Nestes dias senti vontade de mandar uma senhora ir tomar no cu. Não o fiz, pois fui inibido por uma série de mecanismos – alguns válidos, outros nem tanto. Por exemplo, responder de maneira violenta escalaria a confusão e eu não queria confusão. Achei um ponto importante. Por outro lado, me senti meio envergonhado de pensar em discutir com uma senhora – o que, na boa, não faz o menor sentido (eu acho). Essa confusão aí de sentimentos me fez pensar sobre comportamentos desejados e indesejados e em como a gente opera por meio de uma série de mecanismos invisíveis que são cruelmente reforçados para nossa infelicidade.
Para disparar a discussão gostaria de dizer que existe uma mania – não tentarei decifrar sua origem – de classificar atitudes e sentimentos em dois campos: virtudes e vícios. Obviamente, estamos aqui tratando de um discurso maniqueísta. É uma sistematização que insiste em definir absolutos e levantar bandeira de verdades, ignorando completamente o amplo espectro de complexidade dos humanos e de suas relações.
“A paciência é uma virtude” – já dizia o ditado (e talvez o mestre Zen). A provocação é: isso é uma coisa absoluta? A paciência sempre será bem vinda em qualquer situação? Não haveria melhor proveito em dar uma bela explodida de vez em quando? E a tão cultuada natureza pacífica? Será mesmo que é preciso responder a tudo com ofertas de paz ou um bom conflito vez ou outra ajuda a delimitar limites individuais e sociais?
Uns mais paranoicos diriam que a exaltação das virtudes mais cultuadas no mundo é um processo de “amansar” a população e torna-la indiferente às mais diversas e cruéis práticas de exploração. Não acho que exista um plano, mas, no fim, também não consigo afirmar que, de fato, algumas estratégias não se aproveitem dessa ideia. Por exemplo, vejamos a coisa toda de “mindfullness” que virou onda nas empresas. A ideia (corrijam-me se eu estiver errado) é treinar os funcionários para lidar melhor com todas as merdas que jogam em cima deles. Ou seja, se teu trabalho tá te tirando o couro e você não aguenta, culpa tua! Vai meditar! A inversão é clara.
Isso também é bastante utilizado para reforçar relações abusivas em geral. Quem nunca soube de alguém que recebeu conselhos de ser mais paciente com um parceiro ou parceira quando claramente a situação não pedia por paciência e sim por atitude enérgica? O culto às virtudes que é exaltado sem qualquer mediação ou bom senso simplesmente se torna veneno. É parte de um mecanismo que sempre joga a responsabilidade do mundo pra cima de nós mesmos e concorda com a visão absurda de que todos temos controle absoluto sobre tudo na vida. Temos controle de nós mesmos e isso é muito e ter esse controle envolve saber que o que está além não pode ser necessariamente mudado, mas que nós podemos nos afastar do que quisermos.
Os vícios, por outro lado, sempre são demonizados. Entretanto, não é necessária uma imaginação muito fértil para pensar em uma ou duas situações nas quais um pouco de preguiça cairia bem ou até mesmo certa malandragem. Quando alguém vier te passar para trás, por exemplo, caso você não seja um pouco malandro também e não conheça superficialmente os caminhos aí dos subterfúgios, provavelmente levará uma volta épica.
Outro ponto é que os vícios são sempre relativos. Falava-se muito nas escolas que os índios eram preguiçosos (um absurdo completo). Na verdade, isso é uma distorção do fato deles não estarem acostumados a uma sociedade de acúmulo. Se um índio no Brasil em 1500 tinha a tarefa de caçar uma anta por semana, ele não caçava duas. Simples assim. Nossa sociedade, por outro lado, vem se desenvolvendo sobre a ideia de que o acúmulo de bens é sinônimo de riqueza. Portanto, um Português naqueles tempos provavelmente caçaria 50 antas para vender, jogar no lixo ou só para dizer que conseguiu.
Essa programação insana não se abalou nem um pouco com o passar do tempo. Pelo contrário, se fortaleceu. Na sociedade de consumo, quanto mais poder de compra você tem, mais “feliz” você é. Não basta viver a vida com leveza, tendo o necessário e aproveitando os momentos. Ficar parado é desperdício, quando deveria ser um exercício de prazer (se você quiser, é claro; se quiser se matar de trabalhar, vai fundo – só não vem dizer que isso é mérito, pois o seu mérito não encontra necessariamente casa no meu mundo).
Mais um exemplo: “fulano é muito egoísta”. Essa é minha preferida. Afinal, o que é ser egoísta? Será que pensar em si e no seu bem estar em primeiro lugar em determinadas situações não é justamente o que todos deveriam fazer para contribuir com a comunidade? Será que quem reclama do egoísmo alheio realmente está em posição ou tem legitimidade para exigir de um terceiro qualquer consideração? Por qual razão eu deveria ser solícito com qualquer pessoa indiscriminadamente? Não posso querer que aquele vizinho chato vá para a casa do caralho e não o ajudar em nada?
Relativizar tudo é perigoso, eu sei. Se começarmos a entrar num jogo de relativização indiscriminada não conseguiremos mais operar na sociedade e nem em nós mesmos. Será uma confusão completa. Entretanto, relativizar é preciso. Nem tudo é preto no branco. A situação A não é igual a B. Como equilibrar isso? No âmbito individual, com maturidade, talvez. O tempo passa, as coisas acontecem e você vai percebendo melhor o que é papo furado, o que se sustenta e o que funciona ou não para você. Já no comunitário é tudo mais complicado. Entretanto, com pessoas mais conhecedoras de si, poderemos montar um grupo de convívio muito mais harmônico, acredito.
Em resumo, quando te falarem que é preciso ter mais gentileza após te encherem o saco e você dar uma resposta atravessada, mande logo ir se fuder. As virtudes vêm sendo usadas para justificar abusos e os vícios para inibir certas verdades. Comece a perceber as diferenças e as nuances e veja se eu não tenho um pouquinho de razão. Ah, mas se achar que eu tô errado, já sabe: escreve nos comentários, no post do Facebook ou no grupo social. Aqui no “Espelho” a gente quer o bom debate, livre de amarras. Manda na lata!
Imagem: pixabay
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