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O Mistério da Escrita

Uma ótima maneira de se começar um texto é pelo começo. É quando a gente finge estar no comando da situação, imunes a própria busca que move o ato de escrever. Ignora-se, na maior parte das vezes, o fato de que a simples posse do fio jamais garantirá a existência da meada. Sempre me faltam palavras, mas como eu participo sendo o mistério do planeta, como diria a música dos Novos Baianos, sinto-me novamente à vontade para discorrer sobre a falta. A falta de um começo sempre rende um bom texto, se bem que o transe de Pepeu enquanto toca a guitarra me comove como poucas histórias. Pepeu tão novinho e esmirrado, expressando uma violência melancólica que abarca passado, presente e o fim misterioso do qual seguimos participando.


“A pergunta de cada história sempre é: essa é a história certa para agarrar aquilo que jaz em silêncio no fundo de mim, aquela coisa viva que, se capturada, se expande por todas as páginas e lhes dá alma. A resposta é incerta, mesmo quando chegamos ao fim de uma história.”

O livro é um compilado de entrevistas da autora, que tenta a todo custo desviar o assunto de sua verdadeira identidade. Elena Ferrante é apenas um pseudônimo, e há especulações de que seja um homem ou mesmo uma tradutora, versões desencontradas que não estariam à altura de sua obra. Essa mesma figura enigmática afirma, porém, que na literatura é preciso ser insuportavelmente sincero, de modo a se preencher as páginas vazias. Encaro essa resposta como a chave para o mistério sobre o seu anonimato, já que a escrita seria um meio de apropriação poderoso, pelo qual apenas somos e revelamos traços de nossa identidade que ninguém conhece ou gostaria de conhecer. São os chamados pontos de incongruência, segundo a autora.


Emilio Renzi, em ‘Respiração Artificial’, se questiona sobre o valor da biografia de um autor, que registraria apenas a história da transformação de um estilo. A vida de um indivíduo não seria fecunda a ponto de render uma narrativa. Então criamos, segundo o jovem autor, experiências para ocupar um lugar desprovido de sentido. Talvez Emilio, do alto dos seus trinta e poucos anos, pudesse conversar com Elena, que lhe diria que o vazio só existe nas histórias contadas para nós mesmos, já que o mistério ocuparia todo o resto. Pepeu também entraria em cena com a sua guitarra, mostrando que sua entrega ao universo suspende toda e qualquer teoria. Acho que começo a sentir o cheiro de uma nova história.




Respiração Artificial. Ricardo Piglia. Companhia de Bolso; Edição: Edição de bolso (28 de janeiro de 2010)

Frantumaglia: Os Caminhos de uma Escritora, Elena Ferrante. Intrinseca. 2017

O Mistério do Planeta. Novos Baianos.


Créditos da imagem: Pixabay


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