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O Desgraçado do Padre Benedito

Foto do escritor: Eduardo RegisEduardo Regis

Enquanto o ônibus sacudia pela estrada que me levaria à maldita cidade na qual estou preso agora, meu sono era assombrado por pesadelos tão medonhos que me recuso a dividi-los.  Nunca acreditei em premonições. Talvez apenas no caso de santos. De toda a sorte, estava e cada vez mais, estou mais e mais distante de um homem digno de ser chamado de bom. De santo então, nada tenho. Essa minha corrupção célere e minha prisão inviolável são culpa deste local e do meu predecessor, o desgraçado do Padre Benedito.


Foi após a terceira missa que celebrei que notei a pequena caixa presa abaixo da mesa do altar. Notei-a sem querer. Deixei cair uma toalha e ao apanhá-la notei o leve brilho da caixa de alumínio. Esperei a Igreja ficar vazia para, munido de uma chave de fendas, tirar a caixa e examinar seu conteúdo. Só de lembrar-me doem-me os olhos e aperta meu peito. Aquela caixa profana e seu conteúdo terrível transformaram-me para sempre.


Um estranho mesmerismo tomou conta de mim assim que examinei o interior da caixinha. Como Ulisses, ouvi o canto das Sereias, mas não havia poste no qual me agarrar, então, desesperadamente eu fui dominado e subjugado pelos poderes maléficos daquela coisa. Parecia um pequeno peixe, mas tinha braços e pernas e seus olhos grandes me encaravam mandando mensagens de socorro. “Preciso comer” – aquilo me dizia. “Comer o que?” – pensei. E então ele sussurrou com a voz do próprio abismo coisas que jamais ouvira, talvez inauditas, coisas que jamais pensei que pudessem existir e em meio ao seu discurso alucinante eu o trouxe para junto do meu peito com as minhas mãos e ele cravou seus dentes em minha carne e sorveu meu sangue, ficando com escamas mais belas e brilhantes a cada golada. Como um diminuto bebê absurdo e impossível, involuído até o estágio de um embrião entre o homem e o peixe, ele bebia satisfeito – até que parou e pediu que o colocasse de volta ao altar, onde continuaria seu trabalho, desde que todas as noites eu o alimentasse.


– Que trabalho?


“Ele dorme, ele dorme, ele dorme, mas nós que somos seus filhos e pequenos pensamentos no seu contínuo corpo que se estende além de Plutão até este altar e ainda mais além e além e nos tentáculos sinuosos de seu ser que dorme e sonha nos oceanos cósmicos e nos mares profundos deste planeta – onde sua semente repousa – e no sangue dos homens e no ventre das mulheres e em tudo que existe – ele dorme e dorme – e ele sonha e seus sonhos dão à luz a criaturas como eu – pequenos e diminutos e minúsculos como somos, mas somos todos nós ele também e o que nós queremos é o que ele quer, mesmo dormindo, e passamos aos homens e mulheres a eucaristia mais verdadeira que existe – pois os que aqui frequentam não mais consomem o corpo e o sangue do seu Cristo, mas sim do nosso”.


Coloquei a criatura de volta na caixa e a prendi novamente ao altar. Por qual razão eu fiz isso, nem eu sei. Corri de volta para meus aposentos, deitei-me na cama como estava e antes que pudesse realizar, cai em um sono profundo – e foi aí que tudo ficou ainda pior.


Acordei assustado, pois Padre Benedito estava ao meu lado, sentado em uma cadeira que nunca havia estado em meu quarto.


– Padre, boa noite. Desculpe a hora imprópria. Gostaria de convidá-lo a fazer um passeio e bem, estamos na hora de Saturno.

– Hã? – Respondi enquanto me levantava. – Você não está morto?

– Nada morre realmente enquanto ele continuar a sonhar… e quando ele acordar, todos viveremos novamente. Enquanto isso, você deve continuar minha missão.

– Ele?

– Christos, que na língua dele se pronuncia ligeiramente diferente. O verbo feito carne. O filho do Pai celestial. Vamos, eu gostaria que você o visse em seu esplendor.

– Ver o Cristo?

