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Foto do escritorKaty Frisvold

María Sabina, Mulher-Estrela

Atualizado: 8 de fev. de 2022

Freqüentemente deixamos de perceber os contextos culturais associados aos termos,  colorindo-os com nossa própria visão de mundo e contexto cultural. Porém, quanto mais largo se torna o nosso horizonte,  mais tendemos a buscar a precisão dos contextos. Um exemplo disso é quando usamos o termo “bruxa”, e tenderemos a captar alguma origem contextual majoritária, descartando a possibilidade de que em cada caso, a visão local pode ser bem outra. Igualmente, o termo que na Inglaterra é correlacionado – Sábio/a (cunning/cunning folk)– pode ganhar outro significado em outras culturas. É justamente sobre uma mulher que nunca se designou como “bruxa” – mas como “sábia” – é que este artigo vai contar um pouquinho.


De acordo com a compreensão britânica do termo, o Sábio é aquele que coleta ensinamentos de sua cultura e da natureza e os traduz em princípios que norteiam a sua vida. Nem sempre estas pessoas são “religiosas” no sentido de pertencerem a uma igreja, mas que são pessoas fiéis a um dado sistema de crenças. Assim como uma benzedeira brasileira que por definição geralmente é “católica” e poderia no passado chegar ao status de “herege” ou simplesmente taxada como uma pessoa supersticiosa que usa de recursos do catolicismo popular. O fato é que estas são figuras reconhecidas dentro de suas famílias e comunidades, e são procuradas tanto para um bom aconselhamento quanto para uma cura, uma benção ou um chá curativo. Interessantemente, o termo “católico” não é incorreto quando aplicado para o que hoje conhecemos como “universalistas” (vide a origem do termo “católico”)

Arte de RosenfeldTown (deviantART)

Na cultura Mazateca, María Sabina era este tipo de pessoa, fosse o nome dado ao que ela fazia: bruxa, xamã, benzedeira, curandeira, saudadora, sábia ou até mesmo poeta. Durante a Conquista, suas ferramentas de cura a colocariam em sério risco como qualquer “bruxa”. De fato, qualquer que fosse a nomenclatura do que ela fazia seria limitada a uma dada compreensão local, e assim talvez falharíamos com o propósito de entender esta importante figura da maneira em que ela se entendia.


Quando María Sabina visitou a cidade do México, em 1979, ela foi assistir um documentário a seu respeito, realizado pelo diretor Nicolas Echevaria (María Sabina: Mujer Espíritu). Ela era então uma velha mulher morena, pequena, e com traços indígenas, vestida num vestidinho tradicional com pássaros e flores huipil. María Sabina já tinha consciência de sua fama. Ela sabia que o juiz a conhecia, ela sabia que até mesmo o governo a conhecia, mas isto não a tirou de seu casebre com telhado de zinco em Oaxaca. Ela ainda caminhava descalça em direção às colinas para trazer suas “crianças douradas”, como ela costumava chamar os cogumelos psylocibe, seus guias, mestres da cura e da “Linguagem” divina. Apesar da fama, ela continuou falando em mazateca (e não e espanhol), a fumar seus cigarros e tomar sua cervejinha diretamente da garrafa.


A palavra “Linguagem” deve ser tomada com toda a sua amplitude quando falamos de María Sabina, pois foi do grande Livro da Linguagem que María Sabina aprendeu em sua visão iniciática: “À mesa dos Principais, um livro surgiu. Um livro aberto que foi crescendo até o tamanho de uma pessoa. Em suas páginas havia letras. Era um livro branco, tão branco que resplandecia. Um dos Principais falou comigo, e disse: ‘María Sabina, este é o Livro da Sabedoria. Este é o Livro da Linguagem. Tudo o que está escrito nele é para você. O Livro é teu, tome-o para que você possa trabalhar’. E eu disse emocionada: ‘Isto é para mim. Eu o recebo’.” Assim ela se torna a Mulher da Linguagem, a poeta. Como uma repentista das estrelas, ela entoava a linguagem que os cogumelos lhe ditavam pacientemente, terminando as sentenças com “tzo”, ou seja, “ele/ela/este diz”. Como os outros xamãs mazatecas, o tom era de cântico-ladainha. “Etnopoesia”, a poesia da linguagem natural, ao mesmo tempo humana e espiritual,  como ela dizia “a Linguagem pertence às crianças sagradas” ou “Eu os curo com a Linguagem das crianças”.


