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Foto do escritorEduardo Regis

Merlim: o filho quimbandeiro do Diabo.

A série Cursed anda fazendo muito sucesso na Netflix e com isso houve um revival do interesse pelas lendas Arthurianas. Uma das personagens mais intrigantes desse universo é, sem dúvida, Merlim, que muitas vezes é compreendido como um mago, mas que guarda em si muitas outras faces. Resgatei da minha biblioteca o livro de Jean Markale (título: Merlim, o Mago – em Português, pela editora Paz e Terra), professor Francês, sobre Merlim e decidi cozinhar um pequeno ensaio discutindo essa figura. Pelo título deste ensaio, vocês já percebem que vou propor uma associação inédita.


É preciso deixar logo claro que Merlim não é uma personagem homogênea. Há algumas versões desse famoso mago. Em uma, ele é um Rei louco que vai morar na floresta e vira um “homem-verde das matas”. Outra versão o coloca como um famoso necromante que desde criança já possuía o dom da profecia. Em outra ainda, ele é um bardo, às vezes amigo do Bardo chefe chamado de Taliesin e em outras vezes confundido até com o próprio.


Mesmo o nome Merlim é objeto de disputa. Sem entrar aqui nas variações Gaulesas e Latinas, provavelmente o primeiro nome associada à figura Merlinesca teria sido Lailoken ou Lallogan e depois teria se conectado ao Merlinus, Merlini, Myrddin, Merlim. Puxando pelos nomes distintos e também pelas diferentes histórias, Markale acaba concluindo que pode ter havido mais de um Merlim e que essas figuras foram se fundindo com o passar do tempo. Seja como for, aparentemente Lailoken apresenta alguma veracidade história, pois aparece na história de São Kentigerno ou Mungo.


O nome Merlim, por sinal, tem dois significados prováveis: pelo Inglês, uma espécie de Falcão (o que abre os olhos para o mago dos escritos de Ursula K. Le Guin); já pelo Francês, seria algo derivado de Melro, um pássaro muito cantante e que Markale atribui a um gozador, quase um trapaceiro – papel que o um mago desempenha bem, como sabemos. Além disso, o Melro é um pássaro de penas pretas por definição. Sua cor é preta como a meia-noite. Voltaremos a isso (vocês saberão quando).


Apesar da discussão acerca da origem e do nome ser interessante, podemos ir além. Notamos facilmente como Merlim acumula em sim mesmo algumas características interessantes: um homem da floresta (similar aos Druidas) e também um mago. Não é surpreendente saber que em uma das histórias que contam a vida de Merlim (Em Lancelot em prosa, datada de 1230, aproximadamente) declaram inequivocamente que o feiticeiro seja o anticristo, o filho do Diabo.


É claro que precisamos considerar (e todos sabemos) como as lendas Arthurianas foram ganhando contornos Cristãos – mesmo que originalmente não os tivessem. No fim, Arthur e sua távola redonda acabaram se envolvendo com o Santo Graal. Colocando Arthur e os cavaleiros em uma cruzada pelo objeto que José de Arimatéia teria levado à Inglaterra. Então, ver que por volta do ano 1230, Merlim, um feiticeiro torna-se o próprio filho do Diabo não chega a ser surpreendente. A questão é como conciliar isso com seu papel de conselheiro do Rei justo? A solução foi dar ao mago uma mãe penitente e cheia de fé e por causa da sua mãe, Merlim ganha poderes ainda maiores do que os dados pela linhagem de seu pai e ganha também um caráter mais Cristão. Ou seja, Merlim é um híbrido. Está preso num “entre” – entre o céu e o inferno. No fim, esse Merlim se “une” a outra versão do mago e termina seus dias na floresta.


O ator Gustaf Skarsgard caracterizado como Merlim para a série Cursed. Não parece tanto um “homem dos bosques” ou um “filho do Diabo”. A pasteurização de Merlim é corriqueira nas inúmeras adaptações.


A floresta parece, de fato, ser o lar por excelência de Merlim. Há uma ligação forte entre a floresta e a magia. Não creio que isso seja novidade para os leitores do Espelho. Quero propor uma análise que discorrerá sobre a tríade magia-floresta-diabo e como podemos ter na figura de Merlim um símbolo bem mais complexo do que uma análise superficial faz parecer.


