Eu e meu colega (e amigo) Alfredo Cruz coordenamos um pequeno grupo de estudos sobre Vodou Haitiano que começou com a colaboração e apoio do Instituto Pretos Novos e agora conta também com o apoio do “Espelho de Circe”. Dentro de nossa missão está a de divulgar informações claras e de qualidade acerca do Vodou Haitiano. Neste espírito, tivemos o grande prazer de entrevistar o Professor Doutor e oungan asogwe (sacerdote de Vodou) Patrick Bellegarde-Smith.
De acordo com sua nota biográfica oficial, o Dr. Bellegarde-Smith completou seu doutorado em relações internacionais, política comparativa e estudos Latino-Americanos em 1977. Ele foi professor de desenvolvimento internacional, economia política e cultura na Universidade Bradley. Na Universidade de Wisconsin-Milwaukee lecionou estudos Afro-Americanos com ênfase em culturas Caribenhas, política e história, religiões Afro-Caribenhas e feminismos negros. Além disso, é autor de cinco livros e de diversos artigos.
O Dr. Bellegarde-Smith também recebeu a medalha Jean Price-Mars em 2013 da Universidade de Estado do Haiti e o prêmio por realização de vida da Associação de Estudos Haitiana em 2010. Ambos os prêmios foram resultado de seu trabalho em questões de identidade étnica, nacional e racial.
Finalmente, o Dr. Bellegarde-Smith foi presidente do Congresso de Santa Barbara (KOSANBA) e da Associação de Estudos Haitianos. Adicionalmente, é editor e membro do corpo editorial de diversas revistas.
É clara a razão pela qual o Dr. Bellegarde-Smith é uma figura interessante e importante em questões de Vodou Haitiano. Além de seus estudos, ele é um sacerdote. Ou seja, temos aqui a chance de coletar as impressões e opiniões de uma pessoa que não só possui treinamento acadêmico, mas que também vive o Vodou.
A tradução da entrevista foi obra minha e me responsabilizo por qualquer escolha equivocada dos termos em Português. Para fins de clareza, a entrevista em Inglês está disponibilizada no fim deste artigo. Desta maneira, quem quiser acompanhar as palavras originais do Dr. Bellegarde-Smith, pode fazê-lo.
A entrevista
E & A (Eduardo & Alfredo): O senhor poderia, por favor, nos falar um pouco mais de você e do seu trabalho?
Dr. Bellegarde-Smith: Eu cresci no Haiti até sair do país aos 16 anos de idade, uma vez que a situação política estava se deteriorando com a ditadura do Presidente François Duvalier. Eu passei dois anos nas Ilhas Virgens dos Estados Unidos onde eu frequentei a Universidade das Ilhas Virgens até que eu fosse transferido para a Universidade de Syracuse na Faculdade Utica. Meu mestrado e meu doutorado em estudos internacionais são pela Universidade Americana, em Washington, D.C. Depois eu lecionei desenvolvimento internacional com foco em América Latina e Caribe e depois estudos Afro-Americanos.
E & A: O que é o Vodou para você e como você se envolveu com ele pela primeira vez?
Dr. Bellegarde-Smith: Eu sempre soube que seria um sacerdote, mas eu achava o tempo todo que seria na Igreja Católica Romana já que eu frequentava a escola paroquial em Porto-Príncipe. As coisas foram esclarecidas para mim depois de diversas visitas dos meus espíritos ancestrais que me lembraram de promessas feitas antes de meu nascimento. Ninguém é “convertido”, a pessoa é chamada e imposta pelos Lwas. Antes de minha iniciação como ougan asogwe, um sacerdote de Vodou, o Lwa Gede Nibo explicou para mim e para outros na cerimônia que o mundo espiritual havia decidido que eles escolheriam deliberadamente mulheres e homens educados, uma vez que o planeta estava em uma situação difícil. Eu estava, portanto, cumprindo um compromisso que havia assumido anteriormente e era a hora.
E & A: Percebemos que você é muito interessado em diversas tradições da diáspora. Você vê similaridades entre o Vodou e outras tradições com o Candomblé?
