Eu vivo escrevendo aqui, no Facebook e em outros sites o quanto o Vodou Haitiano é diverso e o quanto ele abarca diferentes manifestações. Entretanto, todas as vezes que eu discuto o Vodou, acabo evocando um determinado conjunto de elementos relativamente conservados. Ainda, quando alguém se interessa em ler algum livro sobre o assunto acaba encontrando esses mesmos elementos lá. A razão para isso é simples: esta espiritualidade é praticada de diferentes maneiras e uma delas, chamada Assogwe, se consolidou nos grandes centros urbanos Haitianos e acabou se tornando o modelo para o que o mundo conheceria como o Vodou.
Quem já visitou meus textos ou aqui ou em outros sites certamente já leu sobre o asson e sobre a divisão geral que é feita dos Lwas entre Rada e Petwo. De tanto encontrar esses elementos (e outros) nos textos e nos livros, alguém que esteja estudando o Vodou Haitiano pode achar que essa espiritualidade seja bastante homogênea, mas como insisto com frequência, é justamente o contrário. Os elementos que costumo abordar nos textos e que a maioria das pessoas encontrará nos livros fazem referência (geralmente) ao Vodou Assogwe, que apesar de admitir variações entre as casas guarda elementos estruturantes em comum.
Existem outros “tipos” de Vodou no Haiti. Em geral, há uma divisão entre o Assogwe e outras maneiras de se manifestar o Vodou que são mais familiares e mais focadas. Ou seja, existem casas de Vodou que trabalham, por exemplo, apenas com Lwas de uma determinada nação, como a Nagô. Nessas casas, muitas coisas podem funcionar de maneira diferente ao Assogwe. Por exemplo, em muitas não há iniciação, mas sim passagem de cargos por meio de herança. Ainda, nessas casas, em geral, certos instrumentos como o asson não são utilizados. De fato entende-se que esses “Vodous” mais familiares, nos quais espíritos são passados de geração para geração, tenham sido as formas originárias do Vodou.
Para ilustrar um pouco melhor esse tipo de Vodou, podemos falar do famoso Lakou Badjo, uma casa de Vodou que fica em Gonaives (onde também há outros dois templos importantes: Soukri e Souvnans). No Lakou Badjo as tradições preservadas são da nação Nagô apenas. Assim, é claro, neste templo há toda uma ritualística, costumes e maneiras próprias – que não serão iguais às dos outros dois templos da região.
Essa variedade de formas fica ainda maior quando nos espalhamos pelas diversas regiões do Haiti. Herskovits, autor do clássico “Life in a Haitian Valley” notou, por exemplo, que a classificação dos Lwas varia de um templo para outro. A variação da classificação dos espíritos – os elementos basilares do Vodou- já indica que a diversidade de manifestações do Vodou é, de fato, enorme. Estas variações podem ser realmente significativas, como, por exemplo, no caso de uma casa que só trabalhe com Lwas do Congo quando comparada a uma casa que trabalhe com Lwas Rada. Também podem ser mais sutis, como pequenos entendimentos distintos entre dois templos, mas que já são suficientes para dar uma personalidade única às casas de Vodou. Imaginem, portanto, como isso desenha de maneira bonita e interessante a riqueza de manifestações que podem ser encontradas entre casas de um mesmo “tipo” como o Assogwe e em casas que trabalham em tradições mais familiares ou mais focadas em determinadas nações (essas às vezes são agrupadas e classificadas como Vodou Deka e/ou Tcha-Tcha ou Makout).
Bem, finalmente podemos discutir melhor então o que seria esse Vodou Assogwe, típico do sul do Haiti. De maneira simples, podemos dizer que o Assogwe – o “tipo” de Vodou que se caracteriza pela passagem do asson (o chocalho envolto em contas) e por cerimônias como o Kanzo – é uma tradição do Vodou que trabalha com os Lwas de diferentes nações. O processo de surgimento desse tipo de Vodou é debatido, mas há entendimentos de que teria surgido com base nas linhagens reais do Daomé e que inicialmente o asson fosse passado apenas pelo sangue, coisa que teria mudado em meados dos anos 1800 quando passou a se admitir pessoas que não fossem da linhagem de sangue (Kenaz Filan discute isso de maneira bem clara em seu livro – The Haitian Vodou Handbook).
Como já foi brevemente comentado, pelo fato da tradição Assogwe estar concentrada principalmente nas grandes cidades como Porto-Príncipe, acabou sendo a tradição de Vodou que ficou mais conhecida pelos estrangeiros – e também mais acessível. Estrangeiros interessados em aprender o Vodou tinham maior facilidade em ir às grandes cidades, nas quais o acesso era mais simples e as pessoas mais receptivas. Subir para a área mais rural do Haiti ao norte sendo um blan (estrangeiro) e tentar conhecer o Vodou mais familiar era uma tarefa muito mais árdua. Apesar de alguns etnógrafos terem documentado esses “Vodous”, é certo que a maior parte das pesquisas e do “imaginário” orbitou ao redor da tradição Assogwe (principalmente na época da ocupação do Haiti pelos E.U.A.) e isso a alçou a uma posição de maior destaque.
Eis a razão pela qual a maior parte dos livros, websites e textos de Vodou tratam de elementos tão similares e de uma estrutura tão “conservada”: em geral, discutem o Vodou Assogwe. De fato, a tradição de Vodou Haitiano a qual eu faço parte é Assogwe e, portanto, é a que mais domino e, por isso, eu também sigo muito desse mesmo “esquema” nos meus textos. Entretanto, volto a salientar que não é possível esperar que mesmo dentro da tradição Assogwe as casas sejam iguais e que não exista ainda muita diversificação, pois há.
Bem, essa breve explicação foi motivada pelo desejo de que os interessados no Vodou entendam melhor o contexto dessa espiritualidade e de que se sintam mais confortáveis ao examinar livros e artigos sobre o assunto. Finalmente, aconselho fortemente que sigam os links abaixo e vejam os vídeos belíssimos sobre os Lakous Badjo, Souvanans e Sukris. São vídeos curtos, mas que apresentam o registro honesto de templos importantes e de pessoas cujas vidas são indissociáveis do Vodou.
Para saber mais sobre os Lakou Badjo, Souvnans e Sukris:
Fonte: Página do Facebook do Lakou Badjo.
Bibliografia:
Herkosvits, M. J. Life in a Haitian Valley.
Filan, K. The Haitian Voodoo Handbook.
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