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Foto do escritorAlfredo Cruz

La quema del Diablo e a presença do demoníaco na Guatemala

Todo dia 7 de dezembro, às 18h em ponto, hora do Angelus e do início da celebração das Vésperas da solenidade da Imaculada Conceição de Maria, grupos de quatemaltecos queimam o Diabo em fogueiras especialmente erguidas para isso na frente de suas casas, nas praças e encruzilhadas das cidades. Estima-se que, então, cerca de 500000 focos sejam acessos ao longo de uma hora apenas na capital da Guatemala, enchendo o céu da cidade de fumaça, faíscas e ruído; atividade que é acompanhada por música e palmas, queima de rojões e o consumo de doces, refrigerantes, pipoca e pratos típicos. Para este evento, nas semanas anteriores, lenha é reunida, fogos de artifício são comprados e várias piñatas em forma de demônios, com chifres, caudas, cavanhaques, cabelos desgrenhados, asas de morcego, cascos e pele vermelha, são cuidadosamente confeccionados com misturas variáveis de cerâmica, arame, cacos de louça, papel machê, retalhos de tecido, lã, fitas coloridas, flores, penas e pelos de animais. Tais figuras lembram os diabos do imaginário cristão, mas também as arqueológicas representações de An-Puch, El Descarnado, antigo deus maia da morte e da destruição, rei de Xibalbá, o mundo inferior postulado nas crenças de tantos povos da Yucatán pré-colonial, entidade comumente descrita e pintada como um esqueleto ou cadáver avermelhado e com chifres. Às vezes, em períodos recentes, fotografias de políticos e religiosos particularmente odiados têm sido coladas ao corpo das imagens a serem incineradas. A tradição de la quema del Diablo tem um significado especial na Cidade da Guatemala, por estar intimamente associada à festa da Virgem da Conceição, uma santa muito querida pelos locais. Junto com a festa de São Nicolau de Bari (celebrada em 6 de dezembro) e fazendo às vezes de purificação coletiva anual, ela marca o início oficial das festas natalinas. De fato, é comum que as famílias se reúnam justamente depois do rito ao redor da fogueira para comer pães e bolos tradicionais, cantar e dançar, beber ponche de frutas quentes e iniciar a montagem do Presépio.


As origens desta celebração, que bem poderia ser associada à malhação de Judas ainda verificada em algumas cidades do interior do Brasil nas manhãs de Sábado de Aleluia, remonta à época colonial. Neste período, mesmo nos lugares mais pobres, era comum as pessoas acenderem lanternas, velas ou fogueiras diante de suas casas para celebrar ocasiões especiais, que iam desde a passagem de procissões a batizados, casamentos e funerais. Na Espanha, em Concepción del Nava del Rey, vila próxima à comuna castelhana de Valladolid, desde 1745 a imagem da Virgem da Conceição é conduzida na noite do dia 7 para o dia 8 de dezembro entre fogueiras, círios e tochas desde a gruta na qual fica guardada durante todo o ano até a igreja matriz da cidade, na qual assiste à missa solene pela manhã. Há notícia de que fogos foram acessos por toda a América Hispânica ao anoitecer de 18 de dezembro de 1742 para festejar o aniversário de nascimento do imperador Felipe V. Na noite de 15 de setembro de 1821, para comemorar a Independência, todas as praças da Cidade da Guatemala foram iluminadas pouco antes do crepúsculo, sendo as altas fogueiras cercadas de música, cantoria e dança até o amanhecer. Em certas noites, esperava-se que estas luzes conduzissem os espíritos para dentro ou para fora das residências, a depender da celebração em questão, do tipo de fogo acesso e do material com o qual ele era alimentado.