Dr. Bellegard-Smith: Sim. Apesar de cada grupo nacional/étnico/tribal do continente Africano ter criado seu espaço religioso e espiritual, o que surpreende muitos estudiosos é a fundação destes que apresenta muitas similaridades dentre as diversas tradições. Onde o Haiti difere é que ele amalgamou “21 nações” juntando o Daomé antigo e as tradições dos Iorubás e do Congo. Estas se fundiram no Vodou Haitiano, com alguns elementos do Cristianismo e do Islã. A língua litúrgica permanece a língua crioula Haitiana e não o Iorubá, o Fon ou outras línguas Africanas, embora palavras dessas línguas estejam profundamente engastadas, o que chamamos no ritual de “langaj”. O Vodou se torna uma religião “crioula” assim como a nossa língua, mas a tradição vai bem fundo e as fundações teológicas não são Cristãs ou ocidentais. A situação, como existe, parece uma “diglossia”, na qual o Catolicismo é usado em certo ritual e para certa função – um pouco como o Francês e a língua Crioula Haitiana – como o Budismo e o Xintoísmo no Japão.
E & A: O terremoto de 2010 foi certamente uma tragédia (Aqui nos referimos ao terremoto que assolou o Haiti em 2010). Você destaca em um artigo de 2011 no “Journal of Black Studies” que foi apenas mais um evento a testar a resiliência Haitiana. Como você entende que este evento tenha auxiliado a transformar o Vodou?
Dr. Bellegarde-Smith: O argumento que eu apresento neste artigo é que a tragédia foi feita pelo homem, não pelo meio-ambiente, pois as estruturas e instituições estatais eram muito frágeis para impor respeito às leis sobre construções e assemelhados. Os Evangélicos, claro, enxergaram punição do céu. A natureza faz o que a natureza faz. Eu tento não usar a palavra resiliência, pois ela é carregada e, de alguma maneira, esperada de “povos primitivos”. O Vodou nunca desapareceu mesmo perseguido pela igreja e pelo estado ao longo dos séculos e, atualmente, por forças estrangeiras, Cristandade tipicamente Americana, com suas mensagens sociais retrógadas: patriarcado, misoginia, homofobia, racismo. Estes cultos foram deliberadamente introduzidos com o auxílio do governo dos Estados Unidos por todo o Caribe e pela América Central. Eu encontrei evidência disso em documentos originários do governo Americano e discuto sobre isso em meu livro “Haiti: The Breached Citadel”.
O Vodou não é mais “vergonhoso” como era antigamente, pois membros educados da elite, não-Haitianos e outros foram chamados pelos Lwas e foram iniciados. De maneira similar, a língua Crioula Haitiana, outro pilar da cultura Haitiana adquiriu uma presença poderosa e foi feita uma das duas línguas oficiais do Haiti. Nem a língua e nem a religião, agora compreendidas como criação da genialidade Haitiana, são denegridas e caluniadas como já forma. Ambas são ensinadas em universidades fora do Haiti.
Os Haitianos vivendo no estrangeiro encontram conforto no Vodou e na língua Crioula Haitiana. É uma parte de sua identidade nacional. O Vodou floresce em Nova Iorque, Boston, Miami, Washington D. C., mas também em Montreal e em Paris.
E & A: Estamos atualmente na era da secularização – mas o Vodou parece desafiar isso. Você poderia comentar um pouco sobre como o Vodou difere das religiões ocidentais?
Dr. Bellegarde-Smith: Por todo o mundo, há insatisfação com a globalização ordenada pelos poderes ocidentais e a resposta se torna uma apreciação maior das tradições e culturas étnicas/nacionais. De certa maneira, alguém poderia chamar isso de patriotismo ou nacionalismo. Entretanto, esta abordagem e essa análise não correspondem a nenhuma necessidade espiritual, mas é uma resposta à secularização e à política. A espiritualidade é de outra natureza. Há correspondência entre o Vodou e o Hinduísmo, Xintoísmo e espiritualidades dos nativos Americanos, amplamente definidas como “religiões da natureza”. Eu não gosto muito da nomenclatura “religiões da natureza”, mas ainda não encontrei uma descrição melhor.
E & A: Você é uma das pessoas por detrás do Congresso de Santa Barbara – uma organização que acreditamos que muitos não conheçam no Brasil. Você poderia nos falar mais sobre ela e sobre sua missão?
Dr. Bellegarde-Smith: O Congresso de Santa Barbara (KOSANBA) começou em 1997, no campus da Universidade da Califórnia, Santa Barbara. Treze estudiosos Haitianos, alguns deles praticantes de Vodou, se encontraram para um colóquio. O nome, e o acrônimo na língua Crioula Haitiana, KOSANBA, foram parte de um brainstorm do famoso ougan Haitiano, Ati Max-Gesner Beauvoir e apresentam uma multiplicidade de significados. Um desses significados é a conexão com Santa Barbara, uma presença significativa na La Regla de Ocha Cubana. Isto permitiu que pensássemos em temos de diáspora Africana, globalmente. Não é relevante que Santa Barbara não tenha nada a ver com o Vodou Haitiano. Os santos que foram sincretizados com os Lwa apresentam pouca similaridade entre eles, exceto de maneiras superficiais. Eu falava para meus estudantes que os santos são pessoas brancas mortas – a maior parte dos muitos santos são brancos, homens e sacerdotes – enquanto os Lwa, em sua maioria, são espíritos, embora alguns ancestrais merecedores tenham sido incorporados no “panteão”.
