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Um Breve Relato Sobre o Vudu

Não faz tanto tempo assim que comecei a me envolver com o Vudu. Porém, minha relação com esta espiritualidade tem sido bastante intensa e, por isso, senti que era uma boa ideia dividir um pouco. O objetivo é dar uma ideia de como o Vudu pode afetar-nos fortemente. Também, é despertar em quem estiver lendo essa mesma reflexão sobre seus próprios caminhos.


Como o público aqui é heterogêneo (ainda bem), vale uma brevíssima explicação sobre o Vudu. Primeiro, falo aqui do Vudu Haitiano. Há ainda o Estadunidense e o Africano, pelo menos. Para os anglófonos, além disso, Vudu funciona como um termo que abarca religiosidades de ascendência africana em geral, como o nosso candomblé (Recomendo o livro “Voodoo Contra”, de Robert Gober, para entender melhor como isso funciona). Por isso, se faz necessário o esclarecimento.


O Vudu Haitiano povoa o imaginário popular por conta de Hollywood e da cultura pop. Todos já vimos filmes com feiticeiros sinistros e deuses malignos ligados a esta espiritualidade. A verdade sobre o Vudu Haitiano, porém, não está nessas representações. Portanto, se você quiser bonecos espetados melhor recorrer aos Egípcios Antigos (veja o livro incrível do Professor Robert K. Ritner – “The Mechanics of Ancient Egyptian Magical Practice”) do que aos Houngans e Mambos (Sacerdotes do Vudu).


O Vudu do qual falamos aqui é uma manifestação belíssima de, dentre outras coisas, interação entre as forças do universo. No Vudu, nós e o mundo invisível nos encontramos e conseguimos literalmente interagir. Maya Deren expressa isso muito bem no título de seu livro “Cavaleiros Divinos: os Deuses vivos do Haiti” (no original “Divine Horsemen: the living Gods of Haiti). A escolha desse título não foi somente pelo impacto do mesmo, mas também por sua verdade, acredito. Os espíritos do Vudu, os intermediários entre o distante e transcendente divino e a materialidade concreta da vida humana, que chamamos de Lwa (ou Loas), podem interagir de muita maneiras conosco. Talvez a mais espetacular seja a possessão. Neste fenômeno os Lwa, assim como “cavaleiros”, “montam” nos servidores (aqueles que servem os espíritos) e “tomam as rédeas” dos seus corpos. Esses espíritos ganham então a concretude nossa e passam a operar sua natureza de uma maneira completamente distinta.

É bem comum também o contato entre eles e nós através dos sonhos. Ainda, existem relatos até mesmo de manifestação corporal dos Lwa, como conta a Mambo Vye Zo Komande La Menfo em seu livro “Serving the Spirits”. As possibilidades são muitas e todas, por mais diferentes que pareçam, legítimas.

Poder tocar o invisível é uma experiência transformadora. A mente racional pode formular todas as dúvidas do mundo, mas no momento no qual Ogou vira uma garrafa de rum na sua goela (um ato de benção), você não pensa, você sente. Sentir o ardor do rum e o abraço forte do Lwa é surpreendentemente libertador. De repente, não existem mais dúvidas. Não existe mais nada. O universo todo se dobra e vira somente aquele ponto de união. Você e o espírito estão juntos, sobrepostos de alguma maneira, mesmo que separados. Os dois estão na encruzilhada. Quando acaba e as coisas retornam ao ordinário, mesmo que as dúvidas retornem, você não é o mais mesmo. Algo de Ogou ficou em você e não vai sair. Algo de Ogou que talvez já estivesse contigo até, mas que agora conseguiu despertar. Uma vez que estas sementes começam a disparar suas pequenas raízes, o processo é irreversível.


Ah, se você acha que Ogou parece familiar, parece mesmo. O nome vem da mesma origem do nome Ogum, mas as equivalências mais diretas e simples param por aí. No Vudu, Ogou é como um sobrenome para uma enorme família de Lwa. Vários espíritos podem usar esse nome, que para fins de identificação clara, vem acompanhado de outro. Um bom exemplo seria Ogou Batalla, que “equivaleria” ao Obatalá que conhecemos.


Esses encontros tão óbvios com manifestações do mundo que ou ignoramos ou não percebemos com clareza são indescritíveis, na verdade minhas palavras no máximo conseguem passar uma vaga ideia dessas experiências. Estes são os momentos que nos colocam em um caminho diferente. Estes eventos nos mostram que o Vudu não é somente um encontro, é um “tornar-se”. Lentamente, ele vai nos ensinando a olhar de maneira diferente para tudo. Curiosamente, passamos a notar que as coisas também começam a olhar para nós de maneira distinta. Antes algumas nem olhavam. Outras, olhavam só de relance. Agora, tudo está mudado. É preciso acostumar-se a isso, mas não é difícil fazê-lo, pois tudo fica mais interessante.


Isso não quer dizer que o Vudu seja a solução de todos os problemas. Para ser honesto, ele até pode criar alguns. Dificuldades e desafios aparecerão. Por não ser uma espiritualidade maniqueísta, será preciso lidar com o seu bem e com o seu mal, eventualmente. No início, como estou, isso provavelmente será sutil. Depois… bem, quem sabe? Prefiro deixar para os mais experientes tais relatos.


Viver o Vudu é um “sujar as mãos”. Não há como vivê-lo sentado em um banco, tranquilo e inerte, enquanto outra pessoa comanda tudo. Esta espiritualidade te coloca no timão e te obriga a comandar o seu próprio caminho. Isto é, se você quiser realmente experimentá-la. Não há como se esconder de si mesmo quando se trabalha dessa maneira. É um método difícil, mas extremamente compensador.


Esse relato é curto e pessoal. Espero ter conseguido dividir com o leitor um pouco da minha paixão pelo Vudu. Com sorte, consegui demonstrar como ele é forte e impactante. Obviamente não estou tentando catequizar ninguém. Ao relatar o que tenho sentido, espero que o leitor se questione o mesmo sobre sua própria espiritualidade e destile seus próprios sentimentos. Há muitas maneiras de se conectar ao universo. Há muitas razões para isso. Espero um dia poder ler sobre a sua.


Segue uma lista de bibliografia recomendada para que os interessados encontrem informações confiáveis:

Milo Rigaud – Secrets of Voodoo

Mambo Vye Zo Komande La Menfo – Serving the Spirits

Maya Deren – Divine Horsemen: the living Gods of Haiti

Kenaz Filan – The Haitian Vodou Handbook: Protocols for Riding the Lwa

Karen McCarthy Brown – Mama Lola


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