Vamos começar analisando a questão das florestas. As plantas guardam em si muitos mistérios. Por exemplo, Nicholaj de Mattos Frisvold nos ensina no seu livro “Invisible Fire – Inner dimensions of western gnostic & theurgic tradition” que Oswaldo Crollius entendia que as plantas compartilham da essência das estrelas. Planetas, claro, estão incluso nisso, pois o Grego planetes asteres significa “estrelas vagantes”. Assim, encontramos nas plantas as mesmas qualidades planetárias que estão no céu. Portanto, vemos que ao dizermos que Merlim é um homem do bosque ou da floresta, dizemos também que ele é um homem do céu. E isso está implícito em seu nome, que como vimos é o nome de um pássaro. Ou seja, Merlim voa. Merlim vai da terra ao céu. É um mediador. É um viajante do axis mundi.


Entretanto, quero ir mais fundo. O céu e o inferno, afinal, são espelhos? Não nos diz o axioma hermético que “O que está acima é como o que está abaixo”? O que tem a essência do céu, também deve ter a sua parte infernal. Portanto, a floresta e as plantas não são apenas um refúgio celeste, mas em cada flor e em cada folha há também enxofre e fogo, pois todas as raízes vão abaixo do que se vê.


Markale faz a comparação entre Merlim e Odin, pendurado na Yggdrasil. De fato, em algumas histórias temos a associação clara de Merlim ao xamanismo. Merlim, como homem dos bosques, como um Druida, é um “venerador de árvores”. Ou seja, ele faz parte de um culto que necessariamente trabalha as árvores como elementos estruturantes. A árvore, claro, é a representação clássica da subida dos mundos. Temos a árvore da vida da Cabala e a já falada Yggdrasil, mas temos também a Palmeira para os Iorubá e o poteau-mitan do Vodou Haitiano como representações de árvores que tem raízes no material e a copa no espiritual. Merlim, como um bom xamã, seria um viajante da árvore. Como vimos no parágrafo anterior, não seria exagero dizer que ele é também um viajante das estrelas e dos planetas. Aqui também cabe lembrar a batida associação entre os planetas e as esferas da árvore da vida.


Aqui podemos também mencionar os xamãs emplumados da antiguidade pré-escrita. Certamente o pássaro, pela sua capacidade de voo era o animal mais apropriado para simbolizar a habilidade do xamã de atravessar os mundos. A transformação em animais também era, aparentemente, frequente nestas viagens.


Podemos ir mais longe. Os pássaros são apreciados e reconhecidos principalmente pela sua habilidade de cantar. O canto, por sua vez, tem sido associado com a feitiçaria há longo tempo. A análise etimológica revela isso: encantar, incantare (do Latim), in (em) cantare (cantar). É oportuno lembrar que Odisseu, que teve de se amarrar ao mastro de sua embarcação para resistir ao canto das sereias, que eram criaturas híbridas entre mulheres e pássaros! Além disso, para os Iorubás, os pássaros eram associados às Feiticeiras, as Iyami, criaturas de poder tamanho que se rivaliza aos dos Orixás. Temidas e muito ligadas a diversos perigos e atos de malefício mágico, suas reuniões, acredita-se, ocorrem nas matas sob o manto noturno, revelando então algo similar ao Sabá que popula o imaginário popular ocidental.


A mata, aliás, vem sendo o refúgio de feiticeiras ao longo da história. Nigel Jackson revela que os deuses dos feiticeiros são deuses da terra e da água fecundas e ao longo de seu livro “Call of the Horned Piper” apresenta incontáveis associações entre feiticeiras, matas e aves. Não é surpresa, claro, que este autor também discuta longamente a notória habilidade das bruxas e feiticeiras com o herbalismo, sedimentando fortemente a conexão entre a feitiçaria e bruxaria e Merlim. Jackson, também atribui às bruxas uma dose de xamanismo, já que entende que o misterioso sabá, na verdade, se dá em um local de encontro entre mundos. Assim, para ele, o “voo” da bruxa a levaria para além deste mundo, justamente como um xamã.


Porém, gostaria de trazer Merlim mais perto da gente. Se me permitirem, vamos fazer uma associação que acredito seja inaudita. Nicholaj de Matttos Frisvold e Conjureman Ali falam, de maneira independente, da relação de São Cipriano com a Quimbanda e dizem que este teria sido ou ensinado pelo Exu Meia-Noite ou então que o Exu Meia-noite seria, na verdade, uma forma de São Cipriano.