E & A: Qual você acha que pode ser a contribuição de pesquisadores e praticantes de Vodou não-Haitianos no contexto das humanidades para que se possa alcançar uma compreensão melhor do Vodou?
Dr. Bellegarde-Smith: Os argumentos que eu fiz revelando as relações que unem todas as “religiões da natureza” se sustentam aqui. O Vodou Haitiano é universal, assim como a literatura Haitiana, em sua melhor forma, é universal. Não-Haitianos, pessoas que não sejam praticantes de Vodou e todos os interessados em assuntos humanos tem um papel a cumprir na expansão do conhecimento. A participação de estrangeiros no estudo do Vodou significa para mim que o desrespeito às coisas não-Cristãs e não-brancas está lentamente se acabando. O Vodou não é “demoníaco”, já que Satanás não existe no nosso contexto. Neste sentido, nossos Lwas são ambidestros – trocadilho intencional – já que eles incorporam o bem e o mal no mesmo “corpo”. Deus é a personificação do bem e do mal. É sobre a unidade encontrada no cósmico.
Links, agradecimentos e comentários
É mais do que justo que agradeçamos o Dr. Bellegarde-Smith pela sua generosidade e disposição em responder de maneira tão cuidadosa as nossas perguntas. Recomendados fortemente que os interessados em Vodou procurem pelos artigos e livros do professor. Especialmente pelo seu livro em co-autoria com a Dra. Claudine Michel lançado em Português pela editora Pallas: “Vodou Haitiano: Espírito, Mito e Realidade”.
Alguns artigos do Professor Bellegarde-Smith:
Seus livros na Amazon:
Agradecemos também ao Instituto Pretos Novos por todo o apoio. Por favor, visitem o sítio da internet do Instituto e, se puderem, ajudem-no a manter seu importante trabalho por meio de uma doação.
Interessados em participar do grupo de estudos de Vodou Haitiano podem escrever para meu perfil no Facebook (link abaixo). Nosso grupo se reúne quinzenalmente, aos sábados, pela internet. Discutimos o Vodou sob o viés das humanidades. É importante destacar que não somos um curso de Vodou, não fornecemos iniciação e nem orientação espiritual. A participação é gratuita, mas encorajamos os participantes a fazerem doações regulares ao Instituto Pretos Novos.
Entrevista em Inglês:
E & A : Could you please tell us a little bit about yourself and your work?
Dr. Bellegarde-Smith: I was raised in Haiti until I left the country at 16 years old, as the political situation was deteriorating under the dictatorship of President Francois Duvalier. I spent two years in the U.S. Virgin Islands where I attended the University of the Virgin Islands, until I transferred to Syracuse University at Utica College. My masters and PhD in international studies is from The American University, in Washington, D.C. I then taught international development with a focus on Latin America and the Caribbean, then African-American Studies.
E & A: What is Vodou for you and how did you first get involved with it?
Dr. Bellegarde-Smith: I always knew that I was going to be a priest, but assumed all along that it would be in the Roman Catholic church as I attended parochial school in Port-au-Prince. Things were clarified for me after numerous visits of ancestral spirits who reminded me of promises made before my birth. One does not “convert,” one is called and mandated by the Lwa. Before my initiation as an oungan asogwe, a priest in Haitian Vodou, Lwa Gede Nibo explained to me and to others at a ceremony that spirit world had decided that they would deliberately choose educated men and women, since the planet was in dire straits. I was thus fulfilling a commitment I had taken earlier, and it was time.
E & A: I have noticed that you are really interested in many diasporic traditions. Do you see similarities between Vodou and other traditions such as Candomblé?