No Convento de São Domingos em La Antígua, fundado em 1538 e destruído por um terremoto em 1773, era tradição que os frades reunissem os camponeses da região para queimar uma grande figura do Diabo, feita em madeira, papel e tecido, na noite anterior à Festa do Santo Rosário, celebrada em 7 de outubro. Esta comemoração, assim como a oração ao rosário de um modo geral, associa-se estreitamente à história de Domingos de Guzmán e sua Ordem dos Pregadores. Segundo a tradição dominicana, enquanto estava e Prouille, no sul da França, em 1206, tentando converter os dualistas cátaros à ortodoxia católica, Domingos teve uma visão da Virgem Maria, que lhe prescreveu a oração do rosário como uma ferramenta para vencer os hereges e expulsar os demônios. Embora esta ocasião seja atualmente reconhecida como lendária mesmo pelos hagiógrafos dominicanos, o desenvolvimento desta forma devocional de fato deve muito aos membros desta Ordem, e foi talvez o mais antigo e comum meio de meditação cristã trazida pelos frades à América. No Novo Mundo, o rosário foi reconhecido como método eficaz de intercessão da parte dos recém-convertidos, e utilizado por sem número de curandeiros ameríndios e mestiços em curas e exorcismos feitos à margem da autoridade dos padres. À medida que os dominicanos de La Antígua deram uma maior ênfase à imaginária mariana que mostrava a Virgem não só como uma jovem em oração, mas como uma guerreira em triunfo contra o Mal, representado como uma serpente ferida e não raro identificado com os deuses serpentinos autóctones; à medida que o culto da Virgem do Rosário foi cedendo espaço ao culto à Virgem da Conceição, consagrado, afinal, por bula papal promulgada em 1854, a celebração da queima do Diabo foi adiada para dezembro. Quando, depois dos grandes terremotos de 1717 e 1773, a capital da Guatemala foi transferida de Santiago de los Caballeros (atual La Antígua) para Assunción de La Virgem (atual Cidade da Guatamela), tal costume, desvinculado de um centro religioso em sentido territorial, difundiu-se rapidamente pela região.


Neste evento, muitas das piñatas de formato demoníaco são sustentadas, cercadas ou preenchidas com lixo recolhido no interior das casas, pois não poucos guatemaltecos ainda acreditam que demônios diversos escondem-se no interior das residências, agachados atrás dos móveis, debruçados sob as cinzas dos fogões e montes de folhas secas, enfiados embaixo das camas, dentro de pneus e garrafas vazias de bebida ou, principalmente, esgueirando-se nas latrinas, fossas e pilhas de coisas velhas. Para limpar suas casas do mal, é então o costume de que, do dia 6 para 7 de dezembro, os guatemaltecos rezem o rosário em família, consagrem os cômodos com água benta, recolham o lixo reunido, preencham as pinãtas com este material e iniciem a queima do que eventualmente sobrou do ano anterior. Não poucos também reúnem e colocam fogo nas roupas e sapatos que se tornaram muito gastos, inúteis para o uso, nos últimos meses, assim como em todos os jornais e revistas que foram se juntando nas casas e os cadernos e livros do período escolar recém-findo. Muitos dos abuelitos dizem que o ato de queimar tudo o que é velho e não mais usado, principalmente se traz más recordações, é o que abre espaço nas casas e nos corações dos devotos para que aí se receba no dia seguinte a bênção da Virgem da Conceição. Nesta mesma noite, muitos jovens saem pelas ruas com muitos guizos e chocalhos presos aos seus pulsos e tornozelos, vestindo roupas, perucas e máscaras espalhafatosas que imitam figuras demoníacas, bebendo, cantando, pedindo dinheiro, dançando, tocando tambores, pratos e pandeiros, espalhando lixo, contando piadas, quebrando vidraças, colando cartazes com escritos ou desenhos indecentes nas fachadas de igrejas e casas de família, soltando rojões e causando pequenos incêndios. Acredita-se que então personagens malévolos como La Llorona, El Sombrerón, El Cadejo Negro, La Xtabay (eventualmente também chamada de La Diablesse, como em Trindad e Tobago e em outras regiões das Antilhas), El Sisimito e, mais recentemente, El Chupacabras têm permissão de ingressar nas cidades e aí agir livremente. Trata-se, portanto, de um breve – algo sinistro, algo carnavalesco – momento de triunfo do Diabo, solto pelo mundo, antes de sua simbólica destruição da noite seguinte. Nessa comemoração de duas noites, bem se expressa o duplo sentido do fogo no interior da tradição cristã: ardor que sinaliza a presença do mal, ardor que afasta o mal e representa a purificação do mundo. Em sentido específico, chamas que simbolizam a vitória da Virgem Maria contra Satanás, chamas que funcionam como uma porta que traz o Inferno até este mundo.


