Em artigo passado, comentei brevemente sobre os cultos noturnos chamados de “Mayombe” e “Bila” em São Domingos (“O escopo do Vodou Haitiano”, publicado aqui nesse site). Foi lendo o artigo de Frater Selwanga no sítio da OTOA-LCN que percebi alguma semelhança entre esses cultos e a sociedade Kimpasi do Congo (https://www.otoa-lcn-brasil.com.br/post/o-fogo-congol%C3%AAs-do-vodou). Por isso, decidi dar uma olhada melhor na Kimpasi e tentar costurar alguns pensamentos dentro do contexto dos cultos do novo mundo.
O que era Kimpasi, afinal?
A sociedade Kimpasi era uma sociedade secreta (ou uma coleção de sociedades secretas) que, Marina de Mello e Souza nos ensina, admitia filhos da elite do Congo. De acordo com esta autora, a Kimpasi utilizava altares similares aos das igrejas, mas não estavam realmente dentro do que poderia se chamar “Cristianismo”. A sociedade Kimpasi dedicava seus iniciados a espíritos conhecidos como nkita, que guardam relação com os Simbi. Uma pessoa geralmente se associava a essa sociedade após ser “convocada” por espíritos, como, por exemplo, após sofrer de uma doença misteriosa e avassaladora. Esse tipo de chamado lembra muito os relatos compilados por Eliade em seu livro sobre os Xamãs.
A associação de Kimpasi com o cristianismo está dentro de um cenário mais complexo. Desde o século XV, com os contatos entre o Congo e os Portugueses e depois com o Rei Afonso colocando o cristianismo como religião da elite em uma tentativa de consolidar um controle social mais estreito, foi sendo formada uma maneira muito particular e congolesa de se praticar e entender o cristianismo. Evidentemente isso causou controvérsias e essas polêmicas alcançaram o além-mar quando mulheres e homens em situação de escravidão e de origem Congolesa diziam-se cristãos e católicos. De toda a sorte, é interessante notar que sociedades secretas Congolesas não deixaram de ser influenciadas pelo cristianismo e que isso aconteceu também no Novo Mundo com os cultos que aqui se formaram.
As reuniões e iniciações dos Kimpasi eram realizadas em lugares ermos e cercados pela mata. Isso também lembra a organização das casas de oração que os escravos construíam nas plantações da Georgia, nos Estados Unidos. Estas casas – nas quais se praticava um cristianismo extático, pode-se dizer, eram geralmente em locais remotos e discretos, longe dos olhares dos senhores das plantações e de todos os outros olhares também. Estas casas eram incrivelmente similares aos locais de encontro Kimpasi. É possível que estivessem emulando dentro de um cristianismo próprio certos elementos Kimpasi. Ou será que Kimpasi já vinha com elementos cristãos mais proeminentes?
A iniciação envolvia a morte simbólica do candidato que passava por uma situação próxima da morte real, entrando em um estado de catalepsia. Ao retorno do seu sono, o candidato havia renascido e agora era um com um espírito dos Nkita, que agiria, então, como uma espécie de “guia”.
Água, Ancestrais e Espíritos
Revisitando o que discuti sobre os cultos de “Mayombe” e “Bila”, vemos que há semelhanças: encontros escondidos e catalepsia, por exemplo. Já sabemos que estes cultos eram de forte influência Congolesa, mas se eram relacionados ou inspirados, não posso dizer. Aqui, só posso especular. Para continuar a especulação, vamos além.
Os Simbi eram geralmente espíritos aquáticos, associados a corpos d’água e nascentes, por exemplo. Em muitas de suas formas, entendia-se que podiam aparecer como peixes. No Vodou Haitiano, Simbi se apresenta como uma família de Lwas com forma e aparência serpentina, associados à água e também ao calor dos ritos Petwo. Simbis e Nkitas compartilhavam alguma relação – embora Frater Selwanga nos ensine que os Nkitas eram usualmente espíritos de ancestrais. O que isso parece jogar no campo comum é o elemento de água, já que a Kalunga, o mar, mas também o mundo dos mortos e o guardião dos mortos (Kalunga também era um dos nomes do Deus criador, somando mais complexidade) estavam associados com água também.