Dr. Bellegarde-Smith: Yes. Though each national/ethnic/tribal group on the African continent has created its religious and spiritual space, what astounds many scholars is the foundation which shows great similarity within these diverse traditions. Where Haiti deviates, is that it has coalesced “21 nations,” bringing together old Dahomey, Yoruba, and the Congo traditions. These have fused into Haitian Vodou, with some elements of Christianity and Islam. The liturgical language remains Haitian Kreyol, and not Yoruba or Fon or other African languages, though words from these languages remain deeply embedded, what we call in the ritual, “langaj.” Vodou becomes a “creole” religion as does our language, but the tradition goes deep, and the theological foundations are not Western and not Christian. The situation, as it exists, feels like a “diglossia,” where Catholicism is used in certain ritual and for certain function, — la bit like French and Kreyol — like Buddhism and Shinto in Japan.
E & A: The 2010 earthquake sure was a tragedy. You point out in an article of 2011 in the Journal of Black Studies that it was just another event to test the Haitian resilience. How do you think that such an event helped to transform Haitian Vodou?
Dr. Bellegarde-Smith: The argument I made in that article was that the tragedy was man-made, not environmental, as state structures and institutions were too weak to impose respect for the laws regarding construction and the like. Evangelicals, of course, saw punishment from Heaven. Nature does as nature does. I try not to use the word resilience which is charged, and somehow expected from “primitive peoples.” Vodou never disappeared through persecuted by church and state over the course of centuries, and presently, by foreign forces, American-brand of Christianity, with its retrograde social messages: patriarchal, misogynistic, homophobe, racist. These cults were deliberately introduced with the assistance of the U.S. government throughout the Caribbean and Central America. I found evidence of this in the documents emanating from the American government, and spoke of it in my book, “Haiti: The Breached Citadel.”
Vodou is no longer as “shameful” as it once was, as educated members of the elite, non-Haitians and others have been called by the Lwa, and been initiated. Similarly, the Kreyol language as another pillar of Haitian culture, has acquired a powerful presence, and made one of two official languages in Haiti. Neither the language nor the religion, now seen as creations of the Haitian genius, are as decried, as denigrated as they once were. Both are taught at universities outside Haiti.
Haitians living abroad find solace in Vodou and in the Kreyol language. It is a part of their national identity. Vodou flourishes in New York, Boston, Miami, Washington, D.C., but also in Montreal and in Paris.
E&A: Nowadays we are in an age of secularization – but Vodou seems to defy that. Could you comment a little bit on how Vodou differs from western religions?
Dr. Bellegarde-Smith: Throughout the world, there is dissatisfaction with globalization ordered by Western powers, and the response becomes a greater appreciation for national/ethnic cultures and traditions. At one level, one could label this patriotism or nationalism. However, this approach and this analysis does not correspond to any spiritual need, but is a response to secularization and to politics. Spirituality is of a different order. There is correspondence between Vodou and Hinduism, Shinto, Native American spiritual systems, broadly defined a “nature religions.” I do not like much the nomenclature “nature religions,” but I haven’t found a better descriptor yet.
E&A: You are one of the persons behind the Congress of Santa Barbara – an organization I believe many still are unaware of in Brazil. Could you tell us about the Congress and about its mission?
Dr. Bellegarde-Smith: The Congress of Santa Barbara (KOSANBA) came into existence in 1997, on the campus of the University of California, Santa Barbara. Thirteen Haitian scholars, some of them Vodouisants, met for a colloquium. The name, and the Kreyol acronym, KOSANBA was part of the brainstorm of famed Haitian oungan, Ati Max-Gesner Beauvoir, and it has a multiplicity of meanings. One of these meaning is the connection with Saint Barbara, a major presence in Cuban La Regla de Ocha. This allowed us to think in terms of the African diaspora, globally. It is worth nothing that Saint Barbara has nothing to do with Haitian Vodou. The saints that were syncretized with the Lwa, bear little actual resemblance with each other, except in superficial ways. I would tell my students that saints are dead white people — most of the 10,00- saints are white and male, and clerics — while the Lwa, for the most part, are spirit, although some deserving ancestors have been incorporated into the “pantheon.”
E & A: What do you think could be the contribution of non-Haitians researchers or non-Vodou practitioners in the context of humanities to help achieve a better understanding of Vodou?
Dr. Bellegarde-Smith: The arguments I made showing the ultimate connections that unite all “nature religions,” hold here. Haitian Vodou is universal, just like Haitian literature, at its best, is universal. Non-Haitians and non-Vodouisants, all those interested in human affairs, have a role to play in the extension of knowledge. The participation of foreigners in the study of Vodou signifies to me that the disrespect of all things non-Christian and all things non-white, is slowly coming to an end. Vodou is not “demonic,” since Satan does not exist in our context. In this sense, our Lwa are ambidextrous — pun intended — since they embody good and bad in the same “body.” God, itself, is the personification of good and evil. It is about the unicity found in the cosmic.
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