Começo esse artigo contando sobre Jérôme Pôteau. Em 1786, em São Domingos, ele e alguns companheiros foram julgados por organizarem e liderarem cultos noturnos chamados “Mayombe” e “Bila”. E eram cultos populares, pois David Geggus nos conta que chegavam a ter até 200 participantes. A razão da popularidade era simples: acreditava-se que quem fosse aos encontros estaria imune aos castigos dos senhores.
Jérôme era um mulato que vendia amuletos e as cerimônias envolviam a adoração de uma entidade em um altar com facões cruzados e beber rum com pimenta e um pó branco. O curioso era que após beberem esse preparado de rum, as pessoas desmaiavam e só despertavam com golpes de facão! Ora, não estamos falando mesmo de um culto “sossegado”.
David Geggus aponta que a influência do Congo é enorme nessas cerimônias e traça paralelos com o Palo Mayombe Cubano, que também tem diversos elementos Congoleses. De fato, a Quimbanda Brasileira também bebe fortemente da fonte Congolesa. No caso específico do culto de Jérôme, Geggus timidamente o compara com os ritos da sociedade Bankimba do Congo. A sociedade Bankimba adorava Mbùmba Luangu, que era uma serpente do arco-íris.
Porém, o primeiro relato sobre o Vodou que temos em papel, feito por Moreau de Saint-Méry, aponta para o “Vaudoux” como sendo um rito dos negros “Arada” – ou seja, de falantes de Gbe. De fato, se pegarmos vários Lwas, como Agassu e Damballah, por exemplo, vemos claramente a influência dos falantes de Gbe. O grupo dos Ogou e outros espíritos nos darão evidências da influência da cultura Nagô. Claro que Nagôs e falantes de Gbe já interagiam desde a África entre si. Portanto, já havia misturas entre eles. Sabemos, por exemplo, que no Aladá já eram cultuados espíritos originalmente Nagôs.
No Vodou Haitiano percebemos que há uma tentativa de organizar a influência Congolesa no chamado grupo “Petro”, que seriam os espíritos mais agressivos e que teriam se apresentado já em São Domingos. Por outro lado, vende-se a ideia de que os espíritos Fon e Nagô, mais “calmos” e oriundos da África seriam agrupados no grupo “Rada”. Uma investigação cuidadosa desses grupos e das práticas do Vodou pelo Haiti revelará como essa questão é complexa, mas de toda a sorte, ela existe. É curioso notar que Erwan Dianteill vai dizer que enquanto no Haiti houve a divisão entre “Rada” e “Petro”, em Cuba, a herança Congolesa teria dado origem ao Palo Monte Mayombe e a origem Nagô/Fon à Santeria.
Aqui, em terra Brasileira, temos um fenômeno supostamente parecido. Desde que começou o “Nagô-centrismo” começou-se a acreditar numa grande influência dos Nagô no Candomblé, apagando-se a contribuição dos falantes de Gbe (devidamente resgatada pelos trabalhos do Professor Parés) e dos Congoleses – vistos como mero “copiadores”. Entretanto, temos o Candomblé divididos em nações: Ketu; Jeje; e Angola. Obviamente, o Candomblé de Angola carrega forte influência Congolesa.
A leitura dos trabalhos de Luc de Heusch e de John Thornton esclarece muito acerca da cultura do Congo e dos arredores. Por exemplo, em “The Drunken King”, Luc de Heusch apresenta diversos mitos Bantus e vemos, em uma análise muito superficial, como existem temas e símbolos que são similares aos encontrados em determinados mitos Nagôs e dos falantes de Gbe. Apenas para usar um exemplo que já discutimos, vimos que Mbùmba Luangu era uma serpente do Arco-Ìris, assim como Osùmàrè, que por sua vez terá alguma similaridade com Dan.
Em resumo, podemos fazer melhor do que continuar a propagar a ideia de que os Congos eram meros “copiadores”. Entender que os processos na África eram complexos e dinâmicos é fundamental para que possamos discutir essas questões e entender o que ocorreu no novo mundo. De toda a sorte, no Brasil, acredita-se também que muito da herança Congolesa foi parar nas macumbas cariocas, nas cabulas e depois na Umbanda e na Quimbanda. Curiosamente, a Umbanda também puxa para si uma herança Nagô com os Orixás. Enfim, fica claro que essas divisões não são muito fáceis de serem estabelecidas.
Pensando no Vodou Haitiano, temos que diversas influências distintas (Nagô, Fon, Congolesa e outras) se encontraram em momentos distinos e em locais distintos e formaram cultos variados. Por exemplo, existe casa de Vodou no Haiti que só trabalha com espíritos Congoleses e outra que só trabalha com espíritos Nagô. Entretanto, chamamos a tudo isso de Vodou.
Assim, fica claro que o Vodou Haitiano é uma coleção de maneiras diferentes de servir a diferentes espíritos. Em outras palavras, há uma variação enorme em como o Vodou é praticado e em quais espíritos são servidos. Se estamos acostumados sempre a vermos sempre os mesmos Lwas (Barão Samedi, Erzulie etc) e a mesma ritualística centrada em “Rada x Petro”, isso ocorre, pois essa foi a forma do Vodou Haitiano mais popular nos centros urbanos e a mais estudada pelos acadêmicos e também a mais exportada.
Entretanto, se pegarmos hoje um avião para Porto-Príncipe de lá um carro e partirmos em exploração pelo Haiti e se conseguíssemos entrar nas mais diversas casas de Vodou, estou convencido de que em cada uma veríamos coisas diferentes. Isso não quer dizer, claro, que não exista alguma característica mais ou menos conservada, mas sim que, efetivamente, o Vodou foi moldado por pessoas diferentes, por espíritos diferentes e sem qualquer autoridade central reguladora.
Por isso, o escopo do Vodou Haitiano é amplo e diferente. Há uma riqueza de culto que nasce disso. Há também algo muito pessoal que se estabelece quando o serviço aos Lwas é feito de maneira muito particular. As relações entre as pessoas não são estáticas e sempre iguais e o mesmo acontece com os espíritos. Pense no tamanho do invisível e você terá uma ideia então do quanto cabe no Vodou Haitiano.
*Foto por Troy Anderson, retirada de “https://www.smithsonianmag.com/arts-culture/explore-timeless-world-vodou-haiti-180963673/”.
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