Tem-po. Sempre o considerei uma dádiva melhor usufruída solo, na companhia de mim mesmo e do tic-tac do relógio, ou do som do sopro do vento. No máximo numa conversa onde eu tenha todo o tempo que quiser para pensar e refletir: profundos diálogos que a leitura me oferece. Nesses diálogos, não preciso me ocupar da espera do Outro por uma resposta que o agrade, para que possa então me amar, ou que o desagrade, para que possa então me odiar. Pode parecer que não, mas meu ser social vem pelo caminho preocupado demais em não ser rejeitado ou abandonado, para conseguir usufruir de coração das relações que encontra na estrada. Memória das dores antigas, hoje quase ignoradas sob o peso de mil risadas de instagram.
Ocupações vaidosas de quem talvez se ache um escolhido pelo silêncio. E de fato o é. Porém, outros também o são ou serão, nesse chamado ao recolhimento e à visão nua e crua de si, performance Saturniana. Lembro-me de, quando criança, entrar no carro em família e a vista da janela me roubar rapidamente do convívio com os meus. Amo as paisagens que se sucedem, nas viagens de carro, de ônibus, de avião… e amo, amo muito, esse hiato silencioso feito presente no exercício de transitar de um ponto ao Outro. A companhia de que usufruímos assim, silenciosos, me parece mais legítima e menos invasiva… é, me esqueci de dizer que venho sendo também um tanto sensível às invasões, como um guerreiro de outras vidas que pode ter ficado um tanto neurótico a respeito do quão devastadora pode ser a invasão representada por um abraço.
Levo a vida defendendo os portões, admito. John Snow me entenderia. Contudo, dessa forma me falta tempo e disposição para visitas e salas de jantar, trocas nas conversas de Natal e com gente de carne e osso. Essa preferência pelas relações de papel… não é muito difícil de entender: se há quem prefira relacionar-se com gente mais nova; se há quem prefira a amizade com gente mais velha; deve haver, como eu, quem prefira relacionar-se com gente morta, gente do século passado, gente do Renascimento, gente da Idade Média, gente que caminhava em círculos de pedras… e esse pessoal, não tem jeito, a gente só se encontra no silêncio. No silêncio da leitura, no silêncio da reflexão entre parágrafos, com paciência e tempo para a jornada, converso com aqueles que já fizeram a passagem, que estão muito longe, gente que atraio pela natureza dos meus interesses mais profundos, aquilo que quero trocar de todo o coração. E eles se atraem por mim também, acredite: recebo frequentemente livros inesperados que vêm combater e transmutar as ideias que tenho em mente… não pense você que são relações fáceis. Fernando Pessoa e Edward Said me contaram tantas histórias sobre a humanidade… e eu discuto muito com eles, à luz de Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, Édouard Glissant, e por aí vai.
O que antes eu entendia como um amor maior pela teoria da vida do que pela sua prática, hoje entendo ser a preferência por uma vida prática que se dá sob as vestes escuras do Eremita. E me assumo como tal. Acho que enfim consigo me bancar bem, frente ao coro social que sussurrava nos anos 90: “que criança estranha, não conversa com ninguém…”. Em meio à abundância do mundo, alimento aqui dentro um buscador daquele ser solar que habita as almas. Começo a pensar que o Eremita em mim é um tanto exigente nas relações, crítico e julgador mesmo, pedindo nada menos que o coração das pessoas. E, às vezes, tudo o que elas querem é uma conversa de plástico no botequim, sem coração nenhum no meio. Bater um papo, falar mal de quem pensa diferente, reforçar uns preconceitos, rir uns dos outros com uns sarcasmos mascarados, nutrir só as entrelinhas com as intenções verdadeiras… e, o principal, encimar todo esse bolo com a cereja das frases feitas: “gente é assim mesmo, difícil mudar né?”.
O aluno caxias da escola virou o aluno caxias da vida, e aceita o preço dos poucos e bons amigos e amigas. Muitos deles, nos livros. Há que se ter coragem para levantar a bandeira da solitude num tempo em que querem nos fazer crer que quem não aparece não existe. As redes sociais que o digam.
Quando me desanima o teatro da vida profana, o Eremita me relembra com amor os olhos das pessoas na sala de jantar. No recreio. Nas festas de Natal. Nos bares. Esses olhos eu amo, e se pintasse bem seria artista desses olhos. Explico: se você demorar sua visão um pouquinho mais nos olhos das pessoas, nas pausas entre seus assuntos, verá refletida neles a mesma angústia que ambiciona por Verdade, e que também me habita. É naquele olhar entre uma piada da qual fingimos achar graça e outra; naquele olhar no vazio, perdido no tempo; é naquele olhar que me encontro com meus interlocutores, e nesse instante os amo de verdade. É nesses olhares que vejo seus corações pulsando comigo, buscadores da essência das coisas que são… e me sinto, enfim, parte da cena. Quando meus olhos encontram esses olhares, cessa toda a ilusão da separatividade, toda dualidade. Nessas horas, somos como Eremitas que vagam pelo caminho de Santiago, e que se cruzam na jornada.
Brilha ali a luz divina na escuridão do mundo das formas. A leveza insustentável desse encontro me invade… e lá vem alguém de novo com mais um assunto (da) besta, só para cortar esse delicioso silêncio, quando as almas se dão as mãos. Paciência.
Eu sei que você sabe, quase sem querer,
que eu vejo o mesmo que você.
Renato Russo
Créditos da imagem: “No Mouquin’s ” (1905) – William Glackens, 1870–1938.
Domínio público, disponível em: https://www.artic.edu/artworks/15401/at-mouquin-s
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