Ela recebia aos que lhe procuravam em suas famosas “veladas”, onde estes visitantes ingeriam os cogumelos sagrados e eram orientados – através de cânticos e danças executadas na escuridão total – a encontrarem o centro de suas essências.


Gordon Wasson chamou a atenção a uma lista de termos Nahuatl reunida por Hernando Ruiz de Alarcón em 1629 e traçou três paralelos importantes da prática que ele pode observar na velada de Sabina: A) Tanto Sabina como os outros Sábios Nahuatl se apresentam de forma elaborada, expressando ocupações de humildade e trabalhando declarações de poder e a habilidade de falar com os seres sobrenaturais quase que em tom de igualdade. B) Os Sábios Nahuatl sempre reforçavam o uso do “amoxtli”, o “Livro”, como meio de chegar ao conhecimento secreto. C) María Sabina sempre inclui pelo menos duas vezes um Jovem, vigoroso, atlético, viril, uma espécie de Apollo mesoamericano, mas que chama singelamente de “Jesus Cristo”. Seus antecessores Nathuatl, há mais de 300 anos atrás, introduziam uma divindade similar em seu canto. Tratava-se de Piltzintecuhtli, o Nobre Infante, que teria recebido de Quetzalcóatl o presente dos Cogumelos Divinos, como consta no Códice Vindobonensis. Na consciência de Sabina e provavelmente na consciência de outros sábios que florescem em nossos dias, há aqui uma completa síntese do cristianismo e as religiões pré-Conquista. Pessoalmente entendo o princípio deste processo como a Máscara de certo poder, antes que a Máscara se desenvolva na nova face da divindade e a própria divindade se expanda, absorvendo seus poderes ao ponto onde ocorre uma falta de distinção entre a máscara e quem a veste. Este é um  fenômeno que encontramos no mundo todo e em todas as civilizações.

Outro assunto controverso entre sábios e bruxos é o fator conhecido como “sangue”, o que varia de vocação a perdigree. Nas palavras de Sabina, encontramos uma forma interessante de pensar sobre sua ocupação e da razão de sua filha, María Apolonia, a acompanhá-la nos rituais: 

“Eu lhe disse que a cor da pele ou olhos pode ser herdada, incluindo a maneira de chorar ou de sorrir, mas o mesmo não pode ser feito com sabedoria. Sabedoria não pode ser herdada. Sabedoria traz-se de nascimento. Minha sabedoria não pode ser ensinada; é por isso que digo que ninguém me ensinou minha Linguagem, porque é a Linguagem das santas crianças que fala ao entrar em meu corpo. Quem quer que não tenha nascido para ser sábio não pode alcançar a Linguagem, mas [eles] fazem muitas vigílias.” 

Simples assim: Sabina ganhou seu livro, o livro que pertencia a ela. Ela nunca discutia esta matéria com Apolonia Terán, nem com qualquer outro sábio. Esta não é a forma em que os sábios mazatecas se comportam. María Apolonia teria que receber seu próprio livro, sua própria Linguagem, isso se esse fosse seu destino, enquanto Sabina se asseguraria e ensiná-la os antigos caminhos da cura como ela aprendera, presenciando os outros sábios mazatecas. O histórico familiar nos conta a história de como esta “semente” já estava presente em seu sangue: “Meu tatara-avô Juan Feliciano, meu avô Pedro Feliciano, minha tia María Ana Jesus e meu tio Antonio Justo, todos eles foram sábios de grande prestígio.”


