Ao Diabo com os julgamentos: me reconheço intolerante. Vejo-me no espelho e a animalização ronda a missão de discípulo a mim confiada. Oro, contudo, na certeza de que caminho o nobre destino da iluminação, feita inexorável pela disciplina amorosa e pela fé inabalável na Justiça do Pai.
Não, por favor, não insista. Não farei das minhas falhas morais um qualquer constructo externo monstruoso, ao qual possa culpar pela sorte que me alcança. Vejo-me enfim caveira entre caveiras, mais um leão solitário que vaga nas montanhas abandonado à sorte da própria selvageria. É essa súbita consciência a martelar-me a cabeça, essa que me alcança aqui no para-além da fascinante siringe de Pan (como diabos cheguei aqui?), que me impulsiona os joelhos ao chão e a contrição dos olhos cerrados, em desgostoso reconhecimento. Sim, Senhor: pequei.
Pequei porque ardo, ardo em desejo por tudo aquilo que me chega aos olhos, e feita inerte pelo temor de arrancá-los, perpetuo a ilusão em cada espaço onde me convocam a personalidade. Chego, sento-me, agarro a flauta. Não sendo capaz de arcar com a responsabilidade de alinhar meus pensares, sentires e agires ao mundo que me cerca, sento-me ali e dou voz de plenos pulmões ao que quero. A dominação, que no íntimo arde ao estilo “cortem-lhes a cabeça!”, soa a quem a ouve no mundo comum como lírica poesia de sopro. Enfim, ao Diabo com as meias palavras: o brado torto é que seja feita a minha débil vontade.
Contudo, reconheço-me ilusão insustentável no alvorecer das Altas Artes. Ainda agora falava disso com meu reflexo no espelho. Há que se reconhecer o sacro-ofício do Cristo, ao acenar à humanidade não-judia a grande novidade de que por um olho não necessariamente se toma outro, dentes idem. Reconheço nele ainda (como talvez São Jerônimo também reconhecesse) um tal chamado à igualdade e à fraternidade que desbanca facilmente nosso Diabo interior, esse sim recheado de superioridades e inferioridades… velhas e cabisbaixas intolerâncias, de olhos postos no próprio umbigo. E depois desse desterro, morando no para-além disso tudo, está Cristo e sua missão cumprida com rigor e a despeito dos desejos perecíveis da carne fraca; essa, tão acostumada entre nós a saciar-se mais com prazeres do que com ideais. Frigoríficos do país inteiro sabem bem do que estou falando, eu bem poderia ter deixado mais essa só nas entrelinhas.
Ao Diabo com seu bastão em chamas, que nos aponta os mundos inferiores, aquela dualidade que, ao iludir, aprisiona. Esses cornos brochados tampouco me inspiram o fascínio de antes. Ainda que o deleite esteja disponível, servido bem ao lado da inércia e da desmedida, algo na sombra da noite me fez questionar as recompensas disponíveis no mundo profano. E se os incomodados que se mudem, é hora de botar o pé na estrada do adepto.
Sempre chega a hora em que, se não arregaçamos as mangas e investigamos as profundezas do Eu inferior, jamais poderemos alcançar os mundo superiores, por absoluto desnível consciencial para tal. Trabalho agora, pois, como cabra montanhesa, para que as criações que partem do meu livre-arbítrio alinhem-se cada vez mais com a Lei. Gesto, assim, a oportunidade de abrir novas portas na busca por aquela Divina Coerência: o bom sentir, o bom agir, o bom pensar. Inclusive, taí a promessa de um alinhamento bacana entre os chacras cardíaco, laríngeo e frontal. E quem sabe, sabe, como um bom fluxo de energia vital vale ouro aqui nessa Malkuth.
Lá na gruta, bem no fundo,
mora um monstro em gentio mundo.
Asas de morcego, pernas de passarinho…
cuidado com o Diabo, não vá deixá-lo sozinho!
Arte: “St. Jerome Praying” (1665), de Claude Mellan (França, 1598-1688). Créditos da imagem: domínio público, disponível em https://www.artic.edu/artworks/32/st-jerome-praying
Créditos da imagem: Pixabay
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