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A arte de caminhar

Na disciplina o indivíduo se torna discípulo de si mesmo, é seu próprio professor e só a ele deve prestar contas. A questão primordial aqui é a respeito de que professor estamos falando: é pouca coisa melhor ser discípulo de si mesmo sendo tão adormecido quanto qualquer um. E é disso que trata o caminho, despertar esse orientador que transcende a consciência ordinária e está pronto para suas correções.

Platão dividiu a alma em três parte ou meios de expressão ou função pela qual ela age no mundo. Temos então a razão, a paixão e o desejo. Ele acredita que o equilíbrio das três expressões é o caminho para a conduta correta e a fórmula de ação coerente no mundo.


Santo Agostinho procurou entender a alma hierarquizando as diversas formas de amor pelo ordo amoris: amor a deus, ao próximo, a si mesmo e aos bens materiais.

Freud dividiu a psique em id, ego e superego, onde o id são os desejos natos e as pulsões naturais, o ego é fruto da interação com o mundo e o reconhecimento das restrições e o superego a compreensão distanciada não do que o ego é, mas do que ele deve ser.


Shakespeare observava os conflitos da alma, a luta entre o bem e o mal em suas mais diversas facetas. Um professor de literatura costumava falar na escola que se mundo acabasse e a humanidade não se conhecesse mais, bastava salvar Shakespeare porque todas as nossas idiossincrasias, tabus, crimes e redenções estavam catalogadas ali.

Nossas questões humanas e imediatas, quando reduzidas, retornam ao equilíbrio da alma. A própria função no mundo e os porquês da existência são análogos aos medos que cercam as escolhas em vida, mas extrapolam o significado da nossa existência para além da experiência física, ficando como transcender e suportar a profundidade do desafio na carne. Temos então o equilíbrio da alma como fruto do enfrentamento dos conflitos da carne, o eterno como consequência do transitório e a vida como presente da morte.


A questão da ordem correta da alma não se atém ao domínio da filosofia e do drama, nem dos compêndios imensos de exercícios e treinamento mágicos, nem das fórmulas e sofismas transcendentais, nem de restrições ou dos prazeres sem limites.

Assim como caminhar exigiu treino diário e comedido alimentados pela vontade de explorar (que aprendemos a caminhar com, raras exceções, pelo domínio de habilidades muito básicas – como ganhar impulso para se virar na cama, se manter sentado e, depois alçar pequenas aventuras de passinhos), a arte de caminhar é o exemplo da perfeita conduta no cotidiano. Organizamos a vida e suas infinitas facetas, da mesma forma que pretendemos organizar a alma, com prática e desapego pelos corpos passados.


Ainda creio que só se caminha a senda do espírito se tornando lenha para a fogueira que consome a si mesmo numa labareda sem fim. Somos o combustível pelo qual nos transformamos e também a matéria alquímica da transmutação.


Enquanto o ser humano comum pretende construir sua vida a partir dos efeitos do mundo sensorial, sofrendo as causas do que o cerca, ele se limita à reatividade do que o compõe e esta se torna a lente pela qual ele lê o mundo, o caminhante da senda mística está atento no reconhecimento do plano das causas, o nível espiritual profundo e a consciência. Ao se abrir e se comprometer com a comunicação do mundo simbólico, de forma disciplinada, o aprendiz da Arte trabalha sua personalidade, transformando adversidades em circunstâncias de crescimento favorável em todas as facetas de sua vida.


A arte de caminhar se aproxima mais à conduta da desconstrução. Para ver estradas a frente, há de se quebrar os muros que impedem a visão. O desgaste de desconstruir pode ser equiparado à dor, mas nunca ao sofrimento. Sofre aquele que se apega aos tijolos unidos com saliva, suor e sangue de seu próprio medo. O esforço dói porque aprendemos que a meta a ser alcançada é a felicidade, a estabilidade, validação alheia e o sucesso material além de tudo o que é necessário. E assim à medida que nos apegamos às máscaras e roupas que vestimos para esta sobrevivência, esquecemos da simplicidade de viver. A felicidade não está em uma estabilidade robusta, mas em uma adaptabilidade consciente.


Somos por excelência buscadores e não “encontradores”. A ignição que nos impulsionou a procurar outras perguntas quando as respostas de antes não satisfaziam mais a nossa fome, é a mesma que te rouba o chão diversas vezes. Isso porque não é possível chegar ao “fim”, estabelecer convicções duras e se engessar quando o Caminho é movimento, ganho, mas também superação e morte. Compreender, e isso vai além do entendimento da razão, que a arte de caminhar está em consonância aos estados de desconstrução de todas as suas incertezas e inseguranças e apresenta o deleite das encruzilhadas, porque o caminho agora se tornou múltiplo.


O que observo é que há um ciclo de vícios nas promessas sobre a iluminação, de que sucesso seja sempre algo grandioso e estapafúrdio, um acontecimento, uma visão angelical, um deus que vem passear com você logo após seu café da manhã. Hoje acredito que a iluminação não seja um piano caindo sobre sua cabeça enquanto concentradamente você vai para o trabalho. Ela acontece aos poucos, todo dia, no aprendizado e manejo das dores, das explosões, na habilidade em vibrar o que é preciso para fazer o necessário. A disciplina da constância, para a benção ou maldição. Talvez buscar a iluminação seja a miragem e buscar o esclarecimento sejam os passos que fazem a jornada.


Escrever, para mim, agora é sair da estagnação que me vendia falsa segurança em troca do meu silêncio. Este é meu salto de fé. Meus pés saíram do platô de conforto de tantos anos, e por momentos suspensa sobre o abismo abaixo de mim, buscam outro patamar. Sem as pedras brutas a me pesar, estou aproveitando a viagem.


Arte por Collin Elder


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