Tais significados eram de todo desconhecidos das populações autóctones da Guatemala, assim como, por óbvio, também a ideia cristã de Diabo. Os antigos maias, contudo, concebiam que o mundo era habitado por muitos seres invisíveis, alguns dos quais eram declarados inimigos da humanidade, outros dos quais eram simplesmente zombeteiros ou indiferentes. A noção de um grande chefe deste enorme conjunto de espíritos não benévolos, com os quais toda negociação era não só difícil, mas mesmo perigosa, ainda que necessária para se manter o funcionamento normal da vida no interior das cidades e dos clãs, foi decalcada da religiosidade espanhola no século XVI e desempenhou um papel importante na reorganização da cosmovisão nativa no período que se seguiu ao trauma da Conquista. Como sombra do Deus católico, onipotente, mas bastante abstrato, insinuou-se no Novo Mundo também um Arqui-Demônio que passou a manter com os espíritos locais uma série de relações muito complexas. E não só com as entidades autóctones, demonizadas ou incorporadas de modo enviesado na síntese da religiosidade colonial hispânica, mas também com os próprios seres do imaginário católico trazidos ao Novo Mundo nas caravelas e galeões; pois, afinal de contas, o Diabo aparecia nas pregações dos frades, aos ouvidos mais atentos e abertos às sutilezas, também como um parceiro de Deus na obra de castigar os pecadores e derramar a Ira Divina sobre o mundo – e não havia, em sentido concreto, nada mais parecido neste mundo com as imagens do Inferno trazidas da Velha Espanha do que os feitos dos conquistadores entre os indígenas ou as masmorras da Inquisição. Daí o discreto, mas insistente culto a San Diablo, realizado na velha Guatemala às margens da instituição eclesiástica, mas de certa forma ainda dentro do círculo da religiosidade católica; com seu costume de, diante da imagem de São Miguel, vencedor de Lúcifer, acender uma vela ao vencedor e uma vela ao vencido, pedindo ao Arcanjo que erga um pouco a sua perna e libere este escamoso inimigo dos cristãos para realizar coisas em favor dos fiéis que estes não se atreveriam a pedir a nenhum dos (outros) santos.


Neste mesmo sentido, mas pouco além da margem da pregação e dos ritos da Igreja, ironicamente, os eclesiásticos, ao querer desacreditar as concepções religiosas ameríndias qualificando-as de diabólicas, arremessando seus deuses ao Inferno, puseram na mão dos indígenas uma arma poderosa para a resistência; pois, sem maiores problemas, muitos dos nativos simplesmente aceitaram as mudanças no nome das divindades do mundo inferior impostas pelos espanhóis, de tal forma de Lúcifer, Satanás, Belzebu ou simplesmente El Enemigo passaram a designar os eternos senhores do mundo subterrâneo com os quais os maias já tinham uma longa experiência em negociar. Ainda que representados agora com elementos figurativos claramente cristãos, An-Puch, Kisín, Ik’al ou Cimí ainda reinavam sobre os mortos e sobre os espíritos capazes de prejudicar os vivos; seu poder não sofreu nenhuma redução efetiva. Ao contrário, pode-se bem pensar que se tornou ainda maior por causa da insistência sobre sua ampla atuação entre os seres humanos e a descrição de suas características que eram recorrentes nas pregações dos frades. O que restou da religiosidade local e que não se reuniu com clareza ao edifício católico, assim, assumiu ares de contra-hegemonia pela incorporação de símbolos e práticas que os clérigos consideravam estritamente satânicas, mas que eles mesmos haviam transferido ao Novo Mundo; daí a profusão de cultos demonolátricos ou quase demonolátricos, alguns dos quais incorporando elementos da bruxaria europeia, localizados nos séculos XVII e XVIII pela Inquisição em Yucatán – expressões mágico-religiosas às quais as autoridades coloniais, civis e eclesiásticas, deram combate sem trégua e, mesmo assim, nunca conseguiram eliminar de todo. Apenas na velha capital da Guatemala, entre 1703 e 1773, as autoridades do Santo Ofício prenderam, levaram a juízo e  condenaram à morte na fogueira treze pessoas que declaravam ter feito pactos de sangue com o Demônio, visualizado na mata na forma de um grande animal negro Em 1779, na recém-instalada nova capital, foram julgados e condenados à morte pelo mesmo motivo e da mesma forma os criollos Miguel dos Santos Castillo, Gregório Tunché Hernández e Diego Mazate Arazola. Deste último, pintor, que participou da decoração de uma das igrejas da cidade, foi dito que era líder de um conventículo de adoradores do Diabo, que lhe havia feito uma imagem à imitação de um santo católico e que lhe adorava acendendo velas pela parte de baixo e sacrificando pequenos animais.