Sabina não sabia bem em que ano havia nascido, mas nunca tirou da memória o primeiro sábio que encontrou – Juan Manuel – quando tinha entre cinco e sete anos. Foi a primeira vez em que pôde presenciar uma vigília com os “pequeninos”. Dias depois, ao cuidar das galinhas junto com sua irmã, ela encontrou os mesmos cogumelos que Juan Manuel carregava no dia em que veio curar seu tio. Ela se lembrou que Juan Manuel cantava lindamente depois de ingerir os cogumelos, e assim, decidiu pedir aos cogumelos para que ela pudesse cantar assim também. E foi assim que a pequena María Sabina e sua irmã entraram em contato com este enteógeno que as consolava, que lhes restaurava a esperança e que por muitas vezes lhe matava a fome. Nas palavras dela: 

“Não só sentíamos nossos estômagos cheios, mas contentes em espírito também. Os cogumelos nos fizeram pedir para Deus que não nos fizesse sofrer tanto. Dissemos a ele que estávamos sempre famintas, que sentíamos frio. Não tínhamos nada: só fome, só frio. Eu não sabia na realidade se os cogumelos eram bons ou ruins. Nem sabia se eram comida ou veneno. Mas eu sentia que eles falavam comigo. Após comê-los eu ouvia vozes. Vozes que vinham de outro mundo. Era como a voz de um pai que dá conselho. Lágrimas rolavam em nossas bochechas, abundantemente, como se chorássemos pela pobreza em que vivíamos.”

Pouco tempo depois, sob efeito dos pequeninos,  ela pôde ver seu falecido pai e as visões começaram a surgir a partir dali, a cada estação de cogumelos. A menina Sabina nunca foi à escola. Ela nem sabia o que era escola. Ela cresceu falando mazateca e morreu falando somente esta língua além da Sagrada que lhe foi concedida. Foi dada em casamento quanto tinha cerca de quatorze anos a Serapio Martinez, e com ele teve três filhos, Catarino, Viviana e Apolonia. Quando chegou ao redor dos vinte ficou viúva e todo o dinheiro e animais que pertenciam ao marido foram deixados para a amante. Enquanto esteve casada com Serapio, ela deixou de ingerir os cogumelos, pois de acordo com as crenças locais, ela não poderia relacionar-se sexualmente se os ingerisse, e o período de purificação era de quatro dias antes e quatro dias depois, ou melhor ainda, cinco dias antes e cinco depois. Ela achava que seu marido não entenderia. Quando ficou viúva, ganhava dinheiro com muito trabalho árduo, fosse plantando milho e feijão, fosse revendendo vasos, pães e velas nas ruas ou criando bichos da seda. Foi somente quando María Ana, sua irmã, estava muito doente e outros curandeiros pareciam ter falhado com suas missões que María Sabina decidiu voltar-se para os pequeninos. Deu três pares de cogumelos à sua irmã e ingeriu sessenta deles para que fosse tomada pelo seu poder. Naquela noite ela curou sua irmã, que passou a expelir água e sangue como se fosse um parto e manteve o trabalho de cura até que o sangramento parasse. Depois disso, ainda sob efeito, teve a visão do livro que lhe foi entregue. Ela não era mais uma simples aprendiz, ela havia atingido perfeição. 

“Como os cogumelos são santos, eles dão sabedoria. Sabedoria é Linguagem, e a Linguagem está no Livro. O Livro é dado pelos Principais. Os Principais aparecem através dos poderes das crianças.”

Depois disso a velada de María Sabina tomou forma. Ela usava velas de cera pura, flores (geralmente lírios brancos e palmas embora qualquer uma que tivesse cor e aroma servisse), copal e San Pedro (tabaco picado). Primeiro ela passava os cogumelos na fumaça de copal e falava aos pequeninos que ela segurava em suas mãos para que abençoassem e ensinassem a todos a verdade e a cura, que  revelassem que tinham o poder de seguir as pegadas do mal para que este acabasse, e dizia “Vou tomar seu sangue, vou tomar seu coração, porque minha consciência é pura, é limpa como a tua. Dê-me verdade. Possa São Pedro e São Paulo estar comigo”. Quando se sentia tonta ela então apagava as velas e a escuridão servia como tela onde surgia o que deveria ser visto. Ao lado deste imaginário aparentemente cristão onde figuravam São Marcos, São Martinho e Nossa Senhora de Guadalupe (entre outros), surgiam também outros “Principais” tal como Chicon Nindó, o Senhor das Montanhas que vive em Nindó Tocosho, possuidor do poder de encantar os espíritos e curar os doentes, àquele que os curandeiros sacrificavam perus e cacau em troca de cura. Com os “Principais”, María Sabina se sentava para tomar cerveja e aguardente. Com “os pequeninos” ela curava os doentes, aqueles que haviam sido encantados por elfos e aqueles que haviam perdido seus espíritos pelo medo das florestas, nos rios e nos caminhos. Às vezes eles indicavam que ela sacrificasse galinhas que eram colocadas sobre os locais doentes. Se os doentes não vomitassem, ela vomitava por eles, pois era assim que a doença era expelida. O suor também era um indicativo de cura. Ela dizia que às vezes, nas vigílias, quando ela batia palmas e assobiava, era porque naquele momento ela era transformada em Deus.


