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Um viva às mulheres!

Foto do escritor: Dr. FacilierDr. Facilier

Saudações, meu povo! Estou até me sentindo culpado, mas o que eu temia aconteceu: aquela minha cliente das crônicas anteriores não foi muito cuidadosa ao executar o feitiço do limão, o marido descobriu e foi um “pega pra capar”! A moça ficou toda roxa de tanto que apanhou…


Não importa o motivo da briga: homem não bate em mulher! Isso o Dr. Facilier não aceita e já tomou suas, hã, digamos, “providências” junto aos “amigos do outro lado”. Ainda por cima, ensinou para a cliente um trabalhinho para ser usado em marmanjo dessa laia (e que eu vou ensinar para vocês na próxima crônica…).


Hoje eu não trago nenhuma técnica nova, pois quero que pratiquem direitinho o que ensinei da última vez e se tornem peritos em adivinhar perguntas de “sim” ou “não”. Por sinal, já perceberam que toda e qualquer pergunta, por mais complexa que seja, pode ser transformada numa pergunta de “sim” ou “não”? É só ir fatiando a questão complicada em perguntas menores e numa ordem lógica! Fatiam-se as questões assim como se fatia o limão no último feitiço que o titio aqui ensinou…


Pratiquem e tentem predizer eventos o mais possível. Depois de esgotados seus próprios assuntos, os da família e os dos amigos, uma ideia é adivinhar o futuro de notícias de jornal. A máxima do Dr. Facilier é “praticando todo dia, você logo será um perito em cartomancia!”. Memorizem e apliquem. É batata!


Aproveitando a covardia sofrida pela minha cliente, farei um desabafo sobre o machismo imperante há séculos no mundo da cartomancia. Espero que compreendam… Minha ira precisa ser extravasada e conto com vocês para desopilar meu fígado.


A leitura da sorte pelas cartas sempre foi domínio das mulheres. Não que os homens não tenham podido entrar nele e aprender essa “arte”, mas as senhoras das predições sempre foram mulheres e isso é um dado histórico verificado desde que os primórdios da civilização e em praticamente todas as culturas. Mas as tais ciências ocultas (astrologia, hermetismo, alquimia, cabala etc), por outro lado, sempre foram domínio dos machos letrados. Inicialmente, esse conhecimento era propriedade exclusiva dos padres da igreja, os únicos alfabetizados por séculos, tendo, posteriormente, sido apropriado pelos homens da ciência a partir do Renascimento e, depois, do Iluminismo.


Gente azeda, de nariz empinado, arrotando discursos rançosos, mas incapazes de lavar suas próprias cuecas! E sempre olhando de soslaio, com muito despeito e dor de cotovelo, para as mulheres, que, da cozinha, liam-lhes a sorte e o destino na borra do café, nas folhas de chá e também nas cartas.


A inveja os foi corroendo de tal maneira que resolveram o problema à moda de “macho”: apropriaram-se de um sistema cartomântico, justamente aquele cuja manufatura, historicamente, ficara reservada aos artesãos homens: o tarô. E logo passaram a arrulhar, de peito estufado, que tarô era diferente das cartinhas de jogar igualmente usadas para predição, que era um código secreto complexíssimo que só mentes muito masculinas conseguiam desvendar. Afinal, só macho muito macho é que poderia decifrar os mistérios de Thoth, escondidos nessas lâminas egípcias dos olhares lânguidos e doidivanas das senhoras que, mal bastava verem um baralho, já queriam logo ler as sortes! Tudo balela e invencionice, mas isso fica para um outro dia…


Exagero do Dr. Facilier? De jeito nenhum!


Vamos às provas dessa mentalidade enojante: o “grande” Eliphas Levi, do alto do seu tabuleiro de vendedor de frutas (não sabiam? Pois é…), não poupou toda a sorte de palavras rudes e preconceituosas às cartomantes de seu tempo.

A célebre Mademoiselle Lenormand, cartomante da imperatriz Josefina e que ficou muito rica em virtude do seu ofício (ai, que inveja!), foi chamada de “moça gorda e feia”, “louca”, uma daquelas mulheres de “naturezas impressionáveis e sensitivas”, não havendo nada mais “fastidioso do que a leitura de suas obras”, uma verdadeira “mosca de coche”. Suas obras, segundo ele, eram confusas e incompreensíveis, já que “tinha a cabeça falsificada por uma erudição mal dirigida”, sendo “uma mulher que o desvanecimento e a divagação do espírito se substituíram sempre às afeições naturais do seu sexo”.


Nem mesmo suas sucessoras escaparam da sua língua afiada: Madame Bouchet e Madame de Krudener foram chamadas de “Salomé” e “coquette”, um jeito escamoteado de chamá-las de prostitutas no melhor estilo floreado e hipócrita do francês do séc. XIX.


Os homens que ousaram se aventurar na cartomancia tampouco foram poupados pelo santo cabalista: Alliete, mais conhecido pelo seu pseudônimo Etteilla, um dos homens mais ricos de Paris na sua época justamente por causa das suas cartas adivinhatórias (nova pontada de inveja no fígado do nosso bom abade…), teve seus livros tachados de “obscuros, fatigantes e verdadeiramente bárbaros”, repletos das “bizarrias do seu Tarô mal compreendido e desfigurado”. Afinal, um “antigo cabeleireiro, não tendo aprendido nem francês, nem mesmo a ortografia, pretendeu reformar e apropriar-se, assim, do livro de Thot.” Ó, audácia! Mas, ainda assim, morreu rico, ao passo que o nosso erudito iniciado nos Mistérios Arcanos terminou seus dias na pobreza…