– E que conhecesse a verdadeira história.


Já de pé, fui surpreendido quando o Padre Benedito segurou minha mão. Minha visão escureceu e quando dei por mim estava diante de dois homens dentro de um rio.


– Yeshua, eis a verdade. A vida vem da água e a água é o substrato universal do cosmos. Por isso, a água é o veículo do nosso Pai. Eu o consagro na água, para que nosso Pai o receba.


Pisquei e estava diante da cruz. Jesus sangrava e gemia. Ajoelhei-me diante dele em desespero. Ao meu lado surgiu Longinus com sua lança. O soldado enfiou a lança no corpo do Nazareno e da ferida saltou um tentáculo esverdeado que se enrolou no pescoço de Longinus, sufocando-o. Jesus deu seu último suspiro e do sangue que caiu dele brotaram criaturas como as que eu encontrei na pequena caixa abaixo do altar.

Senti o toque da mão do Padre Benedito no meu ombro e quando subi a visão para encará-lo percebi-me debaixo do mar, em fossas profundas, envolto de trevas gélidas. Sufoquei-me antes de perceber que realmente não respirava. Lentamente, divisei dentre a escuridão uma forma colossal com tentáculos e grandes asas.


– Eis o verdadeiro Cristo. O verdadeiro Pai.


Tossindo, saltei de minha cama. O dia já havia raiado. Não havia ninguém no meu quarto. Eu ainda usava as mesmas roupas. Tomei um banho apressado e dirigi-me para celebrar a missa. Estava esperançoso de que tudo não tivesse passado de um terrível pesadelo. Passei a mão por debaixo do altar e senti a pequena caixa. Ela tremeu e eu dei um salto e um grito. Embora eu tentasse fingir normalidade, estava por demais abalado. Sabia que algo de errado estava acontecendo. Os fiéis, entretanto, não paravam de chegar e imaginei que o ato sagrado da Missa pudesse livrar-me daquilo tudo. Foi então que quando consagrei as hóstias, percebi que elas ganharam uma estranha aparência esverdeada e a cada fiel que eu dispensava a comunhão, eu transformava. Seus olhos ganhavam contornos de olhos de peixe, seus braços ficavam molengas como tentáculos.


Terminei como pude aquela celebração e corri para o meu quarto. No corredor, Dona Amelinha, uma senhora simpática que ajudava na administração desde os tempos do Padre Benedito, parou-me e disse:


– O senhor fez muito bem a missa de hoje. Bela comunhão.


O sorriso de Amelinha exibiu dentes pontiagudos e uma língua serpentina. Gritei e corri para o meu quarto. Tranquei-me.


Encarei o espelho e ele revelou-me que eu também exibia escamas e dentes amarelados e pontudos como caninos. Quebrei o meu reflexo em pequenos cacos. Meu sangue jorrou em diferentes cores e escreveu-me um nome que eu já conhecia bem…


Horas depois, no horário da missa seguinte, foi Amelinha quem veio bater em minha porta.


– Padre, é hora da missa.

Não respondi e ela insistiu.

– Se o senhor não fizer a missa, nosso amigo pequenino, que agora vive dentro de você também, irá devorá-lo durante a noite e acharemos outro padre. Eis a verdade, meu caro, você não tem escapatória.


Ouvi em desespero seus passos enquanto ela se afastava. Aterrorizado, corri para fora da igreja. Porém, fui recebido pelos cidadãos. Todos me olhavam seriamente e seus rostos diziam-me que era tarde demais.  Notei os sorrisos quando retornei para a Igreja. Enquanto andava pelos bancos, ouvi a pequenina voz vinda da caixa a chamar-me.


“Estou com fome”.


Restou-me apenas rezar:


– Pai do abismo que descansas nas fossas, em sono profundo e antigo, eu desejo que seja teu o meu Reino e para isso eu sigo a tua vontade aqui e onde for! O bater do coração meu embala teus sonhos e eu entrego a ti todas as minhas promessas e desejo entregar também as dos meus irmãos! Não me deixeis falhar nessa missão, livrai-me do insucesso e até o seu despertar!

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