Com o passar do tempo, sob o peso do aparato político-religioso do governo metropolitano, algumas comunidades yucatecas passaram a representar o Inferno como compartimento bipartido, estando em uma de suas câmaras os antigos deuses tornados em demônios, de algum modo presos ou limitados pela autoridade de Jesus Cristo, da Virgem Maria e dos santos, e, em outras delas, El Patrón. Esta figura ameaçadora, de fato, insinuou-se no imaginário de não poucas tribos sob a imagem de um mestiço muito claro e muito alto, vestido como um criollo abastado, sempre de chapéu alto e de chicote nas mãos cheias de anéis, que se apodera das almas de índios e de brancos que não morreram em paz, que não foram sepultados com os ritos adequados, ou que de alguma forma transgrediram gravemente as normas sociais, para fazê-los trabalhar dia e noite por toda a eternidade. Tal personagem fez ainda mais próxima do ameríndio colonizado a figura do Demônio, pois o aterrorizava com a possibilidade de continuidade infinita do sofrimento terreno, algo tão ou mais apavorante do que as torturas imaginárias impressas nas gravuras presentes nos livros de catequese dos padres. Sua presença, contudo, não foi universal, e El Patrón, às vezes descrito como um senhor do Purgatório, este terceiro lugar desenvolvido na topografia católica do além durante o Medievo, sempre permaneceu muito mais sinistro do que o próprio Lúcifer na imaginação centro-americana. Para San Diablo, afinal, o caso às vezes exigia que, feitas todas as limpias devidas, fossem acessas velas e queimado copal ou olíbano; enquanto d’El Patrón só se queria o máximo de distância possível, sempre.


Nas paradas carnavalescas e nos autos encenados nas praças guatemaltecas nas noites dos dias 6 e 7 de dezembro, o Diabo adquire ainda uma feição cômica e de crítica social. Acompanhado de grande cortejo de almas penadas, espíritos das brasas e das cinzas, duendes, anjos caídos, macacos, imagens de maus religiosos, ciganas, judeus, mouros e prostitutas, aparece como licencioso, desbocado e profético bobo-da-corte da Criação que, justamente por sua absoluta marginalidade, pode denunciar os abusos e anunciar o Juízo Eterno contra todos os poderosos que não cessam de fazer sofrer o povo em seu infinito desejo de ganho, mais consumidor que o fogo alto do Inferno. Na vila de San António de Águas Calientes, no Departamento de Sacatepéquez, são queimadas sete grandes imagens demoníacas representando os Sete Pecados Capitais, estando presas em seus pescoços listas dos maiores pecadores da localidade, que são, não por coincidência, geralmente pessoas de boa posição social. Na Cidade da Guatemala, no adro mesmo da catedral, encena-se uma Danza de los veinticuatro demonios, na qual repetidos diálogos são travados entre condenados que representam diferentes tipos sociais e os demônios, seus captores e carcereiros, nos quais são enfatizadas as consequências do pecado, principalmente do egoísmo, da avareza e da falta de hospitalidade, e a impossibilidade de escapar dos tormentos do Inferno depois de se ter negado ajuda ao próprio Jesus, que andaria pelo mundo, para testar a virtude dos cristãos, disfarçado de pobre, de faminto, de nu, de ladrão, de criança, de indígena. Em La Antígua, uma grande figura demoníaca de cerca de três metros de altura é instalada junto à Fuente de Delicias, localizada na rua de saída da dita cidade; antes do anoitecer, antes que a ela se prenda fogo, lê-se com solenidade à sua sombra um Testamento del Diablo, no qual se menciona de maneira satírica e maledicente personagens públicos do passado e do presente que, em sentido próprio, espera-se que o Diabo carregue consigo.

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