São Cipriano de Antioquia foi um feiticeiro que teria se convertido e se tornado Bispo da Igreja Católica. Em algumas versões ele não teria se tornado Bispo, mas apenas teria se convertido e sido um mártir. Ainda, há versões que contam que ele nunca se converteu realmente. Ou seja, temos aqui uma figura, que como todas as figuras de lenda, é controversa e que guarda em si diversas camadas. Em todo o caso, a história de Cipriano de Antioquia, o feiticeiro que viria a se tornar santo está ligada à de Justina, a mulher que este teria tentando encantar sem sucesso, por conta da extrema devoção Cristã da mesma. Impressionado com o poder da “cruz”, Cipriano teria então se convertido ou se apropriada da “tecnologia mágica” Cristã. Hoje, é venerado pelas Igrejas Ortodoxas e Católicas que, claro, negam que a conversão dele tenha sido falsa ou oportunista. Gostaria que ficássemos com essa questão da ligação entre o feiticeiro (geralmente diabólico) e uma mulher penitente, pois esse é um tema que já mencionei neste ensaio.


Vamos pular a discussão acerca da confusão que há entre o Cipriano de Antioquia e o de Cartago. Nos interessa é que São Cipriano é uma figura muito comum no Brasil e nos países de língua Latina por conta dos textos atribuídos a ele que continham diversos feitiços e encantamentos, os chamados “Livros de São Cipriano” ou Ciprianillos. É verdade que estes textos circularam em diversos países da Europa, mas no mundo Ibérico ganharam força incomparável. No Brasil, particularmente, São Cipriano tornou-se uma espécie de lenda urbana, sendo temido popularmente e povoando o imaginário. Misturou-se em formas populares de religiosidade como a Umbanda e também a Quimbanda.


Frisvold, particularmente, se debruça mais sobre a Quimbanda e sobre o Exu Meia-Noite e nos revela que este é um feiticeiro nato e que domina diversos tipos de poderes e saberes mágicos. Este Exu apresenta uma perna de bode e uma perna humana, o que imediatamente nos remete ao diabo – e aqui podemos fazer a associação entre Merlim, filho do diabo e de uma humana penitente e Exu Meia-Noite. Merlim é o meio do caminho entre o inferno e a piedade Cristã e poucas figuras representam isso também quanto São Cipriano e o Exu Meia-Noite. Há, portanto, uma associação que pede para ser explorada.


Impressiona como novos significados podem ser encontrados em personagens tão antigos e que perduram por tanto tempo. Isto corre, acredito, pois fundamentalmente, os temas que envolvem a magia e a feitiçaria tem se conservado. Portanto, a floresta, por exemplo, foi e é o refúgio dos mistérios. Há muito mais poder nas matas e nas coisas naturais do que geralmente se atribui a eles. Parte do motivo de termos perdido essa conexão pode ter sido a urbanização e parte também pode vir da secularização. Seja como for, essas histórias e personagens milenares sempre retornam com lições das quais não podemos nos esquecer.


Depois desta discussão, espero que tenha ficado claro como a figura de Merlim revela muito sobre a própria ideia que fazemos do mago e do feiticeiro. Merlim é uma figura sempre marginal e que parece sempre estar retornando ao seu local de origem: a floresta ou talvez as estrelas. Do céu ao inferno, esta é a jornada de Merlim, e isso tudo estando na terra enquanto isso. Parece-me uma aventura incrivelmente similar à nossa própria.

Bibliografia:

Frisvold, N. de Mattos. Exu and the Quimbanda of Night an Fire.

Frisvold, N. de Mattos. Invisible Fire: Inner dimensions of Western gnostic & theurgic tradition.

Frisvold, N. de Mattos. Saint Cyprian and the sorcerous transmutation.

Frisvold, N. de Mattos. Craft of the untamed.

Conjureman Ali. Saint Cyprian: Saint of Necromancers.

Fontanelle, A. Exu.

Deren, M. Divine Horsemen.

Eliade, M. Shamanism: archaich techniques of ecstasy

Jackson, N. Call of the Horned Piper

Markale, J. Merlim, o Mago.

Créditos da imagem: Gouache on illustration board First appeared in the 1996 Tolkien Calendar, published by HarperCollins. 

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