora do dia, a Baba se despediu sorrindo e tomou seu caminho de volta.
Muitas são as aventuras desse monge, mas uma cena em especial me havia chamado a atenção. Ainda no início da jornada, fugindo dos adversários colecionados pelo seu exercício da tal justiça, Lu Zhishen refugia-se num templo. Ali é acolhido e ensinado, porém certo dia, entediado pela vida monástica, embebeda-se na cidade vizinha, e ao voltar é barrado pelo guardião do templo. Enfurecido, Lu esmaga as colunas da entrada e bate nos monges ali presentes. Entendi que, com essa passagem da história, a velha me ensinava sobre os perigos de adentrar o templo sagrado por medo das consequências das nossas escolhas profanas, ou para fugir de quem fomos no mundo exterior. Adentrando-o dessa forma, a nossa vontade pouco resistirá ao (en)canto dos vícios e à disciplina solicitada pelo desenvolvimento das virtudes.
Diante da atitude de Lu Zhishen, o mestre do templo faz aquilo que só um mestre de verdade é capaz: de posse de uma visão mais ampla dos fatos, perdoa Lu e o envia para outro monastério, onde ele poderá servir melhor com base nas características que traz consigo. Mais discernimento, menos julgamento. Em sua inconsciência de si, Lu pôde contar com a sabedoria dos mais velhos para direcioná-lo, enquanto não era capaz de assumir-se como o ser parcial que de fato era, iludido por seu orgulho na pretensa função de artífice da justiça divina.
Enquanto eu matutava sentada às portas do templo, a benevolência sábia do mestre de Lu Zhishen inicialmente me pareceu fruto da fraqueza, porque pouco punitiva. Passadas algumas horas, e diminuído pela fome e pelo frio o poder do meu julgamento pessoal, suas razões começaram a me parecer um Grande Mistério: aquele mestre devia estar vendo algo que eu não via. Uma lei maior, uma Vontade Maior talvez, para além não só do meu julgamento, mas do de qualquer outro ser humano. Um mistério profundo de onde parecia brotar uma certa lux, ainda inalcançável aos meus olhos.
“Entreaberto botão, entrefechada rosa”, disse solene o guardião do templo. E dessa forma, citando Machado de Assis, se fez seu Julgamento.
Na minha vida nunca cultivei a bondade,
平生 不 修善 果
Apreciando apenas assassinato e incêndio criminoso.
只愛 殺人 放火
De repente, minhas algemas de ouro foram abertas;
忽地 頓 開 金 枷 ,
Aqui meus cachos de jade foram arrancados.
這裡 指 斷 玉 鎖。
Ai! Aqui vem a maré do rio;
咦! 錢塘江 上 潮信 來
Agora finalmente percebo que sou o que sou!
今日 方 知 我 是 我
(Ode do monge guerreiro Lu Zhishen, composta pouco antes da sua morte.)
Créditos da imagem: “Lu Zhishen in a Drunken Rage Attacking the Guardian Figure at the Temple on Mount Godai” (1887) – Tsukioka Yoshitoshi, japanese, 1839–1892.
Domínio público, disponível em: https://www.artic.edu/artworks/155847/lu-zhishen-in-a-drunken-rage-attacking-the-guardian-figure-at-the-temple-on-mount-godai-rochishin-ransui-godaisan-kongojin-o-uchikowasu-no-zu
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