Aliás, vocês sabiam que Etteilla nunca foi cabeleireiro, embora todo mundo pense que essa foi a sua primeira profissão? Afinal, Eliphas Levi insistiu tanto nisso, chamando-o ora de cabeleireiro, ora de peruqueiro… Pois então, essa foi mais uma maneira sutil usada pelo velho mago para chamá-lo de homossexual. Afinal, só mesmo mulheres e homossexuais é que poderiam se dedicar a deitar as cartas do sacrossanto “livro de Thoth”…

Dr. Papus, como legítimo sucessor de Eliphas Levi, não deixou para menos. Após escrever três centenas de páginas do seu maçudo (e chatíssimo) livro sobre tarô, mostrou-se muito condescendente e galante com suas “leitoras”. Sabendo que sua ciência cabalística “certamente não atrai a atenção” de uma dama, já que a “natureza feminina, curiosa de mistério e ideal, aprecia e sabe desculpar todos os voos da imaginação” (diferentemente da masculina, que busca, “antes de tudo, a precisão e o método”), dedicou a última parte da sua obra à cartomancia. Nela, porque às mulheres seria “inútil ler todos os estudos abstratos que precedem para utilizar o Tarô com esta finalidade”, escreveu que era “preciso, portanto, dar condições a nossas leitoras de praticarem da melhor maneira possível”, de forma que a exposição se daria a partir dos “princípios mais simples dessa arte”.


Eis, pois, o exemplo do “macho alfa” ocultista, cabalista e iniciado, mas cheio dos galanteios de sua época!


Querem mais? Dr. Facilier terminará esta exposição, que já deve estar dando ânsias de vômito em muitos (e, sobretudo, em muitas), trazendo o exemplo de Arthur Edward Waite, considerado uma “enciclopédia de ocultismo” por alguns, mas colocado em seu devido lugar por Aleister Crowley, em suas virulentas e irônicas críticas nos jornais da época.


Esse erudito inglês, um gentleman do oculto, apressou-se em esclarecer, já no prefácio do seu famoso livro sobre tarô, que “julgar-se-á que estou agindo de maneira estranha, em face dos meus padrões de conduta, tratando do que parece ser, à primeira vista, um conhecido método de adivinhar a sorte”. Afinal, “o assunto tem estado nas mãos dos cartomantes como parte do ativo de seus negócios”, mas “já é tempo que se lhe traga socorro”. Ah, mas que alívio, Dr. Waite! O que seria de nós sem as suas luzes?


Se alguém ainda pudesse duvidar do desprezo que o nosso Magus tinha pela cartomancia, ele fez questão de pôr as coisas em pratos limpos (que horror se alguém pensasse que ele poderia ler a sorte… Cruzes!): “odeio o profanum vulgus dos recursos divinatórios”, mas não o tarô, que é outra coisa (coisa de macho!), pois “se o Tarô fosse, em suas raízes, destinado à leitura da sorte, teríamos de procurar em lugares muito estranhos o motivo de tal coisa: na Feitiçaria e no Sabá Negro, antes que em qualquer Doutrina Secreta”. Ora, ora… Dr. Facilier prefere bem mais o bode do sabá do que gente como essa gente…

E, naturalmente, não poderia deixar de sobrar para os cartomantes! O nosso erudito inglês, cujo fel não lhe cabia no fígado, dispara como uma metralhadora giratória: Etteilla teria sido um “iletrado, mas zeloso aventureiro”, cujos “livrinhos (…) constituem uma prova cabal de que ele não conhecia sequer o seu próprio idioma”; Mademoiselle Lenormand, “uma espécie de Alta Sacerdotisa, cheia de intuição e revelações” e Julia Orsini, “mais semelhante a uma Rainha de Copas do que a uma portadora de clarividência”. Mas, como adianta nosso homem das Altas Ciências, “não me interesso por essas pessoas como leitoras da sorte”. Imaginem vocês se ele tivesse interesse por gente assim… rsrsrs


Só não contaram ao nosso “Dr. Sabe Tudo” que Julia Orsini era o pseudônimo de Simon Blocquel, editor do baralho de tarô de Etteilla e dos livros atribuídos a Lenormand… E querem saber do mais? O ácido Dr. Waite só não criticou um tal de “Grande Oriente”, autor de um certo “Manual de Cartomancia”. Por que será? Ora, porque esse era ele mesmo, mas não teve coragem de revelar… Vai que o chamavam também de “cabeleireiro”… rsrsrs


Chega por hoje, não, minha gente? Dr. Facilier sabe que se alongou, mas era preciso fazer justiça às mulheres. Afinal, não fossem elas, nem ele, nem nenhum de vocês poderia hoje aprender a arte de tirar as cartas, pois ela foi passada de mãe para filha, de avó para neta, de tia para sobrinha ao longo de séculos, até que alguém resolvesse publicá-la em livros impressos. Um viva, pois, às mulheres cartomantes!


P.S.:

Quer saber mais?

Dê uma olhada neste texto aqui de Nei Naiff, cujas ideias fizeram o Dr. Facilier refletir um bocado: http://www.clubedotaro.com.br/site/h22_3_neinaiff.asp

E estes são os livros dos quais foram tirados os trechos desta crônica, para que ninguém chame o Dr. Facilier de loroteiro: Eliphas Levi, Dogma e ritual da alta magia, São Paulo, Pensamento, 1997 (páginas 211, 317, 395, 405-406)

Eliphas Levi, História da magia, São Paulo, Pensamento, 1999 (páginas 346-347)

Papus, O tarô dos boêmios, São Paulo, Martins Fontes, 2003 (páginas 295-297)

Arthur Edward Waite, Tarô: a sorte pelas cartas, Rio de Janeiro, Ediouro, 1985 (páginas 7-8, 27-30 e 37)

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