A água é o elemento principal do sacramento do batismo, no qual através da água, uma pessoa renasce para a vida cristã, recebendo seu nome. Além disso, a passagem de Jesus andando sobre as águas ganha nova vida quando, por meio de um ponto de vista Congolês, vemos Jesus andando pela linha da Kalunga para depois ser morto numa cruz (representando o encontro entre os mundos) e renascer, vencendo a morte. Ora, se Jesus não havia sido iniciado em Kimpasi e dedicado a um grande Nkita, quem mais então teria sido?
Jesus: um grande nkisi
Então, vamos nos lembrar do que Marina de Mello e Souza nos ensinou sobre os Kimpasi utilizarem altares similares aos de igrejas. Não está claro o quanto de cristianismo havia nisso, embora não escape à Marina a relação entre a cruz e o mundo Africano e o mundo Europeu, que comentaremos em breve. Assim, será que seria tão estranho que os grupos Kimpasi puxarem para si elementos da cristandade? Jesus não seria ele mesmo um grande ancestral divinizado que teria morrido de forma violenta e ressuscitado? Ora, será que Jesus era um Nkita ou um Nkisi – um espírito poderoso? (De fato, Jason Young nos conta que para muitos Congoleses, Jesus era o MAIOR dos Minkisi – plural de Nkisi) Se acham que estou delirando, faço referência novamente ao artigo de Frater Selwanga onde ele coloca claramente que Dona Beatriz Kimpa Vita foi tomada por Santo Antônio em sua iniciação em Kimpasi! Isso chegou até nós por causa de sua veia revolucionária, mas fica a questão: quantos “espíritos” cristãos foram assimilados pelos Kimpasi?
Ainda, o rito do batismo, através de sua ligação íntima com a água ganha contornos novos quando observado por essa possível (e certamente limitada) ótica Congolesa. Isto pode parecer nota de rodapé, mas essas pequenas coisas certamente influenciaram a amálgama de cristianismo com religiões nativas do Congo e regiões. Disto provavelmente nasceram interpretações que se espalharam e acabaram chegando à América. Ou seja, o batizado ganha uma viagem de ida e de volta ao reino dos mortos e sabe-se que segredos pode ganhar com isso. Afinal, se somos batizados pare entrarmos no reino de Deus e se é o batismo que nos abre as portas para que possamos também alcançarmos a vida eterna – é o batismo que nos coloca de alguma maneira na mesma qualidade do Cristo. Ora, e Cristo era um grande espírito. Ou seja, aproximar-se de Cristo é aproximar-se de um poder considerável.
Um exercício de compreensão
Assim, é possível que diversos elementos cristãos tenham sido assimilados em sociedades secretas como a Kimpasi. Como exatamente se davam essas assimilações e como isso foi explorado, fica para desenvolvimentos futuros. O importante agora é que tenhamos aqui, através desse exercício de pura especulação, uma fonte de questionamentos. O que quero dizer com isso? Utilizemos esse texto para pensarmos acerca de como os ensinamentos de diversas espiritualidades se conectam e como pensar uma coisa à luz de outra pode ajudar a revelar novas dimensões.
O exercício proposto acima não é simples, mas ele ajuda a perceber como duas coisas que parecem ocupar o mesmo lugar no espaço simbólico, na verdade, jamais poderiam fazê-lo. Percebe-se então que essas coisas estão em paralelo e delas podemos retirar ligações que enriquecem ambos os lados. Essa é a chave: enriquecer nossa compreensão. Todas as vezes que abrimos os olhos para algo novo e enxergamos por outro ponto de vista, verdadeiramente morremos e renascemos, como Cristo e como os Kimpasi.
SOUZA, Marina de Mello e. O CRISTIANISMO CONGO E AS RELAÇÕES ATLÂNTICAS. Rev. Hist. (São Paulo), São Paulo , n. 175, p. 451-463, Dec. 2016 .
YOUNG, J. R. Rituals of Resistance. Lousiana State University press. 2007.
*Imagem de capa de Maurício A. por Pixabay.
**Imagem de vitral de Jesus de Thomas B. por Pixabay.
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