Psilocybe Mexicana, Teonanacatl, o cogumelo usado por María Sabina

Doze anos depois de perder o primeiro marido surgiu o persistente Marcial Carrera. Relutantemente María Sabina aceitou o pedido que fora feito à sua mãe, e ela só o aceitou se ele fosse morar com ela e em seus termos. Mesmo assim, ela decidiu pausar suas atividades como curandeira. Com ele ficou treze anos, teve seis filhos, mas só uma filha sobreviveu – Aurora, – e o restante morreu doente ou assassinado.  Marcial, que também era do tipo mulherengo acabou assassinado pelas mãos dos filhos que tivera com uma amante. Depois disso Sabina não teve dúvidas de seu destino. María Sabina morreu em 23 de Novembro de 1985, desgostosa com o número de estrangeiros que vinham para suas veladas para “descobrir deus” (no fundo, pelo “barato” diferente). Pelas suas curas ela nunca pediu nada. Ganhava pacotes de cigarro, aguardente e moedas, pagas tradicionais em sua terra. Ela se manteve pura assim, mas morreu questionando se a pureza dos “niños” morria com ela.

“Eu sofri de pobreza. Minhas mãos se tornaram calejadas pelo trabalho duro. Meus pés são cobertos de calos também. Eu nunca usei calçados, mas eu conheço os caminhos. Os caminhos lamacentos, poeirentos e pedregosos tornaram as solas dos meus pés endurecidas.”

Ela diferenciava seu trabalho de sábia ao dos curandeiros e feiticeiros, embora a linha de trabalho entre um e outros fosse absurdamente tênue e geralmente baseados no que um achava que o outro fazia. Neste ponto, parece que nada mudou no mundo inteiro…


Termino com um trecho dos belíssimos cânticos de cura de Sabina. Que a luz de seus niños possa iluminar as gerações dos divinos buscadores nesta jornada humana.

“Pai Jesus, Jesus, Jesus, Jesus

Tu Mãe, Mãe, minha Mãe que estás na casa do céu,

Tu Mãe que estás na casa do céu,

Em seu belo mundo,

Em seu fresco mundo,

Em seu mundo de claridade,

Estou indo para aí,

Estou chegando aí,

Porque há um caminho, nas trilhas das palmas das minhas mãos

Porque eu tenho uma língua, porque eu tenho uma boca,

Porque tenho minhas palmas,

Porque tenho minhas mãos,

Porque eu falo pobre e humildemente,

Eu falo a ti, você é somente uma, minha Mãe,

A quem posso falar com humildade, tu minha mãe

Que está na casa do céu,

Estou indo para aí,

Estou chegando aí,

Vou para aí mostrando meu Livro,

Vou para aí demonstrando minha língua e minha boca,

Vou para aí apontando as trilhas das palmas das minhas mãos,

Eu sou a mulher de São Pedro,

Eu sou a mulher de São Pedro

Eu sou uma mulher “Ustandi”,

Eu sou a mulher estrela cadente.”


Este texto foi largamente baseado na biográfica de María Sabina: “María Sabina – Her Life and Chants” – por Álvaro Estrada – Ross-Erikson Inc., 1981. Este texto foi originalmente publicado neste endereço em 2012.


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